Recém demitida, a chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs) do Ministério da Comunicação do governo de Evo Morales, e ex-diretora-executiva do Centro de Educação e Produção Radiofônica da Bolívia (Cepra), Dolores Arce denuncia como “a mídia local fez um despejo desinformativo, promovendo o motim da polícia e garantindo impunidade para que o Exército assassinasse manifestantes que lutavam por seus direitos”. Condenando a mídia como “um dos pilares do golpe contra o governo constitucional”, ela recordou que “os canais de televisão começaram a ir ao conjunto das regiões para assediar os comandos militares, incendiando o país com mentiras”. Nesta entrevista exclusiva, a profissional – referência na luta pela democratização da comunicação na América Latina -, condenou “as hordas fascistas pela queima de residências de autoridades, rádios e tribunais eleitorais, pelos sequestros e ameaças a familiares de dirigentes, formas com que conseguiram viabilizar o afastamento do presidente”. Dolores Arce recordou como o trabalho da rádio Soberania, dos camponeses, “foi fundamental na época da ditadura, nas denúncias contra a DEA (Drug Enforcement Administration, agência usada pelo governo dos Estados Unidos para supostamente combater o narcotráfico) e os leopardos (força policial paramilitar especializada, a Unidade Móvel Policial para Áreas Rurais), sendo a voz do setor”, trazendo à tona “os massacres dos governos neoliberais”. Ressaltou como Evo reconhecia a importância da comunicação desde a época em que era dirigente sindical e, de quando presidente, dos importantes investimentos realizados nas RPOs, vistos por ele como “instrumento de educação, informação e formação” da sociedade boliviana. Entre outros pontos, Dolores Arce defendeu maior empenho coletivo para a vitória do Movimento Ao Socialismo (MAS) nas próximas eleições, um redobrado investimento na comunicação pública e sublinhou a “importante parceria com coletivos internacionais como o ComunicaSul para a denúncia e o acompanhamento da realidade boliviana, não permitindo que um governo ditatorial se cubra com um manto democrático”.
Por Leonardo Wexell Severo, para o ComunicaSul
Fale um pouco sobre o incentivo dado pelo Estado Plurinacional à estrutura radiofônica com vistas à democratização da comunicação.
As Rádios de Povos Originários (RPOs) são um projeto comunicacional do Estado Plurinacional iniciado em 2006, quando o presidente Evo Morales assume e começam a ser instaladas emissoras por todo o país com o apoio público.
As primeiras 30 rádios, a nível nacional, se estruturaram com a contribuição solidária da Venezuela. Atualmente, são mais de 90 rádios. A diferença é que nunca antes o Estado boliviano, como governo, havia apoiado a criação de meios comunitários. Havia um meio oficial, que era a rádio Ilimani, depois Pátria Nova, e o Canal 7, agora Bolívia TV. Pensar em meios oficiais a partir das comunidades, este foi o aporte do Estado Plurinacional.
O projeto estava baseado em algum modelo?
Evo Morales tinha uma experiência prévia, no trópico de Cochabamba, onde era o dirigente máximo das seis federações de trabalhadores e sabia o que representava ter ou não um meio de comunicação. Possuía a Rádio Soberania, propriedade da Federação do Trópico, com o aporte dos produtores das folhas de coca. Eles tiveram a sua emissora, que fazia todo o acompanhamento do setor. Se havia uma marcha, ali estava a rádio, como quando ocorreram os massacres durante os governos neoliberais. Foi assim na luta contra a DEA e os leopardos. Esta rádio foi fundamental para as denúncias, era a voz do setor cocaleiro, a rádio Soberania.
Inspirada neste exemplo, quando chega ao governo Evo Morales impulsionou a criação de Rádios de Povos Originários, de rádios comunitárias, em estreita coordenação com as organizações sociais. Por isso há rádio nos nove departamentos com os indígenas, a Confederação Sindical Única dos Camponeses de Bolívia, o coletivo de mulheres Bartolina Sisa, Comunidades Interculturais… A implementação destas rádios foi feita com organizações sociais e equipamentos do Estado.
E os profissionais?
São selecionados pelas mesmas organizações, em 90% comunicadores empíricos, gente que nunca pisou numa universidade. O Ministério de Comunicação foi impulsionando processos de capacitação e formação para que estes trabalhadores adquirissem habilidades e conhecimentos desde o manejo dos equipamentos até como fazer uma entrevista, formatos jornalísticos, sempre trabalhando de maneira conjunta.
Quando estava no Centro de Produção Radiofônica da Bolívia (Cepra), impulsionamos processos de capacitação, com a escola de gestão pública plurinacional para a certificação por parte do Ministério da Educação formando mais de 200 comunicadores empíricos. É um reconhecimento a comunicadores que são em sua maioria bilíngues, falantes em quechua, aymara e guarani, dependendo do local de onde provêm. Tem esta habilidade fundamentalmente oral, por isso a rádio é intimamente ligada, é como um anel no dedo como ferramenta comunicacional, muito mais do que a imprensa escrita que requer mais estudos.
Eu diria que o jornal não deixa de ser uma expressão válida, obviamente, mas mais limitada às cidades, a um determinado setor que pode gastar dinheiro.
Além disso, a rádio tem um alcance massivo. Quem não tem um aparelho? A televisão é diferente e mesmo seu sinal muitas vezes nem chega à área rural. A rádio chega a todo lado e ela te acompanha, podes estar produzindo, arando no campo… A cultura oral fez com que a rádio seja muito mais que distração ou diversão, seja educação, formação, informação, esta é a fortaleza das rádios comunitárias.
