7 de dezembro de 2024

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Comunicação pública sequestrada: um ano da fusão entre TV Brasil e NBR

“Dia 10 de abril, entra no ar a nova TV Brasil” – assim foi a chamada da emissora gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2019. A principal novidade era a sua fusão com a NBR – TV Nacional do Brasil, canal controlado pelo governo federal e que cobria a agenda do poder Executivo. Em 2020, portanto, completou-se um ano dessa nova fase que alterou significativamente a gestão, a linha editorial e a essência da TV Brasil.

Por Alex Hercog*, na CartaCapital

Em meio a pandemia da covid-19, a falta de pluralidade e diversidade, uma das premissas da comunicação pública, fica ainda mais evidente na cobertura da emissora. Sem espaço para vozes dissonantes, a nova TV Brasil se limita a divulgar ações do governo federal.

Criada em 2007, a emissora atendia a uma demanda antiga da sociedade por um projeto para a comunicação pública no país. Um dos marcos de sua criação foi o “Manifesto pela TV Pública independente e democrática”, lançado pelos participantes do 1º Fórum Nacional de TVs Públicas, em 2007. Na carta, se afirmava que “o Brasil precisa, no seu trilhar em busca da democracia com igualdade e justiça social, de TVs Públicas independentes, democráticas e apartidárias”.

Por isso, a fusão da TV Brasil com a NBR vai na contramão da proposta de fortalecimento de um modelo de comunicação pública e faz cair alguns muros que o separava da comunicação estatal. Essa fronteira, que nunca foi facilmente demarcada, desmoronou sob o comando do presidente Jair Bolsonaro.

Público x Estatal

Os movimentos que impulsionaram a criação da EBC sempre pautaram o debate para estabelecer limites entre o “público” e o “estatal”, algo que inclusive era visto como novidade para alguns. “Em qualquer lugar do mundo que se fizer essa distinção de TV estatal e pública, ninguém vai entender. Essa é uma coisa inventada pelos brasileiros”, afirmou em 2007 o então presidente da Agência Nacional do Cinema, Manoel Rangel, participante do Fórum Nacional de TVs Públicas.

O próprio manifesto lançado pelo Fórum já trazia diretrizes fundamentais, como a afirmação de que “a TV pública deve ser independente e autônoma em relação aos governos e ao mercado, devendo seu financiamento ter origens em fontes múltiplas, com a participação significativa de orçamentos públicos e de fundos não-contingenciáveis”.

Outro ponto significativo da carta orientava a criação de um órgão colegiado deliberativo, onde o Estado e o governo não poderiam ter maioria na sua composição, e que seria responsável por definir “as diretrizes da gestão, programação e a fiscalização dessa programação da TV pública”.

 

Alguns dos princípios pleiteados pela sociedade foram incluídos na lei 11.652/2008, que criou a EBC, a exemplo do inciso que determina “a autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo”. A lei também proíbe o proselitismo e a discriminação político-partidária.

Os debates promovidos pela sociedade e a lei assinada pelo então presidente Lula se valiam da Constituição Federal e seu princípio de complementaridade entre os sistemas de radiodifusão privado, público e estatal. Tendo a defesa do protagonismo da sociedade civil na condução das TVs públicas, com limites à ingerência do Estado, se construía, portanto, o tal “paradigma” para a comunicação pública no Brasil.

NBR x EBC

Enquanto a EBC foi criada com o objetivo de produzir e difundir conteúdos informativos, artísticos e científicos que promovessem a cultura nacional, com incentivo às produções independentes e regionais, a NBR cumpria outra missão. Criada em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), a TV Nacional Brasil era responsável por informar as ações e agendas do poder Executivo. O próprio slogan já definia “A TV do Governo Federal”. Tinha, portanto, um caráter estatal.

Apesar de ter uma essência totalmente distinta da EBC, a NBR também enfrentou dificuldades para delimitar fronteiras – no caso, entre o governo e o personalismo da presidência. Fundada há menos de quatro meses da eleição presidencial daquele ano, a NBR sofreu críticas por exibir eventos de inauguração do então presidente e candidato à reeleição, e foi acusada de servir à propaganda eleitoral de FHC.

