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Projeto idealizado por Paulo Cannabrava Filho, que retorna ao país andino após 50 anos do golpe, é refazer os passos do líder nacionalista
Dar visibilidade às realizações do governo de Juan José Torres, “o general do povo”, e seu compromisso com o nacional-desenvolvimentismo, a democratização da sociedade boliviana e a luta anti-imperialista devem servir de herança a ser valorizada para a efetivação da verdadeira independência.
Com este compromisso, os jornalistas brasileiros Paulo Cannabrava Filho, Leonardo Wexell Severo e o argentino Andrés Sal.ari, com profundos e históricos vínculos com o povo andino, estarão entre os dias 1º e 10 de abril em La Paz, El Alto, Cochabamba e Sacaba refazendo os passos do líder fardado, que comandou de 7 de outubro de 1970 a 21 de agosto de 1971 o intenso processo de mudanças. Uma verdadeira onda no país sem mar, que foi da nacionalização da mina de Matilde até a incorporação da Bolívia ao Movimento dos Países Não-Alinhados.
Idealizador do projeto e comandando a equipe, o renomado Cannabrava que, na época, defendeu de Olivetti e Laika nas mãos a vitória de JJ Torres contra o golpe das milícias fascistas, avalia que “será uma oportunidade única de dialogar com os sobreviventes da construção daquele projeto cativante e inovador, que tanto tem a nos ensinar, estimulando a reflexão e a ação em defesa das nossas nações e da integração do continente”. “De todos os países que conheci – e não foram poucos, cerca de 40 -, a Bolívia foi o que mais fundo calou em minha alma. Vivi lá exatos 18 meses. Nada no tempo histórico. Mas na história da minha vida é como se estivesse estado por 20 anos, no mínimo”, disse.
Linha de frente da revista Cadernos do Terceiro Mundo, atualmente editor do portal Diálogos do Sul, recorda que foram 318 dias extremamente ricos e de investimento na valorização do potencial humano, em que se fortaleceu a crença na efetivação de direitos e da igualdade, nas potencialidades da nação afortunada em que, por séculos, a grande maioria da população havia sido submetida a minguadas migalhas. “Estamos falando da pilhagem de riquezas monumentais, da extração de minerais como ouro, prata, cobre e estanho. Com base na escravidão e milhões de cadáveres, saquearam tanta prata que poderiam fazer uma ponte das minas de Potosí até Madri”, relatou. Saídos os espanhóis, chegaram os ingleses e, posteriormente, os estadunidenses aprofundando a miséria e a devastação.
Em seu livro “No olho do furacão – América Latina nos anos 60/70” [Editora Cortês, 336 páginas, 2003], Canna descreve com riqueza de detalhes a sua participação ao lado da esposa Beatriz no auge do período Torres. O veterano combatente, que foi editor do jornal El Nacional, em La Paz – fundado pelo governo revolucionário -, sustenta a importância do investimento na rede de comunicação que, potencializada pelas organizações sindicais, foram a coluna vertebral do movimento. Recorda como o diário deu sustentação à luta política e ideológica, gerando consciência crítica e afirmando a unidade contra os entreguistas. “Vende-pátrias que, financiados pela embaixada dos Estados Unidos, conseguiram finalmente dar o golpe. A partir daí consolidaram debaixo de assassinatos, torturas e desaparecimentos a ditadura do coronel Hugo Banzer [21 de agosto de 1971 a 21 de julho de 1978 e de 6 de agosto de 1997 a 7 de agosto de 2001]”, descreveu.
LUTA CONTRA O “MEMORICÍDIO”
Autor de “Bolívia nas ruas contra o imperialismo” [Editora Limiar, 112 páginas, 2009], o jornalista Leonardo Wexell Severo avalia que “a reconstrução histórica de um evento de tamanha grandeza contribui para a vitória contra o que podemos chamar de memoricídio, o apagão engendrado pelo imperialismo e seus lacaios, de figuras como Torres, que servem de exemplo e de história”.
Redator especial da Hora do Povo, Leonardo acompanhou a luta boliviana em 2008 contra a tentativa dos Estados Unidos dividirem o país com a criação artificial da “meia-lua” – conformada pelos departamentos de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija – e documentou os separatistas depredando órgãos públicos e empunhando a bandeira nazista. Foi observador internacional no processo de reeleição do presidente Evo Morales e do golpe encabeçado por Jeanine Añez, em 2019. Fez a cobertura da campanha do presidente Luis Arce, em 2020, e regressou ao país em 2022 para denunciar a destruição, o incêndio e o assalto de entidades populares pelos fascistas cruzenhos do governador Luis Fernando Camacho. O terrorista e a usurpadora encontram-se atualmente presos.
“Ter a possibilidade de estar junto a profissionais comprometidos como Cannabrava e Andrés Sal.Ari é um estímulo a mais para a batalha que travamos cotidianamente contra a opressão e a alienação dentro do próprio Brasil, onde temos a grande mídia agindo como vassala das transnacionais e do capital financeiro. Uma metralhadora repetidora em prol da agenda de privatizações e juros altos. Felizmente, a Bolívia que temos para retratar hoje é a da nacionalização do lítio, da industrialização de baterias, da defesa da água como bem público, da valorização da mulher e das nações indígenas”, declarou Leonardo, que também integra a agência ComunicaSul de comunicação colaborativa.
“NACIONALISTA, TORRES FOI VÍTIMA DA OPERAÇÃO CONDOR”
Tendo vivido de 2008 a 2018 na Bolívia, o jornalista e cinegrafista argentino Andrés Sal.ari, acredita que a produção de um documentário sobre a vida de Juan José Torres é algo extremamente significativo, “pois resgata a memória de um líder que tem sua trajetória muito esquecida dentro da história boliviana e latino-americana”.
“Faço um trabalho permanente da recuperação de recordações e me parece importante focar naqueles dias dialogando com os protagonistas da história. O general Torres foi um dos últimos militares nacionalistas da Bolívia e, também, uma vítima reconhecida da Operação Condor, que serviu como fórmula de extermínio transnacional para varrer com o movimento revolucionário e qualquer tipo de mudança no nosso continente”, denunciou Andrés. Exilado na Argentina, Torres foi encontrado morto em junho de 1976 próximo a Buenos Aires, com os olhos vendados e três tiros na cabeça.
Conforme o cinegrafista, “é relevante demonstrar como os Estados Unidos agiram para frear a justiça social irradiada dos povos, principalmente dos estudantes e dos trabalhadores”. “A repressão e as mortes tiveram um impacto tremendo, consolidando a hegemonia das oligarquias que lhes davam sustentação”, acrescentou.
Paulo Cannabrava Filho

Leonidas Iza Salazar é filho de José Maria Iza Viracocha, um histórico dirigente indígena do Equador. Entre 2016 e 2021 ocupou a presidência do Movimento Indígena e Camponês de Cotopaxi (MICC), uma poderosa federação sediada na província de mesmo nome, na zona interandina do país.
Sua influência e notoriedade pública aumentou consideravelmente com a mobilização social de 2019 em protesto ao pacotaço econômico impulsionado pelo governo do ex-presidente Lenin Moreno. Na ocasião, Iza encabeçou a mobilização de mais de 60 mil indígenas até a capital do país, Quito.
O prestígio alcançado e sua centralidade nas mesas de negociação com o governo renderam a Leonidas uma intensa perseguição política e judicial, embora também tenha implicado na sua eleição, em junho de 2021, como presidente da Confederação de Nacionalidades do Equador (CONAIE) - a mais representativa das confederações indígenas do país.
