Por trás de Milei está a ruptura do tecido social argentino, avalia a deputada: não é possível tomar um café com quem, nas redes, banaliza o holocausto, defende a ditadura. Em entrevista aos jornalistas Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva, concedida na quinta-feira (19), em seu gabinete no Palácio da Legislatura, em Buenos Aires, Victoria Montenegro, legisladora da Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA) compartilhou suas impressões sobre as eleições que serão realizadas neste domingo (22) e os desafios colocados pelo pleito.
Por Felipe Bianchi e Vanessa Martina-Silva, de Buenos Aires (Argentina) para a ComunicaSul*
Legisladora da cidade de Buenos Aires, Victoria Montenegro levou 25 anos para conhecer suas origens. Ela é a 95ª neta roubada pela ditadura argentina e que foi recuperada graças ao trabalho incansável das Avós da Praça de Maio. Assim, foi na política que encontrou seu passado e pôde reconstruir sua identidade.
Diante de um cenário em que se debate a possível vitória de um candidato com características fascistas, de extrema-direita e antinacionalista, que é o caso de Javier Milei, Montenegro destaca a disputa que se trava na sociedade argentina em torno do senso comum, de mentes e corações, diante da possibilidade de perda de muito dos direitos conquistados ao longo dos anos. Para ela, o paradigma Milei é baseado em um “discurso insano”, construído a partir da negação da história com objetivos econômicos.
Durante a entrevista concedida à Agência ComunicaSul e que dividimos em duas partes, sendo esta a primeira delas, Montenegro denuncia a existência de um novo Plano Condor [campanha orquestrada pelos Estados Unidos e pelas ditaduras do Cone Sul para eliminar líderes insurgentes e opositores durante a década de 1970], apontando que, atualmente, esse processo se dá via lawfare — expediente aplicado contra Lula e Cristina Kirchner, por exemplo, consistindo no conluio entre mídia e a Justiça para corroer reputações e fabricar condenações criminais.
Nesse sentido, diz, “primeiro é construído um roteiro, que foi adaptado para os meios de comunicação e hoje é amplificado pelas redes sociais e depois a Justiça o utiliza para construir um processo” contra os políticos do campo progressista, como foi o caso com Rafael Correa, ex-presidente do Equador, Cristina e Lula.
Por meio desse mecanismo, segue a deputada, “não importa se é ou não verdade, ou se o processo vai avançar, porque o dano já está feito e no senso comum da sociedade isso faz com que se acredite menos na política e cada vez menos em um projeto”.
“Ao mesmo tempo, vão sendo instalados discursos insanos e violentos, com objetivo de instalar modelos econômicos de saque dos recursos naturais dos nossos países, mas também subjugar o povo, a sociedade e principalmente os mais jovens, que não conseguem dimensionar a importância de todo esse processo histórico, de toda essa construção.”
Além disso, há uma intenção evidente de acabar com “nossa esperança com relação a um futuro diferente, que esteja de acordo com nossa própria capacidade e com nossos próprios recursos”.
Plano Condor 2.0
Esse Plano Condor 2.0 é aplicado de forma diferente em diversos países da região e é o que permite a ascensão de políticos como Javier Milei, na Argentina; Jair Bolsonaro, no Brasil; e Nayib Bukele, em El Salvador. A principal finalidade, segue Montenegro, é a mesma em todos os lugares: “instalar esse modelo neoliberal, destruir o tecido social e aniquilar qualquer foco de resistência”.
Ela explica que quando os operadores do Plano Condor saíram de nossos países, com o fim das ditaduras militares, o fizeram com o objetivo de voltar o mais breve possível.
No caso argentino, esse processo se dá através do voto, com a eleição de Mauricio Macri, em 2015, e tem Cristina Kirchner como alvo principal a ser atacado. No Brasil, é promovido o golpe de Estado contra Dilma Rousseff, além da perseguição e da construção de Lula como um inimigo do país, o que finalmente culmina em sua prisão.
O cenário boliviano é o único diferente, aponta a legisladora. Isso porque o país foi o único em nossa região que sofreu um golpe de Estado armado, contra o então presidente Evo Morales, em 2019. Isso acontece porque a Bolívia havia promovido uma reforma judicial. Para todos os demais, já não são necessárias as polícias ou dos militares.
Risco Milei
Questionada sobre a possibilidade de a Argentina passar de referência na responsabilização por crimes cometidos na ditadura a um país que elege um candidato que não é igual, mas está na mesma prateleira de Jair Bolsonaro, Montenegro é pedagógica:
“O poder econômico coopta, também, as novas formas de comunicação, invadindo as redes e encontrando uma geração que já nasceu com direitos e democracia, portanto julga esses direitos como naturais, sem dimensão de seu custo. Se são naturais, é como se não houvesse risco de perdê-los.”
E acrescenta: “nisso volta-se a promover um discurso que parecia impossível de retornar, negando a história. O que está em disputa, para além dos governos, é o sentido comum de um Bolsonaro ou de um Milei, pois este tipo de construção atravessa o limite do que é real e palpável”.
Por trás de tudo, arremata, está a ruptura do tecido social, porque é como “se você pudesse tomar um café com uma pessoa que, nas redes sociais, te insulta, banaliza o holocausto, defende a ditadura… A pessoa é uma só, não há uma ruptura entre o que é e isso está em disputa hoje”.
“Isso funciona, nitidamente, em favor de um interesse político, econômico e coloca em xeque a democracia”. Esse ponto, destaca Montenegro, é uma diferença com os processos vivenciados anteriormente, quando os objetivos eram econômicos, com os “saques que a direita sempre faz quando governa”. Para que isso aconteça, há uma “banalização do mal em nossas sociedades e isso é muito perigoso”.
Esse quadro interfere no fator eleitoral, aponta. Ela cita como exemplo o caso do Brasil que, quando elegeu Bolsonaro “o fez contra sua própria sobrevivência”. Isso se vê em todo o mundo. “Na Alemanha, mesmo com a existência de leis contra isso, há o crescimento de grupos neonazistas”.
Dessa forma, “há uma disputa novamente pelo valor da vida e isso nos obriga a repensar nossa história e como construímos pontes com as novas gerações, porque são muitos anos de luta, de caminhos… e é preciso trazer fazer isso para uma geração que vive do imediatismo, onde tudo tem que ser satisfatório e que, mesmo que se esteja sofrendo tremendamente, as pessoas devem parecer felizes para poder pertencer a esse mundo de fantasia”.
Com relação ao cenário pré-eleitoral na Argentina, a deputada é taxativa: “estamos em um cenário, sobretudo com as gerações mais jovens, que é muito complexo, muito complexo porque temos que encontrar uma maneira de ajudá-las a proteger o que nós construímos em termos de direitos e é isso que está em disputa”.
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