Já a TV Brasil sempre enfrentou o desafio de fazer da autonomia em relação ao governo uma realidade. Apesar do indicativo na lei, não existia fórmula pronta para a garantia desse princípio essencial. A fronteira que limitava a ingerência estatal estava em constante construção.

Ainda nos governos Lula e Dilma, havia contestações sobre a autonomia da TV Brasil. Nomeações pouco democráticas e uma linha editorial afinada com a agenda política dos governantes eram algumas das críticas feitas pela sociedade civil, em especial às entidades que atuam em defesa da liberdade de expressão e pelo direito à comunicação. Este Intervozes, inclusive, a exemplo do artigo publicado em 2015, com o questionamento: “EBC: comunicação pública ou governamental?”.

Mas para alcançar a tão sonhada autonomia, era preciso criar estruturas democráticas. Dentre as tentativas, a garantia de um mandato de quatro anos para o diretor-presidente, não concomitante com o do presidente da República. Assim, haveria uma continuidade na direção da EBC, mesmo com alternância no comando do governo federal. A criação do Conselho Curador, composto majoritariamente por representantes da sociedade civil, também era visto como um instrumento para assegurar a participação pública.

No entanto, durante sua ascensão à presidência, Michel Temer destituiu o Conselho e substituiu o diretor-presidente Ricardo Melo, que possuía mandato até maio de 2020. Apesar da ilegalidade, os órgãos de Justiça nunca reverteram essa decisão.

Além desses instrumentos que estruturavam, ainda que timidamente, os paradigmas para uma comunicação pública, a autonomia financeira também era vista como um pilar fundamental. Por isso, em 2008 foi definido que 75% do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel), cobradas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deveria ir para a EBC. Mas esse recurso foi bloqueado judicialmente em 2009, após ação impetrada pelas empresas de telefonia. Assim, os “mais de R$ 2 bilhões parados no Fistel” viraram lenda.

Fusão

Um dos impactos da fusão das TVs está justamente na nova programação da TV Brasil – que nas redes virou TV BrasilGov. Boa parte da programação em horário “comercial” é ocupada por programas infantis. Entre 7h e 19h, 10 horas e 30 minutos são dedicados a desenhos e animações. Ao longo do dia, algumas inserções voltadas para a divulgação de medidas do Poder Executivo ou coletivas de imprensa dos ministros também são exibidas.

Uma rápida busca pelas redes sociais da TV já revela o sequestro da comunicação pública pelo Estado. No canal no YouTube, entre os dias 6 e 9 de abril, a emissora postou 55 vídeos. Destes, 49 tratavam de ações do governo para combater a pandemia da covid-19, ou seja, 90% do conteúdo publicado.

Os vídeos trazem falas do próprio presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional General Augusto Heleno, o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, entre outros representantes do primeiro e segundo escalão do Executivo.

Nenhum espaço para especialistas em Saúde Pública contrários ao tratamento do coronavírus por meio da cloroquina, por exemplo, que vem sendo amplamente defendida por Bolsonaro em seus pronunciamentos, mesmo sem estudos clínicos rigorosos que comprovem a eficácia do medicamento.

O telejornal matutino “Brasil em Dia” passou a ter um conteúdo exclusivo sobre a agenda do Executivo. Já o “Repórter Brasil”, exibido à noite, tem tido o conteúdo público cada vez mais reduzido, perdendo espaço para informações de caráter estatal. Outro programa, o “Brasil em Pauta”, vem exibindo entrevistas com ministros focadas no plano de ação de cada pasta para combater a pandemia.

Na última segunda-feira 6, os ministros Sérgio Moro, Abraham Weintraub e Damares Alves foram os convidados. Moro ressaltou as ações em defesa das fronteiras, as medidas para evitar o surto do vírus entre a população carcerária e aquisição de equipamentos de proteção individual para agentes da segurança pública.

Weintraub destacou que o Ministério da Educação tem avaliado ampliar o homeschooling e o acesso à Internet para estudantes e escolas como forma de garantir a continuidade do ano letivo, sem especificar como fará isso e sem levar em conta as desigualdades no acesso e a ausência de formação dos professores para atividades virtuais.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que sua pasta é responsável pelos mais vulneráveis e que “ninguém vai ficar para trás”, destacando a criação de um aplicativo para denúncias de violência contra mulher durante o período de isolamento social, o acolhimento da população em situação de rua em abrigos improvisados e a parceria com comunidades terapêuticas, sem especificar quais, para o acolhimento de dependentes químicos também em situação de rua.

Em nenhum momento os ministros foram questionados sobre a efetividade das medidas ou cobrados por um plano concreto de trabalho, com diretrizes, prazos e responsabilidades definidas.

Casos de censura também são recorrentes e foram incluídas na denúncia feita por entidades da sociedade civil brasileira na audiência temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), realizada em março, no Haiti. Temas ligados aos direitos das mulheres, LGBTs, além da questão racial, transversal ao debate sobre segurança pública no país, também têm sido ignorados pela nova TV Brasil. A exclusão de fontes com opiniões contrárias ou críticas ao governo também virou regra.

No entanto, como relata um jornalista da TV Brasil que pediu anonimato, tais mudanças ainda enfrentam resistência de parte dos funcionários. “Desde a queda do Conselho Curador e a não implementação do Comitê de Programação, a participação está mais diluída. Mas todos os dias há uma disputa editorial entre os jornalistas que ainda topam fazer isso e seus chefes, para que o conteúdo final tenha um caráter cada vez mais público e menos propagandístico do governo”, afirmou.

Ele reconhece que esse desgaste diário acaba desestimulando os jornalistas, que muitas vezes cedem à autocensura – “ninguém aguenta brigar todos os dias”. De acordo com o funcionário, a tentativa do governo de emplacar conteúdos na emissora sempre existiu, mas se acentuou a partir da intervenção de Temer e alcançou um novo patamar com Bolsonaro.

“Agora não é apenas o governismo que está acentuado, mas também o conservadorismo trazido para dentro da redação”, destaca.

Sob a diretoria-presidência do general Luiz Carlos Pereira Gomes, a participação da sociedade civil e dos próprios funcionários vem sendo diluídas na EBC. Filiais, a exemplo da TV Brasil/Maranhão, foram extintas. A emissora também tem sido usada para produzir conteúdo de interesse das Forças Armadas, a exemplo dos programas “Fortes do Brasil” e “Faróis do Brasil”.

A fusão entre a TV Brasil e a NBR centralizou ainda mais as decisões nas mãos do governo, silenciou vozes dissonantes, censurou debates e ampliou o conteúdo estatal, em detrimento do público. Esse resultado já era previsto por diversas entidades que denunciaram sua ilegalidade durante audiência pública realizada logo após a medida do governo.

Em agosto de 2019, o Ministério Público Federal ingressou com uma Ação Civil Pública pedindo a anulação da fusão. O argumento é de que a Constituição proíbe o uso de canais de comunicação pública para propaganda e comunicação estatal. Os procuradores também se basearam na lei 11.652/08, que determina a autonomia da EBC em relação ao governo federal. A ação segue tramitando, mas sem nenhuma decisão judicial até o momento.

Dessa forma, a TV Brasil “comemora” um ano de fusão com a NBR sob denúncias e lamento de pessoas e entidades que sempre defenderam um projeto de comunicação pública. Como se não bastasse o desmonte que vem sendo promovido nos últimos anos, além das reiteradas ameaças de extinção da EBC, a TV Brasil ainda sofre com o aparelhamento do governo e o sequestro de sua função pública para servir à propaganda estatal e conservadorismo do presidente.

*Alex Hercog é formado em Relações Públicas e integrante do Intervozes