A entrevista colaborativa a seguir foi organizada pelo Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA), uma articulação de meios, redes informativas e movimentos sociais da região comprometidos com a democratização da comunicação e o avanço da integração dos povos da América Latina e do Caribe.
O diálogo contou com a moderação de Javier Tolcachier, da agência Pressenza, e de Felipe Bianchi, do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. Na bancada, estiveram María Cianci Bastidas (Equador), da Associação Latino-Americana de Comunicação e Educação Popular (ALER); Leonardo Wexell Severo (Brasil), da agência ComunicaSul e do periódico Hora do Povo; Coco Vidal Quise (Bolívia), da Coordinadora Audiovisual Indígena Originária de Bolívia; Lautaro Rivara (Argentina), da Agência Latino-Americana de Informação (ALAI); e Kevin Martinez (República Dominicana), da Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (CLOC-Via Campesina).
Tradução: Felipe Bianchi
– María Cianci Bastidas (ALER): O cenário recente do Equador traz muitas novidades, como o pedido de impeachment do presidente Guilherme Lasso; os desacordos surgidos na Assembleia Nacional; o lamentável assassinato de Eduardo Mendúa, dirigente da CONAIE e defensor ambienal contra o extrativismo; assim como a denúncia do descumprimento dos acordos surgidos na mesa de diálogo com o governo após a explosão social de 2019. Ante este panorama, o movimento indígena ratifica que você lidere o pedido de renúncia do Executivo?
– Leonidas Iza: Há uma crise instalada no Equador. Uma desestabilização institucional que não foi gerada nem pelo movimento indígena e nem pelos setores populares, mas sim de parte de uma administração nula, que não beneficia e nem resolve os problemas mais latentes dos equatorianos. Nesse cenário, o assassinato de nosso companheiro Eduardo Mendúa inflamou os ânimos. Portanto, desde o Conselho de Governo [da CONAIE], decidimos declarar uma total radicalização da luta, sobretudo pelo fato de que o extrativismo - petroleiro e mineiro - busca anular os direitos dos povos indígenas sobre os territórios. No período recente, vem aumentando o nível de violência das empresas mineiras transnacionais contra nossos companheiros. Por isso, como força organizada, vamos defender nossos territórios.
Quanto à conjuntura nacional, sim, estamos observando o conflito entre a Assembleia Nacional e o Executivo, assim como enxergamos que as autoridades administrativas estão envolvidas em atos de corrupção e sustentam relações com as máfias do narcotráfico. Devemos buscar uma saída, mas considerando que um setor significativo dos equatorianos não querem mais mobilizações e paralisações. Por conta disso, a CONAIE tomou uma postura favorável ao juízo político [o pedido de impeachment contra o presidente Lasso], comprovando-se, logicamente, tudo o que deve ser comprovado no que se refere às ações do governo nacional - neste caso, na figura do presidente da República.
Nesse período, declaramos a mobilização nos territórios e a mobilização pelo Dia Internacional das Mulheres. No dia 17 [de março], teremos uma assembleia. No dia 28, vamos participar de uma mobilização que entregará o projeto de Lei de Águas, ao qual nos dedicamos no último ano. Estaremos vigilantes a tudo o que acontece no país e, se a situação se agravar, nos declararemos em mobilização nacional novamente.
– Leonardo Wexell Severo (Hora do Povo/Comunica Sul): Recentemente, uma frente ampla derrotou as forças fascistas no Brasil, dando fim à presidência de Jair Bolsonaro. Qual a sua avaliação sobre esse tipo de frente? Seria possível consolidar, no Equador, uma força opositora que garanta o avanço da democracia e de políticas soberanas? Ademais, ante a possibilidade real de derrotar o governo de Lasso e sua política de privatizações de setores estratégicos da economia em favor de transnacionais e do sistema financeiro, quais deveriam ser as medidas emergenciais a serem tomadas para frear a sangria de riquezas e colocá-las a serviço da geração de renda e emprego?
– Leonidas Iza: Creio que há uma necessidade história na América Latina, em todo o continente e também no mundo. Creio que os últimos processos eleitorais na América Latina, el Tahuantinsuyo, Abya Yala, foi dada uma resposta de que a região não quer mais seguir as políticas neoliberais, nem seguir carregando sobre nossos ombros as políticas de imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI). É uma mensagem importante e compactuamos, em seu devido momento, com o presidente do Estado brasileiro, o irmão Lula da Silva.
Também consideramos importante o que vem ocorrendo em outros países, como aqueles nos quais instalou-se um tipo de política por parte de setores que não querer soltar o osso do poder, como vemos no caso dos irmãos peruanos. Lá, removeram do poder o presidente Pedro Castillo. Me parece que, desde os povos, devemos garantir uma plataforma continental para que nos unamos e lutemos frente à imposição de políticas fascistas em nossos territórios. Assim também devemos gerar condições para as mudanças, respeitando a autonomia de cada povo, de cada Estado, avançando, como diria aquele pensador, em uma “criação heroica” [provável referência a José Carlos Mariátegui, que no artigo ‘Aniversário y Balance’, da revista Amauta, assinala: “Não queremos, certamente, que o socialismo na América Latina seja uma mera cópia. Deve ser criação heroica”].
Devemos pensar um sistema econômico que seja continental, como é em outras partes do mundo nas quais outras regiões criaram seus próprios blocos econômicos. Somente a América Latina não teve a oportunidade de contar com uma base econômico consolidada para fazer frente a outros blocos a nível internacional, o que faz com que nos continuem tratando como serviçais das multinacionais e das economias centrais. Creio que é importante, desde a unidade continental e desde a unidade dos setores populares, pensarmos em uma integração que não seja apenas organizativa ou de luta, mas também econômica, que incorpore a economia circular, a economia comunitária, a todas as economias que fazem parte das alternativas ao neoliberalismo. Por isso, demandamos que deve ser a economia real que sustente as nossas famílias, e não as economias especulativas do sistema financeiro, que extraem o trabalho dos nossos cidadãos ou nos deixam sem emprego.
– Coco Vidal Quispe (CAIB): Como estão se organizando os povos indígenas da Amazônia, dos vales, do altiplano? Quais são as semelhanças, as fortalezas e os acordos comuns construídos com os povos indígenas do Equador?
– Leonidas Iza: Creio em primeiro lugar que a CONAIE é uma das organizações de grande importância do continente. Temos conseguido estruturar-nos em diversos níveis de organizações, da comuna à comunidade e ao povoado, chegando até a nacionalidade, articulados nas três regiões do país. Por isso há autoridades de diferentes níveis, até chegar a uma autoridade nacional, que é a que estamos exercendo.
A CONAIE integra aproximadamente 10 mil comunidades de base das três regiões do país. É composta por 18 povos de nacionalidade quichua, na serra equatoriana, na Amazônia e na costa; e integra outras 15 nacionalidades diferenciadas por sua cultura, seu idioma e suas tradições. A ramificação dessas estruturas organizativas faz parte de nossas fortalezas. Tentamos, a partir dessa identidade política e organizativa, colaborar e cooperar com outras organizações irmãs a nível continental.
Segundo as Nações Unidas, na América Latina e Caribe há 873 povos, que seguramente compartilham dos mesmos problemas. O problema territorial, o problema da discriminação, o problema do racismo, o problema da expansão dos monocultivos sobre nossos território, etc. Por isso tentamos encampar nossas lutas em uma luta comum, que não deve ser restrita aos povos indígenas. Por exemplo, o tema da defesa territorial virou um tema central para toda a humanidade, porque neste momento enfrentamos um processo de aquecimento global que é efeito do modelo econômico capitalista, que extrai recursos dos nossos território para seu acúmulo global.
