9 de maio de 2025

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A proposta do Papa Francisco por um mundo civilizado e o silêncio da mídia

9 de maio de 2025

A fumaça branca da chaminé saiu pelo telhado da Capela Sistina, por volta das 13h desta quinta-feira (08/05). Habemus papam! comemoraram bilhões de católicos pelo mundo afora, após as quatro rodadas de votação, que definiu o sucessor do papa Francisco.

Por Tatiana Carlotti, para o Barão de Itararé 

Aos 69 anos, com uma trajetória de serviços prestados no Peru, o norte-americano Robert Prevost entrou cardeal na Sala das Lágrimas e dali saiu o novo papa Leão 14. O nome oponente, ante a humildade do papa do povo levantou dúvidas, a nacionalidade do papa também.

Porém, aos poucos, as informações chegaram. “Herdeiro do progressismo de Francisco”, um ‘bergogliano radical’, “homem de confiança” de Francisco, a considerar a forma como ele vem sendo apresentado, as expectativas são promissoras. 

Foi Francisco, por exemplo, que o nomeou, ainda em 2014, bispo da diocese de Chiclayo, no Peru, levando-o a conhecer a fundo os problemas da América Latina. Em 2019, novamente, Francisco o nomearia para a Congregação para o Clero e, um ano depois, para a Congregação para os Bispos. 

Em um mundo sob abissal concentração de renda, devastado por guerras e genocídios e ante a expectativa de catástrofes climáticas, os desafios do novo papa não serão pequenos. Os passos de Francisco, porém, abriram um caminho que demanda força e coragem para ser trilhado. 

Em seu último ato, o Papa do Povo ordenou que o ‘papa móvel’, veículo que ele usava para se aproximar das massas, fosse transformado em uma clínica móvel para os palestinos em Gaza.

“Lembro dos telefonemas diários que o Papa Francisco fazia para a paróquia em Gaza, acompanhando o sofrimento do povo, submetido ao genocídio imposto pelo Estado de Israel”, comentou o jornalista Lalo Leal Filho, na abertura do debate promovido pelo Centro de Mídia Barão de Itararé e por ele mediado na última segunda-feira (05/05).

Assista abaixo a íntegra da live sobre o legado do Papa Francisco e o futuro da Igreja Católica: 

Ocorrido às vésperas do conclave, que teve início no Vaticano na quarta-feira, o debate reuniu Frei Betto, um dos mais importantes nomes da Igreja progressista no Brasil e a pastora Romi Bencke, secretária geral do CONIC, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil. 

Eles conversaram sobre o legado de Francisco, elencaram suas principais marcas e atuais desafios da Igreja Católica. 

Francisco tinha lado 

Uma dessas marcas, destacou Frei Betto, foi a coragem de Bergoglio. “Ele se posicionou abertamente a favor da defesa da população de Gaza massacrada pelo genocídio do Estado sionista de Israel”, o que irritou “profundamente” o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, a ponto dele retirar as condolências enviadas ao Vaticano, destacou. 

Prevost, inclusive, assume o papado dias depois de Netanyahu obrigar milhões de palestinos a se deslocarem, mais uma vez, em seu plano de limpeza étnica. “Não sei o que eles vão fazer, porque são 2 milhões de pessoas”, lamentou Betto.

“Francisco foi um homem de posições, um homem de decisões, um homem que tinha lado”, destacou, ao pontuar que o cardeal Dom Cláudio Hummes foi quem sugeriu a Bergoglio adotar o nome de Francisco. 

Durante as greves do ABC, ao ser chamado pela FIESP para mediar o diálogo entre empresários e sindicalistas, Dom Cláudio, que era bispo do ABC paulista na diocese de Santo André, recusou o convite. 

“Eu não posso aceitar esse convite porque eu tenho lado Eu não sou neutro, eu estou do lado dos trabalhadores”, disse o cardeal. “Assim também era o Papa Francisco, ele tinha lado”, afirmou Betto.

Sobre o conclave, Frei Betto lembrou que o Brasil teve uma chance de fazer um papa durante a morte de João Paulo I, que ficou apenas 33 no papado. No conclave de 1978, o cardeal de Fortaleza, dom Aloísio Lorscheider, obteve 2/3 dos votos, mas ele recusou o cargo porque tinha oito pontes de safena. 

“O Brasil perdeu uma enorme chance de fazer o primeiro papa latino-americano”, apontou.  Em seu lugar, subiria o cardeal polonês Karol Józef Wojtyła, o papa João Paulo II. 

