Por Observatório da Privacidade e Vigilância, na Carta Capital
O Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais (APLPDP) foi aberto em 2015 para a consulta pública pelo Ministério da Justiça e, desde então, recebeu mais de 1500 comentários no site da pasta. Desde 2010, quando surgiu a primeira versão do texto, o assunto vem ganhando força entre setores da sociedade civil, empresários e Estado. Para especialistas, em meio a um espectro político conservador, somente a participação popular, como a ocorrida no ano passado, será possível pressionar o Congresso e o Executivo para garantir o livre acesso na rede em harmonia com uma política de proteção de dados pessoais.
Em termos gerais, o texto do anteprojeto prevê que a coleta, o tratamento e a transferência de dados pessoais só podem ser feitos com “consentimento livre, expresso, e específico do titular”.
Isso quer dizer que se um site requisitar uma autorização para o uso de dados para efetuar um cadastro, ele precisa detalhar os usos que fará destas informações, assim como dispor de um “alerta quanto aos riscos envolvidos no seu tratamento”, como dispõe o artigo 11 do texto.
Com a lei, a pessoa identificaria melhor a amplitude de seus direitos perante seus próprios dados pessoais. Segundo Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, isso é muito sensível porque tais dados dizem muito da vida das pessoas e se referem a informações que damos voluntariamente para algumas empresas, que gestionam e cruzam esses bancos de dados.
“(As informações) dizem respeito a suas compras, sobre o que as pessoas acreditam, como são alinhadas politicamente; e podem servir a manipuladores, estilizadores”, analisa. Ou seja, por meio de tais dados, cruzados, pode-se elaborar perfis e até mesmo direcionar ou influenciar comportamentos.
No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor estabelece linhas gerais de conduta, mas continuamos distantes de um sistema de proteção de dados pessoais com fiscalização e clareza nas regras. Para Cruz, a Lei de Proteção de Dados Pessoais seria uma espécie de complementação que adiciona outras regras para o Marco Civil, que endereçava usuários, governo e empresas desde as relações mais básicas.
Como relata Cruz, “todo o tipo de empresa, de organizações como Febraban [Federação Brasileira dos Bancos], Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], por exemplo, se interessam por este assunto”. Não se tratam somente de dados pessoais na internet, mas de preciosas relações de estatísticas.
“De fato, a legislação brasileira é muito atrasada; ela não tem disposição que regule esse tipo de atividade, de coleta, armazenamento e tratamento de dados pessoais”, alerta o diretor do InternetLab.
Segundo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC e diretor do Actantes, para além de setores ligados à Justiça e a forças policiais, os principais grupos empresariais de pressão são representados por deputados ligados à gigantes que têm como base de negócio a comercialização de dados pessoais, como o caso do Google e do Facebook.
Para ele, a força destes lobbies “está em todos os partidos, assim como existe a força da sociedade civil em todos os partidos, mesmo que em menor quantidade”, diz, se referindo aqui principalmente àqueles que compõem a “maioria” governista no Congresso Nacional.
Neste contexto, mesmo com pouco capital político na sociedade civil, o professor da UFABC enxerga o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), como um grande operador político dentro do Legislativo. “Sua permanência ou não dará o tom do que ocorrerá no Congresso no ano de 2016”, prevê Sérgio Amadeu.
Francisco Brito Cruz destaca que algumas iniciativas que estão tramitando no Congresso dialogam com o debate sobre a proteção de dados pessoais na rede. “Existe ainda a hipótese de o Executivo fechar um texto de um Projeto de Lei de Dados Pessoais e enviar para o Congresso, mas a gente consegue imaginar que qualquer projeto que venha do governo possa sofrer dificuldades. Isso é senso comum”, completa.
Para ele, o maior desafio é criar uma agência, uma autoridade, que fiscalize o teor dessas regras, mas para a criação de cargos e orçamento, pelas regras constitucionais, é preciso que a proposta venha do Executivo. Ou seja, os projetos que tramitam hoje no Legislativo, ou que possam surgir por essa via, podem propor regras, mas careceriam de uma autoridade para fazê-las cumprir.
Participação da sociedade
Em meio à crise política, a inesperada e ampla participação popular na consulta pública referente ao texto do anteprojeto foi vista com bons olhos por organizações civis que acompanham o tema. Essas organizações, porém, apontam para a necessidade da continuidade da pressão social neste ano.
Segundo Sérgio Amadeu, o aprofundamento de pautas conservadoras no Congresso Nacional também se refletiu no debate sobre privacidade e vigilância na rede. “Fizeram de 2015 um ano muito difícil do ponto de vista dos direitos na internet, inclusive no que se relaciona ao ataque aos dados pessoais. Aqui me refiro também ao PL-215”, lembra, citando o chamado “PL Espião”, que ataca os direitos de privacidade, segundo seus críticos.
Neste sentido, Francisco Brito Cruz reforça que “no ano passado as coisas voltaram a ser um pouco como elas eram antes, ou seja, mais difíceis”. Para ele, o Marco Civil da Internet, construído anteriormente a este processo, foi a grande conquista de 2014, e por consequência jogado à sombra em 2015.
O Marco Civil chegou ao Congresso Nacional em 2012 e, à semelhança do que pode enfrentar um projeto de Lei de Dados Pessoais, encarou um contexto bem difícil, em meio a ataques a direitos de usuários e frente ao PL 84/99, chamado por alguns como AI-5 Digital. De acordo, com Francisco Brito Cruz, só “com a força das revelações do [Edward] Snowden que o Brasil conseguiu dar esse passo de aprovar essa legislação”.
Para Amadeu, da UFABC, o contexto reacionário no Congresso Nacional também é parecido ao processo em que o Marco Civil da Internet foi aprovado. Sérgio Amadeu acredita que “vamos enfrentar um processo muito conservador, que a vitória no campo popular vai depender da mobilização de ONGs, da sociedade civil”.