Não podemos aceitar esta loucura. Como é possível que alguns seres humanos acumulem a título individual os recursos de todo um continente? Isso preciso ser discutido com toda centralidade, não pode ser minimizado a um debate ético ou moral, pois é um assunto estrutural. Por isso impulsionamos, também, essa unidade a nível mundial.
Vejamos o que está acontecendo na França. Milhões se mobilizaram para defender os direitos da população idosa, a quem se pretende obrigar a trabalhar quando já não podem mais. Não é possível que toda a crise da sociedade capitalista siga recaindo sobre os ombros dos setores populares.
– Lautaro Rivara (ALAI): Poderia explicar para um público que não é equatoriano qual é o vínculo orgânico que une a CONAIE ao Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik? Qual a sua avaliação do desempenho dessa formação político-partidária, em particular sobre o papel de seus parlamentares na Assembleia Nacional? Por fim, poderia ser você o candidato presidencial das eleições de 2025, ou até mesmo antes, em eventuais eleições antecipadas?
– Leonidas Iza: Primeiramente, é importante frisar que o Pachakutik nasce com várias características distintivas. Surgiu em 1994 em uma relação orgânica indissolúvel com a estrutura organizativa da CONAIE. Por isso, reivindicamos que seu nascimento se dá no coração das lutas, para disputar os cenários colonialistas do Estado equatoriano, disputando o próprio sentido do que significa a República. Sua função é aglutinar a força organizativa dos povos e nacionalidades indígenas, mas abrindo-se ao conjunto da sociedade equatoriana, em especial o conjunto dos setores populares, sejam brancos, mestiços, indígenas, afros, montubios [Nome que recebem os camponeses da costa (principalmente em Guayas, Manabí e Los Ríos) e que representam, segundo o censo de 2010, 7,4% da população equatoriana]. Ou seja, todas as identidades, mas também todas as formas de organização das classes trabalhadores, feministas, comunitaristas, para que possamos nos aglutinar em um único projeto político de país. Assim definido o campo popular, podemos dizer que se trata de unir todos os explorados do Equador. Todo esse processo - e isso é importante - se sustenta não com lideranças individuais, mas com lideranças coletivas, que é o que demanda nosso projeto político.
Agora, bem, o que penso sobre alguns de nossos representantes dentro da Assembleia Nacional? Como disse, nossa posição é de esquerda e dirigida aos setores mais desfavorecidos. Mas há, sim, alguns parlamentares [de Pachakutik] que se aproximaram a setores que defendem políticas capitalistas e neoliberais das quais somos, historicamente, muito críticos. Por isso, temos exigido que mantenham sua coerência como representates eleitos por setores populares do Equador.
Em relação ao questionamento sobre se vou ser candidato ou representante, não é uma decisão individual que eu possa tomar. Nós somos sociedades coletivas e nos reportamos a esse sujeito coletivo em cada núcleo de nossa organização. Eu venho de uma comunidade, de uma organização de segundo grau, de um povo indígena determinado, de um processo regional que faz parte do Ecuarunari [Confederação que agrupa os povos de nacionalidade quichua da serra equatoriana. É a organização tradicionalmente mais forte, numerosa e uma das fundadoras da CONAIE no ano de 1986], organização que, por sua vez, participa da CONAIE. Qualquer intenção ou decisão deve passar primeiro por todos esses filtros da organização. Nesse momento, somos autoridades comunitárias da CONAIE, e não vamos confundir este papel com questões eleitorais. Uma vez concluído nosso período, serão nossas organizações, nossos povos a nível de base, que vão determinar o que faremos no cenário eleitoral.
– Felipe Bianchi (Barão de Itararé): O FCINA trabalha muito com o tema da democratização dos meios de comunicação. Como você enxerga a luta pela democracia do ponto de vista comunicacional? Qual a situação da Lei Orgânica de Comunicação, aprovada em 2013? Como poderia esta ley servir aos povos e nacionalidades indígenas de seu país e no enfrentamento do domínio dos meios hegemônicos por parte da elite equatoriana? Como a CONAIE vê a questão da comunicação, tão estratégica para a luta política?
– Leonidas Iza: O direito à comunicação é um direito inalienável que os seres humanos e as organizações - não só no Equador, mas a nível global - devemos exigir com toda a força. Aqui se deu uma reforma no ano passado e a CONAIE defendeu o direito à comunicação comunitária, à comunicação alternativa e à comunicação popular. Não pode ser que considerem só os direitos dos meios massivos de comunicação, sejam privados ou públicos, deixando sem voz os mais humildes.
Não podemos aceitar que os meios massivos privatizem a informação. O que devemos, para começar, é garantir a redistribuição do espectro radioelétrico no país. Nós temos nossos próprios veículos, os quais estamos articulando em uma plataforma unitária para que possa fazer contrapeso aos meios oficiais e massivos, que só falam do que querem seus donos. Estamos nos empenhando em construir novos tópicos e novos meios que permitam disputar a opinião pública, os sentidos e a verdade no Equador.
– Leonardo Wexell Severo (Hora do Povo/Comunica Sul): Quando falamos de comunicação e integração regional, enfrentamos muralhas gigantescas impostas pelos monopólios, que vão da invisibilidade e o silêncio até as mais aberrantes manipulações e mentiras. Vale destacar que quando desejamos comunicar, por exemplo, uma manifestação da CONAIE, é difícil até mesmo conseguir fotos ou declarações de dirigentes, porque a Internet manipula e segrega. Nesse sentido, qual a importância de se investir em redes alternativas que possam formar a nossos cidadãos política e ideologicamente na independência da consciência?
– Leonidas Iza: Para mim, esta é uma necessidade histórica. Precisamos dar esse salto qualitativo neste novo tempo da humanidade, cada vez mais sustentada sobre essas novas plataformas comunicativas e que devem, também, ser apropriadas pelos setores populares. Não podemos confiar nos meios massivos, parciais, nos quais não encontramos informação objetiva. Para estarmos à altura da história, devemos articular meios comunitários, alternativos e populares, desde cada um de nossos países.
É importante o tema da liberdade de consciência: se não acessamos informação real, alguém estará tomando conta de preencher nossas consciências. E serão essas mesmas pessoas que manipulam e comandam as plataformas de comunicação. Os mesmos capitalistas da informação e da comunicação.
– Coco Vidal Quispe (CAIB): Quanto à integração dos povos, das nações, dos indígenas originários e dos camponeses no governo, como compreende que devemos avançar na diplomacia dos povos, a nível continental e internacional?
– Leonidas Iza: É preciso construir esta integração em três níveis. Primeiro, sobre a autonomia de cada povo e cada nacionalidade (já mencionei que são 873 povos e nacionalidades que habitam a América Latina e o Caribe). Desde essas formas milenares de organizações necessitamos articular-nos em uma autonomia que não seja baseada centralmente nos Estados, mas sim nos povos e territórios. Devemos recobrar aquela unidade prévia à colônia, prévia às Repúblicas, para não deixarmos obnubilar pela intermediação estatal.