Frei Betto também destacou as críticas de Bergoglio à natural tendência ao conservadorismo da Igreja Católica, manifesta, por exemplo, na “dificuldade de se vencer a misoginia na igreja e permitir que as mulheres sejam sacerdotes”.

Francisco também foi um contundente crítico ao clericalismo, lembrou Frei Betto, explicando ser esta uma tendência de deixar “tudo centrado na figura do padre e não da comunidade, como acontecia nas comunidades eclesiais de base, que não foram varridas, mas retrocedidas pelos 34 anos de pontificados de João Paulo II (1978 a 2005) e de Bento X (2005 a 2013)”. 

Tiro no pé

Frei Betto também comentou a postagem nesta semana nas redes oficiais da Casa Branca, mostrando Donald Trump vestido de papa. 

(Reprodução / @WhiteHouse)

“É um presente de Deus. Eu conheço bem a Igreja por dentro. A Casa Branca emitir uma foto do Trump vestido de papa deve ter irritado até mesmo os conservadores”, afirmou. 

Frei Betto descartou, após o episódio, a possibilidade de nomeação de alguém vinculado a governos de direita.  

“A igreja tem um espírito de corpo muito forte. Nós brigamos internamente, temos pessoas de direita, de esquerda, de centro, do alto e de baixo, mas estamos na mesma instituição. Não saímos por aí formando outras igrejas ou dando uma banana para aqueles que discordam”, detalhou.

“A Igreja, por incrível que pareça, embora seja uma instituição monárquica, tem como cabeça o único monarca absoluto do Ocidente, que é o papa. Não tem nenhuma instância que possa questioná-lo, julgá-lo, censurá-lo ou condená-lo. Felizmente, os papas não usam mais esse poder, o que seria um absurdo”, complementou.

“Os cardeais dos Estados Unidos que adoram o Trump e que chamaram o papa Francisco de comunista, de marxista, devem estar extremamente constrangidos. A mancada de Trump vai beneficiar muito os críticos dessa política de direita”, apontou. 

E, antes do resultado do conclave, Frei Betto previu: “fica muito difícil agora escolher alguém identificado com a ascensão neofascista que se propaga pelo planeta. Foi um tiro no pé, uma burrice porque não foi algo que alguém fez, mas a Casa Branca assumiu. Uma irresponsabilidade total. Foi uma ofensa que deve ter irritado muito”. 

Frei Betto também apontou algumas peculiaridades do conclave que passam despercebido para a grande maioria das pessoas. Ele contou, por exemplo, que um cardeal lhe confidenciou o que ocorre nos bastidores. “Em geral, a primeira votação é meramente simbólica. Ela serve para homenagear um cardeal que já está muito idoso”, daí a fumaça preta que vimos na manhã da última quarta-feira.

Também contou que o papa Francisco nomeou 80% dos cardeais eleitores, ponderando que isso, no entanto, não seria uma garantia. Em geral, explicou, “quando o Papa nomeia um cardeal, ele leva em consideração o consenso entre os bispos daquele país. Então, ele não vai nomear um cara extremamente avançado em um país onde os cardeais são de tendência conservadora”.

Dimensão pastoral

Romi Bencke, secretária geral do CONIC, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil, elencou as várias marcas de Francisco, em particular, seu posicionamento frente às principais crises globais, como o seu famoso Laudato si e a defesa contundente de união para o combate à crise climática. “O Papa Francisco se expressou por uma via pastoral. Um dos seus grandes legados foi resgatar essa dimensão pastoral”, apontou.

Foto: Divulgação

“A partir do momento em que no Laudato si, ele critica o sistema econômico que leva à ruína do planeta, [Francisco] se vale do carisma profético para chamar atenção sobre o momento limite do planeta Terra”, destacou. 

Ele também falou sobre o fim das guerras. “O planeta e os países vivem a iminência de uma Terceira Guerra, como dizia o próprio papa Francisco, temos terceiras guerras acontecendo a conta-gotas, de forma homeopática nos países todos pelo planeta inteiro. Não conseguimos mais falar de paz”, avaliou.

Bencke lembrou que no pós-II Guerra, as igrejas, de modo geral, “envolveram-se com movimentos pela cultura de paz e contrários à corrida armamentista. Elas denunciavam os armamentos nucleares”. Hoje, porém, “há um silenciamento de todas as agendas relacionadas à corrida armamentista”.

