Nos Cadernos do cárcere, o filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) define os jornais (o principal meio de comunicação de sua época) como verdadeiros partidos políticos, na medida em que influem, com ênfase e enfoques determinados, na formação da opinião pública e nos modos de assimilação dos acontecimentos.
Se isso já era verdade naquele tempo, o poder dos veículos de comunicação ampliou-se enormemente depois que aos jornais se somaram as emissoras de rádio, de televisão e, mais recentemente, as redes sociais.
Por Ângela Carrato, no Viomundo
Há mais de 40 anos, o poder avassalador dos meios de comunicação sobre a política e a sociedade na Europa, no Japão e nos Estados Unidos passou a ser regulado democraticamente por normas que visam impedir que uns poucos decidam e definam o quê e como a maioria irá ler, ouvir ou ver os acontecimentos.
Some-se a isso que, sem regulação, os veículos de comunicação poderiam até mesmo mentir ou sonegar informações ao seu público.
No Brasil, onde os proprietários da mídia corporativa nutrem uma admiração que beira ao “viralatismo” pelos Estados Unidos e países europeus, curiosamente não há nenhuma legislação neste sentido.
Aqui, quase sempre, é notícia o que o patrão quer, e seus interesses constituem, na prática, a linha editorial da maioria esmagadora desta mídia.
Nos períodos eleitorais, como agora, esse mandonismo chega a situações inacreditáveis a exemplo do que tem feito a família Marinho – que controla o Grupo Globo, o principal conglomerado de comunicação do país.
“Balcão de negócios”
O Grupo Globo, que nunca teve qualquer compromisso com a notícia, simplesmente substituiu a cobertura política pela divulgação do que lhe interessa, transformando seus veículos em espaço para negociações políticas ou, como preferem críticos mais ácidos, em “balcão de negócios”.
Até hoje, a TV Globo, que foi, durante mais de cinco anos, parceira da Operação Lava Jato e do então juiz Sergio Moro na perseguição, condenação sem provas, e prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não fez uma única reportagem informando detalhadamente ao seu público que ele foi inocentado em todos os 22 processos que enfrentou.
Some-se a isso que o JN continua dando espaço ao ex-juiz Moro, declarado parcial pelo STF, para disseminar mentiras e desinformação sobre a situação jurídica do ex-presidente.
Como Lula está liderando com folga todas as pesquisas de intenção de voto e tem chances de vencer as eleições no primeiro turno, os Marinho tentam, agora, fazer política do jeito que sabem: através de intimidações, recados e acenos. Tudo junto e misturado.
Para quem não acompanha sistematicamente este jogo, alguns recados e acenos podem até parecer positivos. Outros, contraditórios.
Não se enganem. Todos se pautam pela única lógica que os Marinho conhecem: a dos próprios interesses.
Se dependesse apenas da vontade deles, o próximo presidente do Brasil seria Moro, a “terceira via” que tentaram criar, com o apoio do Tio Sam, dos oportunistas de sempre e dos crédulos de plantão.
Foi a TV Globo, mais especificamente, o Jornal Nacional, que transformou Moro em “super-herói” no combate à corrupção e o festejou como responsável pela condenação e prisão do ex-presidente Lula.
Durante meses, Moro e seu fiel escudeiro, o então procurador federal Deltan Dalagnoll, foram presenças diárias no JN, com a Operação Lava Jato merecendo cobertura semelhante aos seriados estadunidenses sobre as façanhas do FBI.
Para quem entende um mínimo de campanha eleitoral, não passou despercebido o cuidado com que o pedido de demissão de Moro do ministério da Justiça de Bolsonaro, em abril de 2020, foi apresentado pelo JN como fato da maior relevância.
Todo aquele aparato, com fartas imagens cuidadosamente produzidas e uma repercussão política digna de estadista, visava obviamente uma futura campanha eleitoral.
Sem tomar partido
Foi pensando em contribuir para alavancar a candidatura do ex-juiz que o Globoplay, plataforma digital de streaming de vídeos e áudios sob demanda do Grupo Globo, estreou em 27 de janeiro, a série O Caso Celso Daniel, prometendo jogar luz “em um dos crimes mais polêmicos do Brasil”, ocorrido há duas décadas.
Durante anos, os adversários do PT usaram o episódio para especular sobre ligações infundadas de dirigentes do partido com mandantes do crime.
O documentário em exibição – oito episódios, dois a cada semana -, mesmo prometendo depoimentos exclusivos de políticos, delegados, promotores e familiares do ex-prefeito, “sem tomar partido”, não faz outra coisa.