Em primeira instância, essa articulação se dá em um processo continental. Para isso não devemos inventar mais espaços organizativos, e sim fortalecer os que já temos. Por exemplo, para os nove países amazônicos temos a Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazônica (COICA). Temos também a Coordinadora Andina de Organizações Indígenas (CAOI), que integra os países e organizações que podemos agrupar desde uma visão mais andina, identificando os padrões comuns de luta contra o espólio da água e dos páramos, por exemplo. Temos também o Fórum Indígena de Abya Yala (FIAY) e o Fórum da Soberania Alimentar. Temos já várias estruturas organizativas; três, quatro, cinco organizações a nível regional e continental que poderiam fazer parte de um só bloco, mantendo as autonomias das organizações, povos e nacionalidades.
Em um segundo nível, cremos ser necessário que os países e Estados que lograram construir políticas progressistas também fortaleçam sua integração, mas sustentando essa integração para além da permanência de governos de esquerda ou progressistas. Devemos garantir a continuidade dessas políticas e cuidar da institucionalidade da integração desses Estados, que tomam importantes decisões econômicas. Por outro lado, a unidade dentro dos Estados só pode ocorrer se esses se converterem em Estados plurinacionais. Isso não se pode fazer da noite para o dia, mas é importante que esteja presente nas agendas autônomas dos povos e nacionalidades.
Por último, devemos unificar nossas vozes nos organismos multilaterais, como no Fórum Permanente para Questões Indígenas das Nações Unidas; ou no próximo fórum sobre a mudança climática, de número 28; ou na Conferência Mundial da Água. Também vão acontecer eventos oficiais das Nações Unidas sobre soberania alimentar. Em todos esses processos é importante ter uma agenda articulada a nível global, para que não se expressem unicamente lutas parciais dos territórios e Estados. Em síntese, é importante aglutinar o esforço de integração nesses três níveis de forma simultânea.
– María Cianci Bastidas (ALER): Acaba de ocorrer a VII Cúpula de Chefes e Chefas de Estados da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Gostaríamos de saber qual a sua leitura geopolítica regional de curto prazo e as correlações de força presentes no continente em relação à hegemonia exercida, todavia, pelos Estados Unidos.
– Leonidas Iza: É evidente que vivemos uma deterioração da política neoliberal e que a geopolítica global tem se movido muito a partir do conflito entre Rússia e Estados Unidos - não chamo de guerra entre Rússia e Ucrânia, já que a Ucrânia tem sido usada apenas como um território de batalha. Nesse marco, Estados Unidos, que impõe a nível global uma política neoliberal que suga dos territórios os recursos que um estado hipotecado como o seu necessita, começou a impulsionar, em seu próprio país, medidas protecionistas, como temos visto esses dias com as mudanças que estão ocorrendo no Congresso e no governo para proteger suas fronteiras e sua matriz produtiva.
Mas também é momento de vigiar a abertura para políticas neoliberais que está tomando corpo em outros blocos, como no caso da China. Neste momento, os Estados Unidos visa o controle da nossa região para continuar sua disputa com outros blocos a nível mundial. Também por isso devemos converter a América Latina em uma força econômica e política capaz de enfrentar outros modelos, a partir de outras formas econômicas, da prática do bem viver, e a partir de nossos Estados plurinacionais.
– Kervin Martinez (CLOC-La Vía Campesina): Que ações podemos tomar para ampliar a solidariedade continental com o movimento indígena no marco da crise vivida atualmente no Equador?
– Leonidas Iza: Temos discutido muito a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Camponeses. Temos que impulsionar este tema com muita força para que entre em vigência e que os governos de nossos países assinem a adesão a esta declaração. Creio que com esse objetivo temos de fazer um esforço de unidade. Agora que estamos enfrentando um sério problema de alimentação a nível global, devemos voltar a debater as estruturas econômicas que estão levando adiante nossos irmãos em cada território. Desde que se implementou a famosa “revolução verde”, em 1950, desapareceram milhares de sementes e espécies. No começo daquela década, havia mais de 5 milhões de espécies animais e vegetais no continente, que começaram a ser monopolizadas por um punhado de empresas transnacionais como Monsanto, Bayer, Syngenta e outras. Creio ser viável que a CLOC, a Via Campesina e o movimento indígena se unam para defender nossos conhecimentos milenares, nossas ciências milenar e nossas sementes, para enfrentar, sem importar qual seja o risco, a soberania de cada um de nossos países e territórios.
Nossa luta também é desde o campo, desde a agricultura, a pecuária e os modos de produzir de nossas culturas.
– Javier Tolcachier (Pressenza): Leonidas, quer nos brindar com suas considerações finais?
– Leonidas Iza: É fundamental construirmos uma nova unidade como latino-americanos. Integremo-nos. Basta de sermos o quintal traseiro das economias centrais - e também das emergentes. Nós produzimos agricultura, produzimos cultura, ciência, sabedoria. O que nos torna diferentes das outras civilizações do mundo? Nada. Nós temos o que é nosso. É preciso nos unirmos em um grande fogo que transforme a América Latina, que transforme as injustiças sociais e liquide o racismo. Não podemos mais tolerar países ou governos fascistas, de uma direita que se guia apenas pela cobiça. A mãe terra está doente porque os humanos a adoeceram. Creio que podemos recuperar a memória ancestral de nossos povos para colocá-la a serviço da humanidade, esta incrível diversidade de cultura e idiomas, para salvaguardarmos a nós mesmos como seres humanos. Temos o efeito do aquecimento global e o desequilíbrio da mãe natureza. Se não nos colocarmos de pé, se não unirmos cada território, simplesmente caminhamos todos ao desfiladeiro. Ainda há tempo de evitar isso.
O anúncio da compra do Twitter pelo bilionário norte-americano Elon Musk trouxe um misto de tristeza e revolta para quem luta contra as fake news e uma alegria incontida para a extrema-direita em todo o mundo. Mas é preciso uma análise que vá além da dicotomia e dos 280 caracteres.
A partir das declarações do próprio Elon Musk surgem pelo menos algumas motivações para a compra e uma provável mudança na curadoria de conteúdo dessa plataforma.
Por Renata Mielli* e Gustavo Alves**
Esse pressuposto é fundamental para entender porque um bilionário que não tem nenhuma atuação nas plataformas de tecnologia resolveu investir US$ 43 bilhões numa empresa avaliada em pouco mais de US$ 38 bilhões e que no ano passado registrou um prejuízo líquido de US$ 221 milhões.
A primeira constatação é que ele comprou a empresa para acabar com o pouco de conquistas que a sociedade obteve no processo recente de pressão para que as Big Techs desenvolvessem algum contrapeso para reduzir a disseminação de desinformação e discurso de ódio.
Isso escamoteado pelo argumento da defesa fundamentalista da “liberdade de expressão”, vista como um direito absoluto e que inclusive se sobrepõe a outros direitos. Mas é preciso enfrentar essa retórica oportunista e não ficar na defensiva para afirmar que não existem direitos absolutos, que estabelecer limites para o exercício desta liberdade é tão fundamental quanto a sua própria existência. Não cabe na liberdade de expressão, por exemplo, racismo, homofobia, apologia à morte ou aniquilação de grupos sociais, discursos que atentem contra a vida. Nada disso é opinião que possa ser livremente expressada. Nem em espaços privados como círculos de amigos ou familiares, muito menos em ambientes nos quais se realiza o debate público, como no caso das Plataformas de Redes Sociais.
Por isso, quem defende - como Musk, que o Twitter e outras plataformas sejam "arenas livres", na prática estão colocando em risco as poucas conquistas que a sociedade conseguiu avançar no debate sobre a necessidade de haver mais regras sobre a atividade dessas plataformas, como o reconhecimento tímido do papel deletério da amplificação algorítmica pelas plataformas.
