8 de outubro de 2024

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Adeus, Geral: A luta de uma geração que não a conheceu

Texto e foto por Felipe Bianchi, no Portal Vermelho

Produzido por cinco estudantes para um trabalho de geografia, o documentário Adeus, Geral tem lotado auditórios e ganhado repercussão pela importância do debate que faz: o processo de exclusão e elitização em curso no futebol brasileiro.

Em 42 minutos de filme, Gustavo Altman, Martina Alzugaray, Matheus Bosco, Pedro Arakaki e Pedro Junqueira traçam um despretensioso, mas poderoso retrato da realidade enfrentada pelos torcedores do esporte mais popular do país. São entrevistas e relatos de jornalistas esportivos, personalidades do esporte e mesmo dirigentes, que refletem a gravidade do cenário, mas também contrapõem visões divergentes.

Não fosse pela estética de baixo orçamento – a qualidade de áudio e vídeo é típica de uma produção experimental ou amadora –, seria difícil apostar que os autores da obra sequer passaram a casa dos 20 anos (o que é, também, um alento aos que lutam). Adeus, Geral é certeiro. Transcende gerações e atinge, em cheio, mentes e corações. O seu brilho, talvez, esteja justamente aí: na resistência de uma geração de tenra idade, que nunca pisou “nas gerais” propriamente ditas, mas que tem sensibilidade para compreender a sua alma, a sua importância, e lutarem por essa causa.

Tudo nasceu de um trabalho de Geografia, cujo desafio era encontrar uma metáfora para o conceito de muro, conforme contam Matheus Bosco e Martina Alzugaray. Os dois falaram sobre o desenvolvimento do projeto e a relação do muro com as arquibancadas – ideia de Gustavo Altman – e sobre diversos outros temas, como o papel da mídia e o monopólio da Globo, o machismo e a luta por um futebol democrático e popular.

Leia a seguir.

Como foi a ideia de relacionar a elitização dos estádios com o conceito de ‘muro’? Vocês já vinham observando e refletindo sobre o tema antes?

Martina Alzugaray: A ideia de relacionar a elitização dos estádios com o conceito de ‘muro’ foi do Gustavo. A proposta da professora de Geografia era um trabalho sobre muros sociais. O Gustavo [Altman] convenceu o grupo dele, do qual ainda não fazíamos parte, que a elitização dos estádios é um novo contexto pra falar de muros sociais. Assim como muitos outros torcedores que também se vêem com dificuldades financeiras perante os preços dos ingressos de hoje em dia, eu já tinha certa familiaridade com o tema da elitização. Foi aí que eu me interessei pelo projeto e decidi entrar pro grupo.

Matheus Bosco: Nossa entrada no grupo foi um processo de fácil convencimento, já que todos somos apaixonados por futebol.

Como vocês enxergavam a questão da elitização antes do Adeus, Geral? E como enxerga agora?

Matheus Bosco: Antes eu tinha uma noção do que acontecia, por acompanhar o tema nas redes sociais e nos portais de notícia. Hoje, depois de ter aprendido muito com as nossas entrevistas, percebi como a elitização é um processo complexo e pouco transmitido para o povo, que acaba não sabendo o que realmente acontece.

Martina Alzugaray: Antes de produzir o Adeus, Geral, eu já sabia da segregação social proporcionada pela modernização dos estádios, pelo jeito que o processo se dá no Brasil. Mas durante a produção do documentário, notei a confusão gravíssima que é feita ao generalizar o torcedor de baixa renda como torcedor organizado. Afirma-se que pobre é torcedor organizado, e torcedor organizado só serve para fazer baderna, e dessa forma já se tem um pretexto para excluir esses torcedores dos estádios.

Mas quem afinal é o mais prejudicado pela elitização dos estádios é o torcedor comum de baixa renda, que não pode pagar a mensalidade dos programas de sócio-torcedor, e muito menos comprar ingressos na bilheteria para assistir os jogos com a sua família porque os preços das arenas ultrapassam suas condições financeiras. O torcedor comum também não tem acesso à parcela de ingressos reservada, por muitos clubes, para as organizadas. O torcedor comum de baixa renda é absolutamente ignorado na “modernização” dos estádios brasileiros.

Como é ser a única mulher entre quatro garotos? Acredita que reflete, de certa forma, o crescente envolvimento de mulheres neste debate? Como enxerga a importância das mulheres no combate ao machismo no futebol e nas arquibancadas?

Martina Alzugaray: A mulher, principalmente no esporte, é lembrada pela sua beleza e sexualidade diante do que a mídia retrata, e não por seu desempenho. Nas arquibancadas, os xingamentos machistas predominam. Além da falta de competições de futebol feminino, as mulheres são excluídas de toda a engrenagem do futebol. A mulher sofre até hoje para se inserir no futebol e isso é preocupante porque reflete um preconceito relacionado a um século de exclusão.

Mas ainda assim eu considero trabalhar com futebol. Gosto de dizer que o fato de eu ser a única mulher presente em um grupo de quatro meninos tem alguma representatividade, sim. Há um crescente envolvimento de mulheres nesse debate, e isso é fundamental. Na atualidade, as mulheres brasileiras não estão mais satisfeitas com o papel de coadjuvante imposto a elas. E se na indústria esportiva não há o devido espaço para a mulher ser protagonista, ela vai ganhando visibilidade nos espaços das arquibancadas e das redes sociais.