Para a polícia e o Poder Judiciário, o caso Celso Daniel já foi esclarecido: o assassinato do ex-prefeito de Santo André, no ABC paulista, não teve motivação política. Foi um crime comum. O político foi vítima de um assalto com sequestro.
Ao reexaminar o caso, os Marinho tentam recolocar em cena teorias conspiratórias e buscam reestimular o antipetismo, cada vez menor, como indicam as pesquisas.
Na esteira da “onda Lula” que vem se formando, o PT alcançou, no final do ano passado, seu melhor resultado na preferência partidária do eleitorado brasileiro desde 2013, quando das chamadas Jornadas de Junho.
Raras são as vozes que ainda duvidam que tais jornadas foram o início da guerra híbrida que culminaria com o golpe, travestido em impeachment, contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, bancado pela elite brasileiras (a elite do atraso, como prefere denominá-la o sociólogo Jessé Sousa) com o apoio dos Estados Unidos, da mídia corporativa e até do STF.
Em recente pesquisa Datafolha, o PT aparece como o preferido de 28% dos entrevistados.
Num longínquo segundo lugar, encontram-se empatados PSDB e MDB, ambos com 2% cada um. PDT e PSOL têm cada um 1%. Os demais 26 partidos não chegaram a pontuar.
Mesmo assim, a tentativa de reeditar o antipetismo está colocada.
Como Moro não deslancha nas pesquisas de intenção de voto, mantendo-se num distante terceiro lugar, atrás de Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula, os Marinho usam o documentário também para tentar alavancar a sua candidatura, buscando reativar, por contraste, a mentirosa imagem dele como paladino da justiça.
Dificilmente dará certo, mas é a Globo sendo Globo e os Marinho sendo o que sempre foram: nenhum compromisso com o Brasil e com o povo brasileiro.
Acenos e sinais
O JN tem se valido dos mais diversos expedientes para esconder do público os absurdos que Moro cometeu contra Lula.
Nada foi dito até hoje sobre a desmoralização que o próprio STF impôs ao ex-juiz, e nem mesmo sobre o recente pedido de indisponibilidade de seus bens, feito por um procurador do TCU, em função de dados e explicações nada convincentes sobre seus ganhos (R$ 10 mil por dia) como sócio-diretor e consultor na empresa estadunidense Alvarez & Marsal.
Detalhe: o TCU aponta que 75% do faturamento da Alvarez & Marsal vieram de empresas destruídas pela Lava Jato.
Mas se os Marinho ainda seguem com Moro, não deixam de se movimentar e de emitir sinais e acenos, uns explícitos, outros nem tanto, para os demais candidatos.
Mesmo sendo um presidente tosco para o sofisticado gosto dos filhos de Roberto Marinho, eles têm tido cuidado para, em noticiários como o Jornal Nacional, não ultrapassarem a fronteira que possa inviabilizar o apoio ao ex-capitão, se necessário for.
Eles parecem preocupados em não repetir o que aconteceu nas eleições de 2018, quando também trabalharam e apostaram numa “terceira via” contra Lula e se deram mal.
Bolsonaro não era o nome dos sonhos da “família”. Como a “terceira via” não decolou, entre o candidato de Lula, Fernando Haddad, e o ex-capitão, acharam a “escolha difícil”. Acabaram indo de Bolsonaro, mas tinham perdido o timming.
Possivelmente acreditavam que poderiam controlar Bolsonaro, a exemplo do que o patriarca sempre fez com vários presidentes.
As críticas sobre a gestão do atual governo na pandemia (sem dúvida importantes) nunca tiveram como preocupação fatos como a maioria da população brasileira estar amargando sob um governo de extrema-direita, antipopular, entreguista e sem qualquer compromisso com a vida em plena pandemia da covid-19.
Tinham, sim, como horizonte, os interesses e a situação empresarial dos Marinho que, acostumados às benesses oficiais, agora enfrentam uma situação nada fácil.
Bolsonaro passou a destinar aos concorrentes da Globo, grande parte da verba que a emissora antes abocanhava praticamente sozinha.
Como se não bastassem agressões verbais aos Marinho e a profissionais de suas empresas, Bolsonaro várias vezes ameaçou até cassar a concessão da TV Globo, a joia da coroa dos filhos do doutor Roberto.
Foi a primeira vez que a emissora sofreu esse tipo de ameaça.
Bravatas à parte, Bolsonaro sabe que dificilmente essa cassação seria levada a termo com a atual composição do Congresso Nacional que, por lei, tem a palavra final sobre o assunto.
No entanto, a simples menção traz prejuízos financeiros para os Marinho e suas empresas.
Desde final do ano passado, numa tentativa de dar a volta por cima, a TV Globo anunciou uma parceria com o Google – uma das quatro big techs estadunidenses.