Sob pressão da sociedade, o Twitter patrocinou um estudo para entender qual a possibilidade de seu algoritmo valorizar ou impulsionar uma determinada ideologia política e embora o Twitter tenha divulgado as descobertas da pesquisa em outubro de 2021, só agora o estudo foi publicado na revista PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences, publicação oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos), após ter sido revisado por outros cientistas.
O estudo analisou uma amostra de 4% de todos os usuários do Twitter que foram expostos ao algoritmo (mais de 46 milhões) e também analisou um grupo de controle de 11 milhões de usuários que nunca receberam tweets recomendados automaticamente em sua timeline.
A face visível da ação do algoritmo do Twitter é a exposição entre as postagens das contas que você segue, tweets marcados como “você pode gostar”. Ou seja, o algoritmo está recomendando conteúdo para você.
Isso é feito usando os dados da sua atividade anterior na plataforma, como os tweets que você curtiu ou retuitou. Uma equação estatística aplicada a estes dados lastreia o “aprendizado de máquina”. Assim o computador, em tese, aprende automaticamente com as preferências do usuário e aplica isso a dados que o sistema não viu antes.
Mas existe um fantasma presente nessas equações: o viés. Que segundo esse estudo reforça preconceitos humanos e amplificou os discursos de “direita”.
O estudo analisou o efeito de “amplificação algorítmica” em tweets de 3.634 políticos eleitos de sete países com grande base de usuários no Twitter: EUA, Japão, Reino Unido, França, Espanha, Canadá e Alemanha.
A pesquisa mostrou que em seis dos sete países (a Alemanha foi a exceção), o algoritmo favoreceu significativamente a amplificação de tweets de fontes politicamente inclinadas à direita.
No Canadá por exemplo, os tweets dos liberais foram amplificados em 43%, contra os dos conservadores em 167% e no Reino Unido os tweets dos trabalhistas foram amplificados em 112%, enquanto os conservadores foram amplificados em 176%.
Outro aspecto revelado pelo estudo foi amplificação algorítmica de notícias políticas. O estudo analisou a amplificação algorítmica de 6,2 milhões de notícias políticas compartilhadas nos EUA. E chegou à conclusão que a amplificação das notícias também segue o mesmo padrão.
Ou seja, há uma exposição maior dos conteúdos de direita, fake news e desinformação.
Esse estudo só foi realizado graças a intensa cobrança da sociedade e após a tentativa de invasão do Congresso americano pela turba fascista alimentada por Trump.
Pois bem, quando se começa a vislumbrar a chance de se entender como os algoritmos alimentam a disseminação de desinformação e discurso de ódio, eis que surge Elon Musk.
Musk é mais um expoente dos fundamentalistas da liberdade de expressão. Para ele, não deve haver limites, o que significa que não deve haver qualquer tipo de moderação sobre o que se diz nas redes sociais. Outro defensor dessa tese é o presidente Bolsonaro.
Segundo Musk, ele quer transformar o Twitter numa "arena de livre discurso".
Ele afirma que irá democratizar o Twitter apostando na abertura do código fonte (a programação interna do Twitter) para que os mecanismos de operação sejam conhecidos e explorados por programadores.
Uma promessa vazia cheirando a “Ouro de Tolo” feita pela mesma pessoa que usou sua conta para atacar pessoas transgêneros e as políticas de combate à transmissão da Covid-19.
A liberdade de expressão tem sido usada - de forma tão indevida, oportunista e equivocada - por expoentes da extrema direita, bilionários e representantes do grande capital. A economia atual é dinamizada pelo modelo de negócios que usa o discurso como mobilizador da atenção.
E o que chama mais atenção é o discurso de ódio, é o preconceito, é a polarização social baseada em grupos que se comportam como torcedores raivosos e não como cidadãos que discutem temas de interesse público e social.
Somos todos sugados pela força centrípeta dos estímulos incessantes provocados pelas redes de alienação e agimos como autômatos reproduzindo, curtindo, compartilhando conteúdos que reforçam a visão do meu “time”, grupo e dos meus pré-conceitos.
Nesse processo, monetizamos toda a economia assentada nas plataformas. Vendemos nosso olhar, nosso corpo e alma e compramos produtos, serviços e ideias, sem qualquer reflexão. Ajudamos a curto circuitar a esfera pública e a desintegrar qualquer possibilidade democrática.
O princípio da inimputabilidade do intermediário, tão importante para o ecossistema da internet, não pode ser confundido com ausência de compromisso e responsabilidade das plataformas com o debate público.
Por isso, a regulação das plataformas de rede sociais, das Big Techs, a partir de amplo debate público é urgente e indispensável. Musk comprou o Twitter, e pode conduzir esta rede a ser um ambiente de afronta a direitos humanos fundamentais e de menosprezo com a democracia.
Mais do que nunca devemos retomar o debate sobre o #PL2630 e reforçar nele todos os elementos que dizem respeito diretamente as obrigações e regras para que as Big Techs atuem no Brasil.
É mais urgente do que nunca que tenhamos uma legislação que regule as atividades desta e de outras plataformas no Brasil, que as obrigue a cumprir os compromissos expressos em nossa Carta Constitucional. O dinheiro pode comprar quase tudo, mas não podemos deixar que ele compre também nossa soberania, a proteção à nossa democracia e esfera pública.
*Renata Mielli – Jornalista, Doutoranda no Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM-ECA-USP), integrante da Coalizão Direitos na Rede.
**Gustavo Alves – Jornalista, webdesigner e programador, estudante de Ciência de Dados na USP/Esalq.
Em fase final de debate na Câmara dos Deputados, o PL 2630/2020, que acabou apelidado de PL das Fake News, sofre onda de ataques com conteúdos de desinformação. Facebook, Google e cia temem a aprovação de medidas que vão impor transparência às suas atividades e outras regras para a sua atuação no país.
Desde que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, reiterou que o tema é prioridade na agenda de deliberações da Casa, as empresas resolveram subir o tom e partir para o vale tudo, na tentativa de alterar ou até impedir a aprovação da proposta. As empresas usam o seu poder de mercado, e espaços privilegiados de suas plataformas para fazer a campanha contra um projeto de lei no país, o que é gravíssimo!
Mas o que elas temem? O que as desagrada tanto?
Por Renata Mielli*
Medo da regulação
Nos anos 90, início dos anos 2000, prevalecia uma visão ufanista de que a internet representaria um mundo de liberdade, de que ela seria um território livre: livre de regulação do estado, livre de fronteiras, livre de regras, onde todos podem construir seus negócios, suas formas de comunicação e expressão.
Essa ideia de ausência de regras foi muito conveniente para o poder econômico que se ergueu no Vale do Silício. As grandes empresas de tecnologia (Big Techs) se apropriaram desse discurso para impulsionar seus modelos de negócios e erigir um novo mercado monopolista dominado pelas empresas Gafam, acrônimo para Google, Amazon, Facebook e Apple e Microsoft.
A partir do escândalo Cambridge Analityca, das denúncias da sociedade civil e do alerta de pesquisadores muitos países passaram a discutir legislações para regular essas empresas. Há debates sobre obrigações de transparência, regras para moderação de conteúdos, combate ao discurso de ódio, enfrentamento à desinformação, debates sobre direito autoral e medidas econômicas e tributárias.
Em todos os países que enfrentaram essa agenda, as Big Techs usaram seu poder para tentar impedir que leis fossem aprovadas e aplicadas. Fizeram de tudo: campanhas baseadas em distorção de informações e dados, e até ameaças de deixar de ofertar seus serviços. Isso aconteceu na Austrália, na Espanha, na França e estão acontecendo agora no Brasil.
