Por Felipe Bianchi
Motivo de insônia para os barões da mídia no continente, as leis aprovadas na Argentina e no Uruguai para regular a radiodifusão – comumente referidas como ‘Ley de Medios’ – foram discutidas e esmiuçadas por Nestor Busso, do Conselho Federal de Comunicações da Argentina, e Sergio de Cola, do Conselho de Telecomunicações do Uruguai. O debate, ocorrido neste sábado (19), em São Paulo, integrou a programação do Seminário Internacional Mídia e Democracia nas Américas.
Apesar de promoverem a liberdade de expressão e ‘desmontarem’ os monopólios midiáticos em seus países, as legislações enfrentam a reação das grandes empresas privadas de comunicação: em ambos os países há um processo de constante judicialização da lei, criando entraves para a sua implementação.
Conforme explica Busso, a luta pela aprovação da Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual argentina remete a 2004, quando diversos setores populares se unificaram em torno da pauta da mídia. “Tínhamos uma lei imposta pela ditadura militar, em 1978, que além de defasada, era conveniente apenas ao poder econômico”, diz. “A Argentina sempre teve uma forte concentração de meios. Só o Clarín contava com 270 serviços de rádio e TV, além de jornais e outros investimentos empresariais”.
Somado ao monopólio dos direitos de transmissão dos jogos de futebol, dominados pelo Clarín e transmitidos apenas na TV paga, o cenário levou a sociedade a apresentar “21 pontos básicos pelo direito à comunicação” à presidenta Cristina Kirchner. “O importante”, avalia Busso, “foi sair do mundo da comunicação, das organizações do setor, para ascender ao conjunto da sociedade. A questão do futebol foi fundamental no despertar da sociedade para o debate”.
Cristina levou a discussão ao Congresso em 2008 e se antes a mídia silenciava e interditava o debate, passou a acusar o governo de impor uma ‘lei da mordaça’. Apesar da campanha midiática contra a iniciativa de regulação, 15 mil argentinos marcharam rumo ao Congresso para levar o anteprojeto de lei, produto de fóruns públicos com participação social. A votação terminou em 147 a 3, no dia que ficou marcado pelo mote “um gol da democracia”.
Entre audiências públicas e mudanças no projeto, a população continuou a apoiar a lei: 40 mil argentinos concentraram-se em frente ao Senado para acompanhar o debate sobre ela. “A lei teve grande legimidade e respaldo popular, mas na mídia sempre aparecia como ‘a lei K’, de Kirchner, como se fosse imposta pelo governo”, comenta Busso. “Não é uma lei de meios, como gostam de chamar. Ela apenas regulamenta o uso do espectro radioelétrico e define regras para a sua exploração”, esclarece.
No fim de 2009, a lei entra em vigência e, imediatamente, é judicializada pelo Clarín. Foram quatro anos até a Corte Suprema declará-la constitucional. A pressão popular, avalia Busso, foi fundamental para a conquista – 50 mil pessoas marcharam do Congresso até Tribunales para cobrar que a Justiça colocasse a lei em vigência.
“O resultado deste processo é uma lei com legitimidade, devido à participação popular e aprovação com ampla maioria, e qualidade institucional, por contar com controles e participação popular”, pontua. “A lei é uma conquista do povo argentino, pois trata a comunicação como direito humano e não como um simples negócio”. O maior desafio para a implementação, alerta Busso, é o atrelamento do Poder Judiciário ao poder econômico.
Uruguai: em ‘stand by’
A legislação aprovada no Uruguai, também batizada Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual, enfrenta uma situação semelhante a do país vizinho: apesar de ter sido aprovada em dezembro de 2013, o governo aguarda a Suprema Corte de Justiça dar seu parecer quanto ao recurso protocolado pelos grandes empresários do setor.
O cenário anterior à lei, conforme explica Sergio de Cola, também era parecido com o argentino. “A legislação era antiga e também criada durante a ditadura militar”, diz. “Além da concentração, também sofríamos com a debilidade dos meios públicos e com a falta de transparência quanto às concessões públicas de rádio e televisão”.
Cola, que participou do processo de elaboração da lei, argumenta que ela estabelece a regulação básica para a prestação de serviços de radiodifusão e comunicação audiovisual. “Para além do conceito clássico de rádio e TV, compreendemos comunicação audiovisual em diversos suportes tecnológicos, não apenas o espectro radioelétrico”, afirma. “Comunicação audiovisual é um serviço cultural ou cultural e econômico, nunca um serviço meramente econômico. E como esses serviços compreendem valores e significados, não devem ser considerados apenas por seu valor comercial”.
O processo que culminou na aprovação da lei teve início em 2010, sob o governo de Pepe Mujica, destaca Cola. “Foi constituído um comitê técnico consultivo, reunindo diversos setores, como academia, organizações da sociedade civil e empresários, para discutir os conteúdos da lei”.
De acordo com o uruguaio, a lei garante independência e liberdade editorial aos meios e liberdade de expressão aos cidadãos. “A lei promove a diversidade e a pluralidade informativa, o acesso universal aos meios, a proteção à infância e à adolescência e a transparência em relação à outorga de concessões públicas, que agora ocorrem por concurso público”, ressalta.
Como a discussão do projeto se arrastou até a véspera do ano eleitoral de 2014, houve limitações no texto final, que gerou preocupação aos movimentos sociais. Um exemplo é a proibição da criação de cargos devido à proximidade do pleito. “Com a transição de governo, Tabaré assumiu a responsabilidade de finalizar a regulamentação da lei”, diz. “Esta história, portanto, continuará”.