Que avaliação vocês fazem sobre o papel do monopólio da mídia, em especial da Globo, no cenário de decadência e descrédito do futebol brasileiro e suas entidades representativas, como CBF e federações regionais?

Matheus Bosco: O papel das entidades e da imprensa são prejudiciais ao futebol brasileiro. A CBF e a Federação Paulista de Futebol (posso falar com mais propriedade por ser de São Paulo) pouco fazem para fortalecer o nosso futebol, tanto dentro de campo, quanto nas arquibancadas. Ambas procuram punir e inibir o torcedor de fazer a festa na arquibancada e, por muitas vezes, determinam altos preços de ingressos para as competições, deixando de fora parcela significativa dos torcedores.

Já a grande mídia não se preocupa em colocar a elitização do futebol em pauta e em nada ajuda a mudar a situação do futebol brasileiro. As cotas de televisão, que poderiam ser uma das saídas dos clubes para gerar receita, são desiguais se compararmos clubes de maior e menor expressão, o que acentua a diferença de investimento dos times brasileiros.

Martina Alzugaray: O monopólio da mídia é um dos principais fatores no cenário de decadência do futebol brasileiro e suas entidades representativas. É a Globo quem dita o futebol brasileiro, seu calendário, manda na CBF que faz o desfavor de se submeter à emissora. As cotas de televisão representam hoje, com o patrocínio da camisa, a fonte de renda estrutural do clube, e a preferência da Globo para o Corinthians e para o Flamengo, times das mais numerosas torcidas, desequilibra o campeonato.

A Globo também aumenta cada vez mais o abismo entre os times de maior e menor expressão ao transmitir apenas jogos da primeira divisão, uma vez que a postura da Globo desestimula as demais divisões, não há investimentos, falta dinheiro das cotas televisivas para continuar tocando os times de menor expressão, que perdem seus torcedores para os times “grandes” que são transmitidos na televisão.

Vocês acreditam que há influência da Globo na questão da elitização dos estádios? É possível afirmar que eles ditam comportamentos e ‘tipificam’ o que seriam torcedores ‘desejáveis’ e ‘indesejáveis’ nos estádios?

Matheus Bosco: Acredito que o erro da mídia, de uma forma geral, está em não colocar a elitização em pauta, não discutindo seus aspectos positivos e negativos. Quanto ao modelo de torcedor, costumamos dizer que as emissoras gostam de mostrar o torcedor organizado em apenas dois momentos: na chamada de televisão – quando mostra a festa que eles proporcionam na arquibancada – e quando estão envolvidos em brigas – aí, julgam e dizem que deveriam acabar com esse tipo de torcedor.

Martina Alzugaray: A influência da Globo na questão da elitização do futebol é por conta do seu monopólio do poder. Além do patrocínio na camisa, da venda de jogadores e das vendas de ingressos, as cotas de televisão são uma fonte de renda estrutural dos clubes de grande expressão hoje, até mesmo superior às demais.

A Globo é a única alternativa para assistir aos jogos para 70% da população, que só tem TV aberta. Os interesses da emissora ficam em primeiro lugar, é claro, tornando os torcedores reféns de horários e dias de jogos impostos por um único veículo. Também é importante ressaltar a influência da Globo sobre os seus espectadores, que ao demonizar as organizadas e ditar comportamentos, ‘tipificam’, sim, o que seriam torcedores ‘desejáveis’ e ‘indesejáveis’ nos estádios.

Vocês estão surpresos com a repercussão que o documentário vem tendo? Acreditam que é uma forma de contribuir para o debate e para a luta por um futebol mais democrático e popular?

Matheus Bosco: Estamos muito felizes com a repercussão do documentário. É muito gratificante saber que existem centenas de pessoas engajadas no tema e com vontade de ver nosso filme. A maior surpresa, para mim, foi ver tantas salas lotadas para assistir o Adeus, Geral. Mais do que qualquer envolvimento na página no Facebook ou visualização do trailer, ter pessoas ali, na sala de cinema, para assistir ao nosso filme, é muito gratificante. Esse é nosso objetivo principal: promover esse debate para um futebol mais democrático, e achamos que, de certa forma, estamos contribuindo para isso. Estamos na batalha por um futebol para o povo.

Martina Alzugaray: Em setembro do ano passado, quando nós começamos a produzir o filme, nós nunca diríamos que o filme teria um dia a repercussão que vem tendo. Mas o documentário foi ganhando consistência. Sem interesses comerciais desde o começo do projeto, nosso objetivo tornou-se transmitir uma mensagem para o maior número de pessoas possível e colocar na mesa o tema da elitização do futebol, que já deveria estar sendo debatido, mas não é.

Entendemos as redes sociais como o espaço ideal para iniciar esse debate e passamos a investir na divulgação virtual, por meio de parcerias com páginas e canais de futebol no Facebook e Youtube, que nos permitem contato direto com quem nós queremos falar. Hoje, é muito gratificante ver o Adeus, Geral repercutir dessa forma, como pauta de jornais independentes e da grande mídia, porque o nosso objetivo de falar sobre a elitização do futebol só tem sentido se há retorno. E esse retorno é o debate, etapa fundamental na luta por um futebol mais democrático e popular.

*Jornalista do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e do Coletivo Futebol Mídia e Democracia