Detalhes desta parceria não foram divulgados, mas dificilmente ela ou outras continuariam sendo atrativas se a família Marinho perdesse a concessão do seu principal canal de televisão.
Mais ainda: os embates entre Bolsonaro e Globo têm tido reflexos junto à opinião pública.
Por razões diferentes, a emissora enfrenta críticas tanto do público conservador (evangélicos em especial) quanto dos setores progressistas e de esquerda. Uma situação assim é o que de pior pode ocorrer a um veículo de comunicação.
Ainda em termos de reflexos, a TV Globo tem demitido e cortado gastos. Oficialmente, trata-se de reestruturação empresarial. Na prática, não deixa de ser uma tentativa de reduzir pesados passivos – inclusive trabalhistas – diante de um futuro incerto.
Bolsonaro, com a capacidade de desdizer hoje o que afirmou ontem, já percebeu isso. Tanto que, na abertura dos trabalhos do Congresso Nacional, no último dia 2, declarou que não vai fazer regulação da mídia ou revogar reforma trabalhista.
Falas interpretadas como ataques diretos ao ex-presidente Lula e recado aos Marinho. Algo no gênero: nada a temer se permanecerem comigo. Esqueçam essa conversa de cassação de canal.
Mesmo sabendo que Bolsonaro não é nada confiável, a julgar pelas edições do JN nos últimos quatro dias, o recado produziu efeitos.
O principal telejornal brasileiro eliminou qualquer referência negativa a Bolsonaro e a seu governo. Não existe mais inflação, mesmo que essa, no noticiário da Globo, jamais tenha sido atribuída a Bolsonaro ou a seu governo.
Segundo o JN, as pessoas estão enfrentando com “criatividade” os “tempos difíceis”. O responsável pelo preço da gasolina nas alturas é o dólar e o recrudescimento da pandemia foi completamente naturalizado.
Ao mesmo tempo, os Marinho, na voz de um de seus funcionários, o jornalista Ascânio Seleme, aparentemente fazem explícitos acenos a Lula.
No sábado 5/2, o colunista de O Globo e ex-diretor do veículo, publicou um artigo onde admite que a maioria do povo brasileiro quer a volta do ex-presidente.
Nas palavras dele, “cada vez mais, grandes e distintos contingentes da sociedade brasileira parecem ter optado por Lula em 2023”.
Seleme escreve que “até dois meses atrás, ainda se ouvia aplausos a Bolsonaro em escritórios e auditórios da Faria Lima, em São Paulo. Antes do ano passado terminar, era possível identificar apoios sinceros ao presidente em alguns nichos do agronegócio mais moderno”.
O funcionário dos Marinho destaca ainda, no mesmo artigo, que “hoje, iniciado o ano eleitoral, o silêncio é dominante. Mais do que isto, há claros indícios de que a opção é manter Bolsonaro no páreo para que a vitória seja de Lula”.
Indo além, afirma que “para o Congresso, Ciro mete medo, Moro é uma incógnita e a terceira via não existe. Por isso, o melhor mesmo e o viável é Lula”.
À primeira vista, Seleme estaria abrindo o diálogo com o petista.
Existem, no entanto, outras interpretações possíveis para este aceno. Uma delas é a de que a família Marinho não desistiu do combate a Lula e estaria, veladamente, antecipando para setores inconformados, os riscos de um possível retorno do ex-presidente ao poder.
Os setores inconformados seriam os que ainda cercam Bolsonaro, cada dia mais convencidos de que não existem outras opções a não ser reeleição ou cadeia.
Tamanhas contradições parecem ter a ver, antes de tudo, com o desespero que está batendo pesado nos que se julgam donos do Brasil.
No mais, se os Marinho estivessem mesmo dispostos a mudar e iniciar uma relação republicana com a informação e com Lula, deveriam ter a coragem de, através de editorial, pedirem desculpas ao ex-presidente, ao PT, ao Brasil e ao povo brasileiro, por tudo o que fizeram.
Deveriam iniciar, imediatamente, a fazer jornalismo e não usar seus veículos e seus funcionários para mandarem recados, mesmo “positivos”.
Deveriam defender a existência de uma mídia democrática e plural, como existe em todo país minimamente civilizado e não o arremedo de liberdade de imprensa que só serve aos interesses da “elite do atraso” e de seus amigos.
Fora isso, tais recados, por mais que alguns possam enxergar neles pontos positivos, nunca passarão de novas tentativas para restaurar o velho poder da mídia corporativa como partido da ordem de sempre.
Em síntese, aparentar mudança, para manter tudo igual.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG