21 de novembro de 2024

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Unificada por agenda econômica, mídia comercial turbinou ultradireita no país

Eleição de Bolsonaro começou com criminalização da política pela mídia hegemônica, segundo pesquisadoras que participaram do V Curso de Comunicação do Barão de Itararé, no dia 26 de agosto; critérios políticos na distribuição de verbas publicitárias ajudam a entender papel jogado por Record e SBT na cobertura sobre o governo.

Por Felipe Bianchi

Apesar de diferenças nas linhas editoriais, especialmente quanto aos costumes e comportamento, o oligopólio midiático, unificado pela agenda econômica ultraliberal, não pode fugir da responsabilidade de ter parido o monstro bolsonarista. “Quando a esquerda passou a ganhar eleições, a mídia se encarregou de cumprir o papel da oposição”, explica Renata Mielli, coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Para exercer este papel, explica Mielli, os grandes meios de comunicação miraram o PT e escolheram, como arma, a criminalização da política e, mais agressivamente, da esquerda. “A cada eleição que ganhamos, subia o tom beligerante da mídia hegemônica contra a esquerda. Tudo isso foi feito acreditando que esta estratégia fortaleceria o campo político do centro e da direita mais tradicional, que estava enfraquecido, mas não foi isso que ocorreu”.

De acordo com Mielli, o candidato dos “barões da mídia” para 2018 não era Jair Bolsonaro, mas o clima de ódio e negação da política abriu espaço para este tipo de outsider. Bolsonaro soube capitalizar este sentimento, que já estava impregnado na sociedade. “Durante a campanha, mesmo que Bolsonaro não fosse seu candidato, a mídia optou por radicalizar a naturalização que ela mesmo criou. Traçaram um sinal de igual entre o fascismo e o petismo, tomando partido pensando apenas na agenda econômica que eles apoiam”.

A cobertura da Globo e da Record são muito diferentes quando se trata de liberdades individuais e costumes, mas os grandes meios de comunicação têm um discurso único quando diz respeito à agenda econômica, aponta a jornalista. “Por mais que tenhamos nuances, todos esses veículos sempre convergiram na economia: na defesa do neoliberalismo, das privatizações, da redução do papel do Estado, da retirada de direitos sociais e trabalhistas. Esta é a agenda que unifica o oligopólio midiático no Brasil”.

Partido da mídia

Apesar do estrago causado, esta atuação da imprensa como partido político não é novidade. Jornalista e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ângela Carrato recorda que a mídia hegemônica foi contra Getúlio Vargas,  foi contra João Goulart, apoiou a ditadura e participou do golpe contra Dilma. “Qual a novidade? Eles sempre foram contra os avaços sociais. Se a Globo existisse no período escravagista, ela seria contra a abolição”, afirma.

“A mídia se coloca como partido político e, para defender seus interesses antipopulares e antinacionais, ela vai mudando e adequando seu discurso de acordo com suas conveniências”, explica Carrato. “Por isso é tão difícil que as pessoas percebam este papel partidarizado da imprensa, em especial quando há diferenças como as que vemos, hoje, entre a Globo e canais como SBT e Record. Eles não são necessariamente bolsonaristas, são oportunistas”.

Quanto ao discurso de ódio e a negação da política, Carrato afirma que a Globo e demais veículos transformaram o combate à corrupção em um “carnaval”. “Sergio Moro e Deltan Dallagnol viraram heróis para barrar Lula. Hoje, a manobra que a Globo faz é tentar igualar Lula e Bolsonaro”.

Segundo a jornalista e professora mineira, a mídia alternativa brasileira é um “respiro” em meio a este cenário. “A mídia alternativa é a nossa verdadeira comunicação pública, pois é balizada pelo interesse público e mantida pelo público”, diz. “Os veículos contra-hegemônicos trazem novas caras para o debate público brasileiro. São diversas fontes riquíssimas que nunca tiveram espaço na mídia hegemônica”. O desafio, segundo ela, é impor uma agenda própria no debate público. “Não podemos ficar a reboque da agenda oficial”.

Balcão de negócios

Um dos principais elementos que explicam esta força do ideário bolsonarista em setores da mídia hegemônica é a distribuição de verba publicitária por parte da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), capitaneada por Fabio Wajngarten.

A avaliação é de Bia Barbosa, jornalista e representante eleita da sociedade civil para o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). “Quando Bolsonaro vence a eleição, o apoio que ele recebeu de determinados meios de comunicação é revertido em contrapartidas financeiras”, diz.

“A criação, a partir de Lula, de um critério técnico para a distribuição da publicidade oficial, representou uma mudança importante. Mas o Estado brasileiro nunca deixou de enxergar a verba publicitária como uma forma de fazer política com as empresas de comunicação. Sempre foi um instrumento de construção de relações antes de pensar na questão do acesso à informação pelo cidadão”, pontua. “Quando Bolsonaro assume a presidência, esta vira a primeira moeda de troca para compensar o apoio da Record e do SBT”.

Fabio Wajngarten já trabalhava com o interesse de empresas privadas de comunicação na captação de recursos e ele passa a tomar conta desta distribuição, explica Barbosa. Neste período, o volume do bolo de verbas publicitárias recebidas pela Record passa de 26% a 44% e o do SBT, de 24% para 37%.

De acordo com ela, a cobertura da SBT e da Record sobre o governo escancaram o que os números sugerem: o aumento da verba publicitária garanta a manutenção do apoio destes veículos a Bolsonaro, iniciado ainda na campanha eleitoral.

Basta olhar o jornalismo desses dois canais, diz Barbosa: “A cobertura sobre a pandemia mostra que Record e SBT deram muita visibilidade aos protestos de rua em favor de Bolsonaro, fizeram reportagens sobre o uso da cloroquina, focando na falsa dicotomia entre vida versus economia. Um alinhamento muito forte com as narrativas de Paulo Guedes e Bolsonaro”.

As enormes brechas do sistema de comunicação brasileiro, que conta com dispositivos importantes na Constituição Federal de 1988 mas carece, até hoje, de regulação, também têm sido exploradas pelo bolsonarismo. “A radiodifusão, historicamente, nunca foi responsabilizada pelas ilegalidades que pratica”, lamenta Barbosa.

A soma da quantidade de emissoras controladas por igrejas com o arrendamento de grade de programação de veículos comerciais para igrejas totalizam mais de 20% de todo o conteúdo televisivo brasileiro, segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine). “O fato de fundamentalistas religiosos irem à porta de um hospital em Pernambuco humilhar uma menina de 10 anos estuprada pelo tio é produto desta equação”, opina.

Por fim, a reativação do Ministério das Comunicações e a alocação da Secom para dentro da pasta é outra cartada de Bolsonaro que escancara este arranjo crucial na sustentação de seu governo. “Fabio Faria (PSD-RN) é genro de Silvio Santos e vem de uma família ligada a radiodifusores. Foi proprietário da Rádio Agreste, período em que se lançou à política”, salienta. “Um órgão que deveria cuidar de políticas de comunicação, inclusão digital e gestão de outorgas, passa a ter como função primordial a distribuição de verbas publicitárias. E quem está encarregado disso é genro do dono do SBT”.

A discussão entre as três pesquisadoras ocorreu na quarta-feira (26), durante a quinta edição do Curso Nacional de Comunicação do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. Com duração de três dias, o encontro virtual reuniu cerca de 200 participantes de 23 estados do país para discutir como enfrentar e derrotar o bolsonarismo.