11 de dezembro de 2024

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Mudanças no Whatsapp podem ampliar ‘megafone’ das fake news

As eleições de 2022 confirmaram um movimento perigoso de disseminação de fake news nas redes sociais que já vinha sendo observado no Brasil desde o pleito de 2016.

No ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) recebeu mais de 300 ações relativas à campanha, 85 delas sobre notícias falsas. As redes sociais, incluindo aplicativos de mensagens, foram o palco principal da desinformação.

Por conta da onda de mentiras disseminadas, o Ministério Público Federal (MPF) pediu que WhatsApp adiasse o lançamento de uma funcionalidade, que na visão do MPF, poderia piorar ainda mais o cenário. 

Nara Lacerda | Brasil de Fato

A novidade seria o sistema de comunidades, que pode reunir até 50 grupos e permite o compartilhamento de mensagens para até 5 mil pessoas. Passadas as eleições, a plataforma colocou o recurso no ar.

A jornalista e pesquisadora Renata Mielli, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e integrante da Coalizão Direitos da Rede, afirma que é preciso discutir qual é o impacto da mudança em uma plataforma que garante criptografia de ponta a ponta nas trocas de mensagens.

“A criptografia é uma tecnologia fundamental para a defesa da privacidade das nossas comunicações. Qual é o questionamento que alguns pesquisadores têm feito? Quando você tem a capacidade de, em um único disparo, mandar uma mensagem para 5 mil pessoas, você já não tem mais uma comunicação interpessoal. O que você tem é uma nova forma de comunicação de massa. Será que é razoável que essa comunicação de massa seja protegida por criptografia de ponta a ponta?” 

Alcance

O WhatsApp é utilizado por mais de 2 bilhões de pessoas em mais de 180 países. Não há dados oficiais divulgados pela plataforma sobre o número de perfis ativos no aplicativo no Brasil. Mas pesquisa Datafolha do ano passado apontou que mais de 92% da população do país usa o serviço de mensagens. Ele é a rede social preferida de mais de 40% das pessoas entrevistadas e predomina em todas as faixas de renda.  

Pesquisas de consultoria em finanças e tecnologia indicam que a ferramenta alcança mais de 165 milhões de brasileiros e brasileiras. Esse número coloca o país em primeiro lugar entre as nações que mais usam a plataforma.  

Já o Telegram, de acordo com a Datafolha, alcançava em 2022 24% da população. O aplicativo é usado por mais de 500 milhões de pessoas em 200 países.  

Essa imensa base de perfis faz com que as plataformas de troca de mensagens tenham alcance considerável e se tornem terreno fértil para as notícias falsas. A velocidade de propagação da desinformação e a certeza de que o destinatário vai receber a mentira colocam essas ferramentas em posição de vantagem na comparação com outras redes sociais. 

Embora as plataformas desenvolvam mecanismos para combater a circulação de mentiras, o problema segue causando impacto considerável.  

“Temos que discutir literacia (alfabetização) digital. É um tema que tem que entrar nos currículos escolares. Não tem bala de prata, não tem nenhuma medida que vai acabar com a desinformação de uma hora para outra. É um processo e nós precisamos nos formar para termos um ambiente comunicacional mais saudável na sociedade Brasileira”, alerta Renata Mielli. 

Confira a entrevista na íntegra a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria. 

Brasil de Fato: Antes de falarmos das mudanças específicas anunciadas pelo WhatsApp, como é possível explicar a imensa capacidade de disseminação de fake news nas redes sociais e nas plataformas de compartilhamento de mensagem em geral? 

Renata Mielli: Essa é uma questão muito importante, porque é o modelo de negócios e o design dessas plataformas que são determinantes para dar alcance e visibilidade jamais vistos para conteúdos de desinformação. Principalmente em plataformas que nós chamamos de abertas, como Facebook, Instagram, TikTok e YouTube.  

O algoritmo dessas plataformas, o sistema automatizado dessas plataformas, acaba dando mais relevância para conteúdos que engajam mais audiência. Já há muitos estudos que mostram que conteúdos que são de disparo rápido no nosso sistema cognitivo, que a gente olha e, sem muita reflexão, reage a eles, têm mais capacidade de viralização. 

Esses conteúdos têm forte caráter moral, emocional e, particularmente naqueles conteúdos que estimulam  medo e ódio. A desinformação é construída exatamente para aguçar esse tipo de emoção no nosso sistema cognitivo.  

Ela trabalha com essas questões, com essas manchetes, que causam uma indignação e raiva. Isso vai gerando um processo de compartilhamento em larga escala, porque você não para para refletir. Você compartilha o conteúdo porque é a favor ou porque é contra. Um exemplo é a fake news de que Marisa Letícia Lula da Silva foi vista viva em um Roma depois de ter sido enterrada. Foi um conteúdo que deu um muito engajamento e viralizou demais.  

Todo mundo sabia que aquilo era uma fake news, era uma mentira lavada, né? Outras mentiras são mais sutis. Essa era muito explícita. Mas ela ganhou grande viralização, porque mesmo aquelas pessoas que ficaram completamente indignadas compartilhavam para denunciar. É um sistema muito coordenado e que usa exatamente o algoritmo dessas plataformas. 

O caso dos serviços de mensageria é um pouco diferente, porque você não precisa exatamente do algoritmo para dar escala e velocidade, mas você tem uma topologia de mensagens, que permite o reencaminhamento.  

Ao longo dos anos, em função das várias denúncias, o WhatsApp, por exemplo, foi reduzindo a capacidade de encaminhamento. [Essa decisão] tem a ver com a desinformação. Mas você conseguia fazer com que isso tivesse alcance muito rápido e exponencial, porque você mandava isso para grupos de 512 pessoas e assim por diante.  

Isso segue num rastilho de pólvora. Os serviços de mensageria são mais eficazes porque mensagem enviada é mensagem recebida. Quem tem a estratégia da desinformação tem a segurança de que aquele conteúdo vai ser entregue. Por isso que essas plataformas têm tanto papel na desinformação contemporânea.

O WhatsApp tem também um componente de intimidade que amplia essa suscetibilidade de usuários e usuárias? 

Exatamente. Isso gera um ambiente de confiabilidade, de credibilidade. Então, se você recebe um conteúdo de um parente tão próximo seu, você confia na origem. Mas tem uma outra questão envolvida aí, que é o fato de que o WhatsApp é um aplicativo instalado em praticamente 100% dos aparelhos celulares no Brasil. 

As conversas trocadas dentro desse aplicativo não são descontadas da franquia de dados das pessoas. O Brasil é um país com uma pobreza imensa, que cresceu nos últimos anos e as pessoas têm o seu aparelho celular contratado na modalidade pré-paga.  

Elas recebem aquilo em um grupo de WhatsApp, que já tem este ambiente de credibilidade, e nem têm a possibilidade de checar em um site, porque não tem um plano de dados que o permita acessar a internet para checar aquela informação. Gera um ambiente de insegurança informacional muito grande.

Então a segmentação econômica e as condições sociais das pessoas, também têm sido levadas em consideração para aumentar o alcance das fake news?  

Exatamente. Usa, inclusive, dados coletados e a inteligência disponível nas plataformas abertas, que fazem um perfilamento, traçam um perfil praticamente individual de cada usuário para compreender suas disposições em acreditar ou não, em reagir de determinada forma aos vários conteúdos.  

Nós estamos vivendo um grande experimento sociopsicológico cultural dentro dessas plataformas. Elas sabem a nossa religião, nosso time de futebol, nosso perfil e usam isso para manipular os nossos comportamentos, nossas emoções. Sabem se somos pessoas mais abertas a experiências ou mais conservadoras. 

Tudo isso é matéria-prima para a produção cada vez mais segmentada de desinformação. É importante dizer que há cada vez mais uma dinâmica multiplataforma. A desinformação circula com uma estratégia combinada e coordenada nas diversas plataformas, desde a coleta de perfilamento de dados até o direcionamento dos conteúdos para cada usuário. 

O esforço individual para lidar com também depende de fatores sociais? 

Sim, e no Brasil nós temos outros fatores que agravam esse problema. Baixa escolaridade, um índice de leitura muito pequeno, mesmo nas classes escolarizadas. Estamos falando aqui de pessoas que têm nível superior, que são profissionais de nível superior que passaram pelos bancos universitários, mas que não têm hábitos de leitura de jornal, de literatura.  

Infelizmente Brasil tem um déficit cultural, educacional muito grande. É um país muito despolitizado. Então, essa desinformação acaba sendo mais funcional no nosso país. Não que ela não ocorra e não tenha impacto em outros países. Mas no Brasil, por conta de todo um contexto histórico, cultural e social, ela acaba tendo muito mais permeabilidade. 

As plataformas, eventualmente, divulgam medidas para mitigar o problema. No entanto, recentemente, o WhatsApp divulgou mudanças na composição e na organização de grupos. Essas mudanças podem impactar a propagação de mentiras por meio dessas plataformas? 

Eu creio que sim. Por mais que nós já tenhamos o Telegram – que é um aplicativo no qual a desinformação tem papel de mobilização e disseminação muito grande e sabemos que parte da organização e da estrutura da extrema direita no Brasil se mobiliza por ele – ele é menos usado, mas tem grupos com dezenas de milhares de pessoas. 

O WhatsApp, que busca ser uma empresa que dialoga com a sociedade civil, com o Estado brasileiro, tentando estabelecer mecanismos, ele reduziu o número de pessoas nos grupos para 256 pessoas. Reduziu o limite de encaminhamentos. 

Internacionalmente, tem aí uma disputa de mercado. Em função dessas funcionalidades do Telegram, o WhatsApp estava perdendo fatias de mercado. Ele começou a estudar e a lançar em outros países um novo recurso chamado de comunidades, em que você pode organizar diversos grupos em um mesmo lugar, permite a ampliação de grupos com mais de 1 mil pessoas. 

Cada comunidade que podem ter até 50 grupos. Esses grupos vão possuir alguns administradores que podem disparar, dentro do grupo, mensagens para até 5 mil pessoas de uma vez só.  

O que isso muda? Muda pelo fato de que o WhatsApp está presente em quase 100% dos aparelhos e é um instrumento central na difusão da informação, você amplia exponencialmente o megafone da desinformação dentro do WhatsApp.  

Qual é problema? O problema é que você não tem condições de conhecer. O WhatsApp foi desenhado inicialmente para ser um serviço de trocas de mensagens interpessoais. A grande importância do WhatsApp era que essas mensagens interpessoais eram protegidas por criptografia de ponta a ponta, garantindo a privacidade do usuário nessas trocas de mensagens.

Isso é muito importante, quero reforçar aqui. A criptografia é uma tecnologia fundamental para a defesa da privacidade das nossas comunicações.  

Qual é o questionamento que alguns pesquisadores têm feito? Quando você tem a capacidade de, em um único disparo, mandar uma mensagem para 5 mil pessoas, você já não tem mais uma comunicação interpessoal. O que você tem é uma nova forma de comunicação de massa. 

Será que é razoável que essa comunicação de massa seja protegida por criptografia de ponta a ponta? Então, essa é uma discussão que a gente precisa ter.  

É claro que sempre vai ter os prós e os contras. Há grupos, por exemplo, de defensores de direitos humanos, de pessoas que fazem denúncias de crimes contra a Amazônia, que usam essas plataformas com criptografia para trocar informações e se protegerem. 

Mas eu imagino que essas pessoas não fazem disparos de mensagens para 5 mil, 10 mil ou 20 mil pessoas. Isso é propaganda.  

Então, esse tipo de mecanismo pode fazer com que a desinformação, o discurso de ódio, os conteúdos antidemocráticos, que inclusive levaram ao 8 de janeiro, tenham um super megafone para atingir muito mais pessoas protegidas por uma ferramenta de privacidade que é intransponível do ponto de vista do que é o conteúdo da mensagem que está sendo compartilhada. 

É preciso que o estado brasileiro, com apoio da sociedade, discuta mecanismos de regulação desses novos serviços. Isso já vinha sendo discutido no Brasil antes dessa nova funcionalidade das comunidades. O projeto de lei 2.630 foi um projeto no qual um dos temas mais polêmicos era o que fazer com os serviços de mensageria. Agora isso se tornou ainda mais urgente do que nunca com essa nova funcionalidade.  

Edição: Thalita Pires