5 de outubro de 2024

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A chegada do 5G e os desconectados que ficam pelo caminho

Anunciada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) como “a tecnologia que vai revolucionar a conectividade”, o 5G, ou a internet móvel de quinta geração, estreou finalmente no Brasil em julho último, inicialmente na Capital Federal, devendo cobrir o País todo num cronograma que vai até o final de 2030. Com velocidade de 20 vezes a do 4G, baixa latência e maior eficiência energética, a novidade deve impulsionar o avanço da Internet das Coisas (IoT), aplicações em telemedicina e mobilidade, como veículos autônomos, cidades inteligentes e a indústria 4.0.

Rita Casaro I Sindicato dos Engenheiros no Estado de S. Paulo

O salto tecnológico acontece, contudo, em meio à exclusão digital ainda de milhões de brasileiros, apesar de 82% das residências já terem acesso à internet, conforme a pesquisa TIC Domicílios 2021, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Embora tenha havido crescimento importante, especialmente durante a pandemia, há cerca de 35 milhões de brasileiros desconectados e um contingente ainda maior sem o chamado “acesso significativo”, como define o diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), Demi Getschko.

Ou seja, aquele que permite às pessoas não só estarem conectadas à rede mundial de computadores, mas usufruir efetivamente o que ela oferece. “O que adianta estar em casa trabalhando remotamente se não consegue usar uma ferramenta tipo Zoom. E nós temos uma grande parte da população usando no celular, mais superficial, não vai fazer um grande estudo usando o celular”, pontua o engenheiro que integra o hall da fama da internet e recebeu do SEESP o Prêmio Personalidade da Tecnologia na categoria “Internet” em 2014

“Nas classes D e E, 90% dos internautas acessam exclusivamente pelo celular; na C, são 60%. São mais de 100 milhões de pessoas”, calcula Flávia Lefèvre, advogada especializada em direitos do consumidor, digitais e em telecomunicações, também com dados do Cetic. Para ela, que integra a Coalizão Direitos na Rede, é urgente ampliar a infraestrutura no País para superar o quadro de desigualdade confirmado por levantamento da Rede Nossa São Paulo sobre a distribuição de antenas na capital paulista. “No Itaim Bibi, que é um bairro rico, você tem 48,3 antenas por km2. Quando vai para Marsilac, na periferia, há 0,02 por km2.” Lefèvre lembra que, segundo a União Internacional de Telecomunicações, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), para se ter um serviço aceitável, o limite estabelecido é de 1.500 usuários por antena. Em São Paulo, a média é de 3.500, com clara vantagem às regiões mais abastadas: enquanto na Avenida Paulista são mil usuários por equipamento, em Cidade Tiradentes, são 18 mil.

Tal disfunção, argumenta, redunda no modelo precário disponível à população mais pobre. “No Brasil, a maior parte dos planos de acesso à internet é franquia com limites de dados mensais bastante reduzidos, em média de 3Gb, que não dá para assistir a duas aulas. Quando esgota, [o que acontece em geral] no 19º dia do mês, a pessoa só acessa WhatsApp e Facebook, numa quebra da neutralidade da rede.” A regra, que proíbe tratamento diferenciado de usuários, está prevista no Marco Civil da Internet aprovado em 2014, o qual também estabelece o serviço de conexão à internet como essencial para exercício da cidadania. Sem que isso seja adequadamente cumprido, lembra a advogada, “acontece o que houve na pandemia, [as famílias] não conseguem acessar benefícios sociais, dividem um plano para os pais trabalharem e os filhos estudarem”.

O leilão e a oportunidade desperdiçada

A expectativa de melhoria dessa situação hoje reside nas contrapartidas exigidas dos vencedores do leilão do 5G em novembro de 2021. Na licitação, as obrigações variaram conforme a frequência explorada. Para 700MHz, as empresas terão que fazer investimentos de 4G em localidades específicas e trechos de rodovias; na de 2,3GHz, as inversões serão em localidades e municípios; para a de 3,5GHz, está prevista a construção de redes públicas que incluem sete infovias para o Programa Amazônia Integrada e Sustentável e rede privativa de comunicação para a administração federal, além de atendimento com backhaul (que conecta o backbone, estrutura principal da rede, às redes na ponta) a 1.280 localidades e compromissos de cobertura com 5G; na de 26GHz, há o compromisso de conexão de escolas públicas, este incluído por pressão do Congresso e do Tribunal de Contas da União (TCU), relata Lefèvre.

Crítica das características da licitação que ofereceu, num só certame, as quatro frequências do espectro, a advogada aponta prejuízo aos cofres públicos, o que foi denunciado
pela Coalizão Direitos na Rede com base em parecer da Secretaria de Infraestrutura e Comunicações do TCU. Ela lança mão ainda da comparação com os Estados Unidos, que no ano passado licitaram apenas a frequência de 3,5GHz por R$ 148 bilhões, enquanto todo o pacote no Brasil foi arrematado por R$ 46,7 bilhões.

A advogada também considera as contrapartidas definidas insatisfatórias. “Foram muito reduzidas e insuficientes, inferiores ao valor de exploração dessas frequências. Temos um fosso digital imenso, o Estado poderia democratizar o 4G, e perdemos essa oportunidade.” Para completar, ela se mostra pessimista em relação ao cumprimento das obrigações estabelecidas. “É como o TCU falou, vai depender de as empresas de fato fazerem os investimentos. E a gente sabe, por um histórico de mais de 20 anos, que a Anatel não é muito boa em fiscalizar. O primeiro prazo do edital, pelo qual deveria em julho ter todas as capitais conectadas com 5G, já foi descumprido.”

Universalização é tarefa do Estado

O prejuízo que o Brasil ainda precisa recuperar relativo ao acesso à internet, lembra Lefèvre, remonta à Lei Geral de Telecomunicações (LGT), que completou 25 anos em julho e foi aprovada na onda das privatizações do período que incluíram o Sistema Telebras. “Já deveria ter contemplado a universalização da infraestrutura de acesso à internet. Mas a LGT deixou só a telefonia fixa no regime público e os outros ficaram no privado, sem que o Estado pudesse impor metas de universalização”, ressalta.

Ela afirma que a situação pode ser revertida se houver vontade política. “A LGT tem um dispositivo que diz que, por decreto, o Poder Executivo pode estender o regime público para serviços essenciais. Considerando que [o acesso à internet] teve esse reconhecimento pelo Marco Civil, nós esperamos que o próximo governo faça uma reformulação e recoloque as telecomunicações no compasso do interesse público.” Para além do benefício à população hoje desprovida do serviço, Lefèvre defende a proposta como fator de desenvolvimento econômico.

A afirmação converge com o que vem sendo propugnado pelo projeto “Cresce Brasil + Engenharia + Desenvolvimento” desde que foi lançado pela Federação Nacional dos Engenheiros em 2006, quando propunha a universalização da banda larga como tarefa que caberia ao Estado, ainda que os agentes privados tivessem espaço para atuar. “Política de universalização significa investimento público, que vem dos impostos, portanto, ratear por toda a sociedade o custo da universalização. Com investimento direto do Estado ou por empresas privadas, dando a elas a obrigação e contratos com equilíbrio econômico-financeiro”, assevera Marcos Dantas, autor da nota técnica sobre o tema e representante da comunidade científica e tecnológica no Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br). Ele lembra que, para isso, foi criado o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), instrumento jamais usado.

Considerado o pai da internet no Brasil e estudioso da rede desde os primórdios, Getschko, do NIC.br, atesta que se avançou muito na área no País, mas não se arrisca a prever quando a meta da universalização será cumprida, especialmente pela dificuldade de levar fibra óptica até os rincões mais longínquos, mas concorda que essa é função do Estado. “Uma empresa vai fazer um estudo de viabilidade econômica e concluir que uma cidade com 500 habitantes no meio do mato não compensaria os gastos para instalar a infraestrutura. Essa é a forma de pensar da iniciativa privada, não o jeito do governo, que tem que tratar de política pública”, resume.

Prioridade à educação

Em meio aos desafios a serem superados, ele defende prioridade à educação. “Deveria haver um projeto ‘todas as escolas conectadas’. Além de boa parte do ensino ter se tornado remoto durante a pandemia, precisa-se da conexão à internet, porque o material é disponível dessa forma.” Na sua avaliação, esse seria o ponto ideal para se investir, “até porque os nativos digitais são mais hábeis que os antigos e seriam um ponto focal de distribuição em casa”.

A realidade dos estabelecimentos de ensino tem sido aferida também pelo Cetic com o TIC Educação. “Temos distribuído medidores de banda nas escolas e feito aquelas perguntas típicas, se a conexão só atende os professores e a secretaria ou também os alunos; quantas conexões na sala de aula; quantos computadores por aluno”, descreve.

Para Getschko, além do acesso, é fudamental o equipamento utilizado. Ele recorre à analogia de Nicholas Negroponte, que idealizou o projeto internacional “um computador por aluno”, para deixar clara a essencialidade do item. “Imagine se nos tempos antigos você dissesse ‘esse aqui é o caderno da classe, cada um tem direito de usar por cinco minutos’. Isso seria uma barbaridade.”

Lefèvre faz coro à urgência em se garantirem condições de ensino e aprendizagem a todos os estudantes. “Quando vejo as propagandas de 5G, não consigo deixar de pensar que estamos caminhando para outra etapa tecnológica deixando para trás milhões de pessoas. Se tem um grupo muito reduzido de crianças que terá acesso a essa tecnologia, existem milhões que não conseguem assistir a aulas, não têm acesso às ferramentas de ensino de modo que possam estar em condições de igualdade”, conclui.