O papa Francisco, apontou, “foi um dos líderes cristãos que cumpriu esse papel”. Em sua avaliação, “de uma forma ou de outra, Francisco desestabilizou algumas alianças de poder”, daí os movimentos contrários a ele.

Francisco, um papa ecumênico

A presidente da CONIC também destacou o diálogo entre as igrejas cristãs, “especialmente entre a Igreja Católica Romana e as igrejas do chamado protestantismo histórico (Igreja Anglicana, Luterana, da aliança das Igrejas Batistas, Presbiterianas Independente, Igreja Presbiteriana Unida entre outras”.

Durante a ditadura, lembrou, esse diálogo foi determinante. “Foi no movimento ecumênico que começaram as primeiras denúncias internacionais dos casos de tortura que ocorriam nos porões da ditadura”, apontou, trazendo o exemplo do dossiê Brasil Nunca Mais.

E, também, da missa celebrada por Dom Paulo, pelo rabino Sobel e o reverendo James Wright, por ocasião da morte do jornalista Vladimir Herzog, na Catedral da Sé, em outubro de 1975. “Esse movimento mostrou que as igrejas desempenham e podem desempenhar um papel importante na denúncia e na promoção dos direitos humanos”, frisou.

Afirmando haver um retrocesso disso, ela apontou uma crescente tendência dentro das igrejas de se preocuparem muito mais com a identidade dogmática, e muito menos com as questões ligadas aos direitos humanos e às desigualdades sociais.

“O Papa Francisco, porém, assumiu o papel de denunciar as guerras e dizer, com todas as letras, quem é o responsável pelas mudanças climáticas e assim por diante”, afirmou.

Tempos difíceis

Bencke também avaliou que a escolha do novo papa acontece em um “momento de profunda incerteza, afinal, não sabemos qual será o futuro do próprio planeta”. Neste sentido, o conclave é de extrema importância para todo o conjunto de igrejas cristãs. “Foram inúmeros os contatos [do papa Francisco] com lideranças espirituais de outras denominações religiosas”.

Ela ressaltou o esforço do pontífice em manter um diálogo interreligioso em nível global. Ela lembrou, inclusive, a participação do papa Francisco nas celebrações dos 500 anos da Reforma Protestante de 1517, conduzida por Martinho Lutero e organizada pela Federação Luterana Mundial, com sede em Genebra.

Francisco participou dessa celebração, em uma postura de “profunda igualdade”. “Foi a primeira vez em que a Igreja Católica e as igrejas protestantes, no caso luterana, celebraram juntos um aniversário da Reforma. Isso tem um valor simbólico muito grande. É um reconhecimento, um gesto de profunda reconciliação e reconhecimento mútuo”, salientou.  

Francisco também foi o primeiro papa a ir até a sede do Conselho Mundial de Igrejas, que reúne mais de 300 igrejas protestantes do mundo todo. Até então era a entidade que ia ao Vaticano. “Ele conseguia se colocar e romper com a hierarquia”, afirmou.

O mesmo se deu em relação aos líderes religiosos do Oriente Médio, em um momento de profunda polarização e ruptura de acordos históricos. “Ele foi um papa que fez o caminho contrário e reafirmou a importância da unidade, da proximidade e do reconhecimento do outro”.

Papel da mídia

Por fim, Lalo salientou que nós nunca ficamos sabendo desses atos importantíssimos que o Papa Francisco fez ao longo de todos esses 12 anos, porque que tanto a mídia brasileira quanto a internacional só falaram dele quando surgia problemas na questão dos costumes que provocavam polêmica. 

“A construção de uma ordem internacional mais civilizada que foi a grande proposta do Papa Francisco não apareceu na mídia”, lamentou.

Bencke, ao concordar, trouxe o exemplo da forma como a mídia comercial insiste em afirmar que o Brasil é um país majoritariamente católico, abordando de forma pejorativa as religiões protestantes. 

“A Páscoa, celebrada todos os anos pela Igreja Católica, é uma festividade cristã, de católicos e protestantes, mas nessa coisa pejorativa, muitas vezes feita em relação às igrejas evangélicas, isso não é dito”.

Além disso, apontou, as excentricidades que existem no mundo evangélico são muito mais noticiadas do que “o aspecto relacionado à atuação pública das igrejas e o seu engajamento político, no bom sentido da palavra”.