Em 03 de março, o Facebook veiculou propaganda em jornais de grande circulação nacional com o título: O PL das Fake News deveria combater Fake News. E não a lanchonete do seu bairro. No dia 11, foi a vez do Google soltar uma nota dizendo que se aprovado, o PL vai modificar a internet como você conhece. No dia 14, o Google colocou na sua página inicial, um link para a nota, de forma que todos os usuários que fizeram uma busca neste dia entraram em contato com a visão alarmista da empresa sobre o projeto. Além disso, passou a circular conteúdo publicitário do Google em outras plataformas com o mesmo conteúdo, que utiliza a retórica do medo, mecanismo largamente usado para estruturar conteúdos de desinformação e manipular a opinião pública.
Sobre o que trata o PL 2630
Afinal, será que o PL 2630 vai prejudicar a lanchonete do seu bairro? Será que ele vai mudar a internet que a gente conhece? Para responder essas perguntas, sem adjetivos, temos que conhecer o que de fato diz o projeto, que está sendo discutido desde maio de 2020.
Ele ganhou o apelido de PL de Fake News no início de sua tramitação. Na sua primeira versão, havia um artigo que tentava conceituar desinformação, que sofreu muitas críticas por trazer riscos à liberdade de expressão: definir numa lei que conteúdo seria classificado como fake News ou não é muito perigoso. Por isso, este ponto acabou caindo, e o texto que aguarda votação no plenário da Câmara não traz, em nenhum dos seus 42 artigos, o termo fake news.
Então, qual o escopo do projeto e porque ele continuou sendo chamado de PL de Fake News? O PL 2630 dispõe sobre a criação de uma Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Com base neste tripé, estrutura um elenco de obrigações, regras e mecanismos de governança para enfrentar o abuso do poder econômico nas redes, permitindo aos cidadãos e aos órgãos públicos identificar conteúdos de publicidade e impulsionados, saber o montante e a origem de recursos usados, por exemplo, para impulsionar conteúdos pregando o inexistente tratamento precoce contra a Covid-19 que tantos prejuízos trouxeram e ainda trazem à saúde.
O fenômeno da desinformação e seu impacto atual está relacionado às dinâmicas de circulação da informação no interior das plataformas. Ganham alcance e velocidade graças aos fatores de relevância considerados pelos algoritmos. Essas empresas, praticamente não fornecem dados sobre, por exemplo, quantos conteúdos são excluídos, com quais critérios, e porque contas são suspensas. Quantos dos que estão lendo este artigo já tiveram postagens excluídas ou rotuladas sem maiores explicações? E pior, os canais de contestação disponíveis para que possamos recorrer são praticamente inexistentes. Enquanto isso, muitas autoridades e pessoas com mandatos eletivos usam seus perfis e contas para espalhar a desinformação impunemente.
Ou seja, o que o projeto tenta é obrigar as Big Techs que prestam serviços para centenas de milhões de brasileiros prestem informações para que a sociedade compreenda como as fake news circulam e são patrocinadas, o que é fundamental para adotar medidas para combatê-las.
Outro ponto fundamental é uma seção inteiramente destinada a estabelecer responsabilidade diferenciada a agentes e contas de interesse público no uso das redes sociais. Afinal, quanto maior o poder que uma pessoa tem, maior a responsabilidade que ela carrega.
Também traz artigos para conter a viralização das fake news nos serviços de mensagem instantânea – aplicações do tipo WhatsApp e Telegram. Estabelece vedações à utilização de disparo automatizado de mensagens em massa, como as que foram largamente utilizadas na campanha de Jair Bolsonaro em 2018 e denunciadas pela jornalista Patrícia Campos Mello.
Ou seja, o projeto não proíbe publicidade nem impulsionamento, apenas cria regras para que a transparência seja possível. Nesse sentido, não há nada no PL que prejudique a lanchonete. Também não haverá uma mudança na internet que você conhece. Inclusive porque o PL não abrange toda a internet, ele se aplica apenas aos provedores de aplicação com mais de 10 milhões de usuários. Mas ele vai obrigar, sim, uma mudança da postura dessas empresas com relação aos usuários brasileiros. Mudanças que trarão mais segurança e empoderamento do usuário e da sociedade. E é isso que elas querem evitar.
As Big Techs se colocam veementemente contra transparência porque a opacidade é um fator intrínseco ao seu modelo de negócios das Big Techs. Dar transparência às suas operações é empoderar a sociedade para reduzir assimetrias provocadas pelo poder dessas empresas. Elas querem continuar ganhando bilhões de reais no país, atuando sem qualquer regra, sem ter que prestar contas e informações de suas atividades e, em alguns casos, nem responder às autoridades nacionais.
Amplo debate
O projeto 2630 está em debate na Câmara desde agosto de 2020. Ao longo desses quase dois anos de debate, foram organizados por iniciativa do atual relator, Dep. Orlando Silva, dois seminários, com a participação de centenas de especialistas. Organizações da sociedade civil, entidades acadêmicas, empresariais realizaram inúmeros eventos sobre o PL. O tema foi tratado ao longo deste período na mídia especializada, mas também em veículos jornalísticos. Ou seja, houve um amplo debate que resultou num aprofundamento de muitos dispositivos e amadurecimento do que é a espinha dorsal do projeto. A ofensiva atual das Big Techs nesta reta final é justamente uma reação a isso.
Há aspectos a serem melhorados e aperfeiçoados no projeto. Claro que sim. Um deles diz respeito ao artigo 38, que cria uma obrigação de remuneração de conteúdo jornalístico por parte das plataformas. Esse é um tema que não alcançou uma convergência maior. Vários setores, inclusive que têm posições diferentes sobre o PL, manifestam reservas com relação a esse dispositivo. Mas os motivos que geram resistência são distintos. As Big Techs têm se colocado contra qualquer iniciativa que surja na perspectiva de remunerar links. Inclusive ameaçaram acabar com sua operação em outros países (Austrália, Espanha por exemplo). Já, entidades do campo jornalístico, da mídia alternativa e dos direitos digitais que questionam esse tópico não o fazem por serem contra o debate em si, mas porque consideram que esta é uma discussão que precisa ser feita em outro contexto. Ela diz respeito a questões delicadas como definir o que é ou não conteúdo jornalístico, quem ao final tomaria essa decisão, como se daria essa remuneração, quem teria direito a ela, etc. Então, esse de fato é um tema sensível, para o qual ainda se busca alternativa melhor.
Mas essas melhorias e outras que ainda possam ser feitas no projeto precisam ser construídas a partir de um debate leal.
O que é importante que a sociedade compreenda é que após dois anos de debate, o projeto amealhou muitos consensos progressivos. Consenso visto não como unanimidade, mas construção de posição comum, principalmente em torno dos dispositivos envolvendo transparência, publicidade, desenho de um procedimento mais transparente sobre medidas de moderação com direito à contestação, para garantir um ambiente mais seguro e menos tóxico nas redes. E, claro, por se tratar de um tema de fronteira, dinâmico, há algumas questões que ainda ensejam dúvidas. O que precisa ser visto com naturalidade.
É fundamental desfazer as confusões que a campanha de desinformação das empresas estão trazendo. É preciso seguirmos atentos às discussões nas próximas semanas. E ter a tranquilidade de que essa lei é um dos passos que a sociedade brasileira dá na perspectiva de regular a atividade das plataformas e coibir a disseminação da desinformação. Outras leis certamente virão. E há também muitas iniciativas que precisam ser tomadas fora do âmbito legislativo. O que não podemos é ficarmos paralisados. Essas empresas não podem fazer terrorismo midiático e espalhar desinformação para continuar atuando numa terra sem lei.
*Renata Mielli é jornalista, doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e integra a Coalizão Direitos na Rede.
SAMBA DE DANDARA NO MÊS DAS MULHERES | Grupo composto exclusivamente por mulheres e que tem o objetivo de exaltar as grandes sambistas, compositoras e intérpretes, o Samba de Dandara será a atração musical do evento gastronômico e cultural que acontece neste domingo (26/3), das 12h às 14h, na Praça Memorial Vladimir Herzog, no bairro da Bela Vista, em São Paulo.
No cardápio, o prato árabe mjadra (arroz, letilha e cebola frita), preparado nas panelas da chef Norma Abi Harb.
Intitulada "Todo mundo tem que falar (e comer)", a atividade acontece todo último domingo do mês e ofecere almoço aos participantes a preços módicos ou gratuitamente, sob o mote "quem pode paga, quem não pode pega". A cada edição, completam a programação exposições fotográficas e artísticas, venda e lançamentos de livros.
A iniciativa é do Centro Cultural Elifas Andreato, com o apoio do SEESP - Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo e diversas entidades parceiras.
A praça fica próxima à Rua Santo Antônio, 33, em frente ao Terminal Bandeira, atrás da Câmara Municipal.
#PraçaVladimirHerzog #CentroCulturalElifasAndreato #SambadeDandara #NormaAbiHarb
Elas sempre estiveram brilhando nas galáxias científicas. Em todas! Faltava apenas um telescópio atualizadíssimo para que essa constelação de mulheres cientistas entrasse na rota de quem olha para o céu e para o futuro.
Não falta mais!
No próximo dia 11 de fevereiro, quando se comemora o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência (Decreto ONU, desde 2015), o Instituto Angelim fará o lançamento do livro e vídeo documentário Mulheres na Ciência em São Carlos: reflexões, trajetórias e histórias, no Teatro Municipal Alderico Vieira Perdigão, em São Carlos/SP, às 19h. Estão todos convidados.
A produção livro videodocumentário é uma homenagem à memória e trajetória de 6 mulheres cientistas de São Carlos/SP: Cibele Saliba Rizek - Nas cidades, entre pessoas, muros, ruas e casas, histórias para se contar (Ciências Sociais); Lúcia Cavalcante de Albuquerque Willians - Construir laços sociais e superar a violência (Psicologia); Maria Aparecida de Moraes Silva - Na terra, no campo, entre olhares (Ciências Sociais); Maria Aparecida Soares Ruas – O mundo não teria graça sem as singularidades (Matemática); Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Educação de qualidade para todos em todos os níveis (Ciências Humanas – Educação) e Yvonne Primerano Mascarenhas - A vida em um cristal (Físico-química).
“Decidimos iniciar o projeto com o levantamento de todas as pesquisadoras que se encontravam no caráter sênior, pesquisadoras aposentadas, mas que continuavam atuando em suas áreas temáticas e mais do que isso, que tivessem premiações e publicações internacionais e pesquisas relevantes que fazem parte do cotidiano da sociedade. Os bancos de dados do CNPq e CAPES que nos levaram a essas mulheres, em áreas diferentes do conhecimento e formação. Nossa ideia é continuar o projeto trazendo o percurso de outras mulheres na ciência em São Carlos”, explicou Mirlene Simões, idealizadora e organizadora do livro e videodocumentário.
Esse telescópio vai mostrar nossas celebridades científicas principalmente para meninas e mulheres que possam se inspirar nessas vidas brilhantes. Assim, livro e vídeo têm edição, arte e recursos audiovisuais que transitam pelo universo do estudante do ensino médio. Foram desenvolvidos majoritariamente por mulheres, buscando dar visibilidade às cientistas e estimular a participação e formação da cultura da mulher na ciência. São Carlos denominada oficialmente como Capital da Ciência e Tecnologia, pouco reconhece publicamente as mulheres cientistas e pesquisadoras na cidade, pouco tem como memória e produção sobre suas trajetórias e trabalhos. Esse desconhecimento impacta diretamente o significado social dessas mulheres, o incentivo dado às jovens pesquisadoras, em início de carreira, e o desenvolvimento educativo de meninas e adolescentes no âmbito escolar.
O relatório da Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, publicado em 2018, sobre “Mulheres na Ciência”, aponta que no Brasil entre 45,1% e 55% dos pesquisadores são mulheres e que entre as publicações científicas brasileiras as mulheres estão em 49% como “primeira autoria”, isso entre 2011 e 2015.
É muito trabalho e muito sucesso.
O livro e o videodocumentário exploram os percursos e jornadas de mulheres que foram pioneiras em suas áreas para inspirar muitas gerações. Para tanto, o projeto foi aprovado no Programa de Ação Cultura – ProAC, mecanismo do governo paulista de incentivo fiscal para projetos culturais. Os livros serão distribuídos em escolas da rede pública de São Carlos acompanhados de rodas de conversas com os estudantes. Outra parceria foi com a Fundação Pró Memória de São Carlos com a impressão de exemplares do livro que serão entregues em escolas e instituições e personalidades que são agentes multiplicadores em frentes diversas da sociedade.
Festa homenagem de lançamento
A data para o lançamento não poderia ser mais significativa, Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, assim como o local, o palco do Teatro Municipal. Nele estarão nessa grande festa artistas da cidade, representantes do Ministério da Ciência e Tecnologia, PROAC, Secretaria de Cultura e Economia Criativa, Prefeitura Municipal de São Carlos. Será exibido um trailer do videodocumentário sobre essas mulheres galácticas que produziram e que são o motivo desse trabalho.
Instituto Angelim
O Instituto Angelim, localizado em São Carlos-SP, tem suas diretrizes em comum com os objetivos do Desenvolvimento Sustentável ONU (agenda 2030). Seu propósito é promover de forma equilibrada o desenvolvimento econômico e social bem como reduzir a desigualdade em todas suas formas e valorizar a diversidade cultural e educação para a cidadania.
Stela Martins – assessoria de imprensa
MTb – 19.292/SP
(16)98845.5622
O futebol das mulheres ganha o planeta como nunca antes em sua história
Grande dia!
Grande dia de verdade e não o externado pelo boçal que ocupa desastradamente o posto mais alto do executivo brasileiro.
Hoje é um grande dia porque tem início a oitava edição da Copa do Mundo de Futebol Feminino! A anfitriã França abre a competição diante da Coréia do Sul a partir das 16h00 – horário de Brasília – e além da ansiedade pelo ponta pé deste jogo temos muito o que comemorar em termos de visibilidade.
Por Lu Castro, especial para o Barão de Itararé
Há pouco mais de dez anos, assumi uma responsabilidade pessoal: utilizar a tecnologia em favor da visibilidade das mulheres que faziam a bola rolar pelos campos da cidade. Minha primeira busca foi no Juventus, formador por excelência, e sua técnica Magali.
O material, publicado no antigo portal OléOlé, já se perdeu, mas, de lá para cá, perda deixou de ser sinônimo de mulher dentro e fora das quatro linhas.
Avançamos. E os contatos com os principais agentes da modalidade se intensificaram. E espaços alternativos começaram a surgir com mais força na busca pelo tratamento igualitário do futebol de mulheres e homens – ao menos no que diz respeito ao que se noticia, inicialmente.
Observando a movimentação da imprensa nacional, noto um grande cuidado ao tratar do assunto, diferente de muitos outros anos. Acredito que esteja diretamente relacionado ao número de mulheres presentes em redações esportivas, algo que apontei como imprescindível para a melhora na comunicação do futebol de mulheres em mídias tradicionais.
Avançamos. E avançamos noutros tantos aspectos do futebol, inclusive na gestão, onde o trabalho realizado pela ex capitã da seleção, Aline Pellegrino, como diretora de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol, tem ampliado os espaços para trabalhar as categorias de base.
Avançamos. A seleção brasileira tem uma estrutura que nunca teve. A seleção brasileira conta com uniforme próprio e não sobra do uniforme masculino. A seleção tem seus jogos transmitidos de modo inédito em tevê aberta de alcance nacional. A seleção só não tem uma coisa: técnico.
E isso, car@s, é algo que me preocupa tanto quanto me alegra: o fato de termos a Copa do Mundo mais noticiada de todos os tempos.
Diante de uma seleção nacional que caiu no ranking FIFA nos últimos anos, sob o comando de alguém que não tem perfil para comandar o selecionado nacional em nenhuma circunstância – e já o demonstrou em outras ocasiões - que carrega para a França nove derrotas consecutivas, minha expectativa é de termos que reforçar nosso discurso e argumentar como nunca que o que eles (os espectadores desconhecedores da realidade do futebol feminino) estão vendo não é bem isso.
Num momento, em que os olhos do mundo estão voltados para a amarelinha tão conceituada um dia, mostrar um jogo baseado apenas na garras das nossas habilidosas e talentosas atletas, tem sido o protagonista dos meus pesadelos.
Tudo o que lutamos para construir – atletas, gestores, comissões técnicas sérias, jornalistas interessados no assunto – pode sofrer um revés de opinião pública se o coletivo não estiver bem arrumado. E nós sabemos que não está.
Há poucas horas da abertura do mundial mais importante de todos os tempos, vou da euforia e ansiedade que mal me deixou dormir a testa constantemente franzida de preocupação.
Avancemos pois, nossas atletas se entregarão e é muito provável que nos jogos do Brasil o que avance é o nível da gengibrinha pra dar conta da montanha russa de emoções.
Uma mulher registra um boletim de ocorrência acusando um homem por estupro. Em depoimento, descreve que o parceiro teria ficado subitamente agressivo e usado da violência para praticar relação sexual sem seu consentimento. O laudo médico, anexado ao caso, apresenta sinais físicos de agressão e estresse pós-traumático. Em resposta, o homem acusado desmente a história publicamente, argumentando que o episódio não passou de “uma relação comum entre um homem e uma mulher”.
Por Mariana Pitasse, no Brasil de Fato
Esse poderia ser apenas mais um entre os cerca de 135 casos de estupro registrados por dia – que equivalem a cerca de 10% a 15% dos abusos que acontecem diariamente no Brasil, segundo levantamento do Atlas da Violência de 2018. Mas não é um episódio qualquer. O homem acusado é Neymar, um dos jogadores de futebol mais bem pagos do mundo. Por isso, o caso tomou as páginas dos jornais dentro e fora do Brasil nos últimos dias, com ampla repercussão nas redes sociais.
Após a denúncia registrada contra o jogador do Paris Saint-Germain na última sexta-feira (31), a acusadora foi exposta de diferentes formas – pela mídia comercial e pelo próprio Neymar. Para "sensibilizar" a opinião pública, o jogador postou um vídeo em suas contas do Instagram e do Facebook em que diz ser inocente. Ao tentar “comprovar” sua versão dos fatos, divulgou conversas que manteve com a mulher pelo Whatsapp, assim como fotos e vídeos íntimos da acusadora. A ação fez com que o jogador passasse a ser investigado também pelo vazamento de fotos íntimas.
A divulgação do conteúdo não foi um equívoco e, sim, uma escolha. Neymar preferiu cometer um crime virtual para tentar dialogar com pessoas que concordam com a ideia de que uma mulher que envia fotos íntimas pela internet é necessariamente "aproveitadora" e "interesseira".
O que está sendo ignorado nessa leitura rasa proposta pela defesa de Neymar é que a intimidade exposta para milhões de pessoas não diz nada sobre a acusação de estupro. Como lembra a antropóloga Débora Diniz, o que circula é a versão de um homem poderoso que se ancora em elementos do fascínio pelo sexo e na desqualificação fácil das mulheres vítimas de violência sexual. E essa é também a narrativa em que tem se amparado a cobertura da mídia comercial sobre o caso. Mesmo sem afirmar que estão assumindo uma posição, jornalistas passaram o recibo de que a acusadora está tentando se aproveitar do “menino” Neymar.
Entre as reportagens que tomaram conta do noticiário brasileiro nos últimos dias, a matéria Jornal Nacional – no dia seguinte à divulgação das conversas – foi a que mais repercutiu. Ela traz um panorama sobre o caso e ressalta o depoimento de um ex-advogado da mulher afirmando que o estupro não aconteceu. A reportagem também divulga o nome da nova advogada de defesa da mulher, ainda que ela não tenha dado autorização para isso, desrespeitando um princípio básico do jornalismo: a garantia de sigilo das fontes. Na mesma reportagem, sem mostrar as fotografias e vídeos do corpo da mulher, divulgados por Neymar, são expostas frases soltas da conversa em que o jogador aparece enredado em um jogo de sedução.
Em outra reportagem, desta vez publicada no Jornal de Brasília, a mulher tem a vida financeira e judicial revirada. O texto aponta que ela tem uma ação de despejo em seu nome, após três meses de aluguel atrasado, e que acumula dívidas. A reportagem também disponibiliza o nome completo da mulher e detalha suas contas a pagar.
A invasão de privacidade promovida por jornalistas com a justificativa de mostrar a “real versão dos fatos” não terminou por aí. Em reportagem publicada pelo jornal O Globo, a família da mulher é procurada e sua mãe é informada sobre o caso a partir da abordagem da repórter. Dias depois, uma matéria veiculada pelo portal UOL evidencia que o filho da mulher, de cinco anos, está sofrendo com chacotas na internet e na escola por conta da repercussão do caso.
Mais do que a intimidade revirada e exposta em fotos e vídeos íntimos e informações detalhadas sobre sua situação financeira, a mulher teve sua versão dos acontecimentos contestada a todo tempo, de forma pública, inclusive por seu ex-advogado. Mas isso não é levado em consideração, porque tudo parece legítimo quando a motivação é “dar o furo” de reportagem. Na lógica do jornalismo, é necessário apresentar respostas antes mesmo das investigações. Tudo isso com base na “isenção e na imparcialidade”, ainda que à serviço da versão do jogador milionário…
Neymar, por outro lado, segue a rotina de treinos, jogos e compromissos publicitários, blindado por seu estafe. A presença dele está confirmada no jogo amistoso do Brasil contra o Qatar nesta quarta-feira (5).
Paris Saint-Germain e Seleção Brasileira se esquivam de comentar o caso. Familiares e amigos se pronunciam publicamente garantindo que ele é inocente e vítima de uma armadilha. A preocupação maior parece vir dos patrocinadores: ao menos quatro das 10 marcas manifestaram incômodo com o caso, segundo levantamento da Folha.
Comprovada ou não a acusação, a sentença já está dada: a mulher é sempre a ponta vulnerável. Não à toa, segundo o Atlas da Violência, são cerca de 1300 estupros por dia no país – dos quais apenas 135 são notificados.
*Jornalista, editora do Brasil de Fato no Rio de Janeiro e doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Edição: Daniel Giovanaz