E não vamos dizer que isso exista apenas a partir do governo de Evo, em todo o país já muito antes haviam jogado um papel nas minas, nos sindicatos mineiros, em toda a área rural com o movimento de camponeses. Há uma história muito vasta, resgatada e potencializada pelo governo de Evo Morales.
“As Rádios de Povos Originários foram uma grande contribuição do Estado Plurinacional para democratizar a comunicação e que teve uma resistência terrível dos donos da mídia”
É com o governo Evo que o Estado começa a dar voz aos movimentos sociais.
Sim, porque geralmente um Sindicato não tem a possibilidade de adquirir equipamentos radiofônicos que custam US$ 50 mil, US$ 100 mil ou US$ 200 mil, conforme o tamanho da emissora. Então foi uma grande contribuição do Estado Plurinacional para democratizar a comunicação e que teve uma resistência terrível, horrível, dos donos da mídia. Os grandes proprietários sempre viram na democratização uma forma de pôr em risco o seu privilégio, o seu monopólio. O triste é que muitas rádios supostamente comunitárias, da sociedade civil, se colocaram em oposição à criação das RPOs, como se fossem um atropelo, como se por meio delas o Estado estivesse se imiscuindo, se metendo onde não deve. Não interpretaram pelo lado da democratização, mas de uma suposta dominação. Obviamente não é assim. Houve cegueira.
Recordo com um pouco de amargor destes acontecimentos. Temos na Bolívia a Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), que existe em toda a América Latina. Evidentemente, o termo rádios comunitárias foi criado nos anos 50-60, muito antes do governo Evo. Então Evo também queria denominar rádios comunitárias às instaladas pelo governo, mas as filiadas à Amarc disseram que não poderiam se chamar assim, pois elas é quem eram as rádios comunitárias, como se tivessem patenteado o termo. Por isso as novas começaram a ser chamadas de Rádios de Povos Originários (RPOs), por uma briga sem sentido.
Acredito que se nos encontramos em um Estado que defende o interesse das maiorias, se tivéssemos nos articulado de maneira mais firme desde as próprias organizações, penso que agora teríamos mais armas para nos defender.
Agora, após o golpe, este governo tenta chamar-se de constitucional e quer banhar-se numa aparência democrática. O fato é que adota todos os procedimentos de força, com polícias e militares nas ruas, proibindo na prática a quem pensa diferente.
A censura é mais do que visível.
Há de tudo, desde a autocensura de muitos meios comunitários da sociedade civil que optaram por sair do ar, já que qualquer emissão contrária ao que diz o governo atual é tipificada de sedição e terrorismo, até os que optaram por apagar sua emissão pelo medo de serem acusados e criminalizados. Agora grupos minoritários, afins ao novo governo, estão queimando rádios, incendiando emissoras, e não há quem diga que isso é um atentado à liberdade de expressão.
É doloroso ver as federações de imprensa, a Associação Nacional de Imprensa, sem se pronunciarem, caladas diante desse atentado à informação, um direito que está constitucionalizado.
“Em menos de uma semana o governo de Jeanine Áñez tirou do ar a TeleSul e a Rússia Today, fechou o jornal Cambio e o rebatizou de Bolívia. Eles têm medo dos que pensam diferente”
E projetam sobre Evo toda sua aversão à democracia.
O fato é que essa gente não admite um pensamento diferente do seu. O pior é que fizeram um trabalho minucioso durante anos nas redes sociais, através de meios de comunicação que nunca foram calados pelo governo de Evo Morales. E sustentaram durante anos o discurso de “Evo ditador”, “Evo corrupto”, “Evo qualquer coisa”, com acusações sem provas por meio das quais conseguiram gerar um sentimento de distanciamento em parte da opinião pública, de afastamento e, em alguns casos, até de rechaço.
E tudo o que ocorreu na campanha de mentiras da mídia ao longo do plebiscito sobre a possibilidade de reeleição, em 21 de fevereiro de 2016. Sendo autocríticos, não faltou uma mão mais firme para combater os excessos veiculados impunemente?
Totalmente. Creio que sim. O que houve por parte de Evo foi um respeito às liberdades, à Constituição política do Estado, que é negado agora pelos que dizem que vieram a defender a liberdade e a democracia. Os fatos demonstram exatamente o contrário, estão fazendo todo o oposto. Carlos Valverde [que inventou a existência de um filho pretensamente abandonado por Evo] mentiu e que sua mentira nas redes sociais, massificada pelos meios de comunicação, fez uma guerra suja por meio da qual conseguiu incidir no resultado do referendo [51,3% contra a reeleição a 48,7%].
A votação era no dia 21 de fevereiro e a campanha de mentiras iniciou no dia 9, há menos de duas semanas, conseguindo causar um escândalo. Esse mesmo senhor que diz ser jornalista e tem um passado muito nefasto como agente do Ministério do Interior, com papel em massacres, ligado ao narcotráfico, é filho de um dos paramilitares que em Santa Cruz fuzilou estudantes. Sua família tem um passado falangista. Esse homem que depois se autodenominou de “perseguido político”, hoje vive normalmente, não lhe passa nada, está completamente impune. Enquanto isso, qualquer um que tenha alguma afinidade com o governo de Evo Morales “que se cuide, estamos seguindo seus passos”. Este é exatamente o discurso da ministra da Comunicação.
Quando ainda estava no meu posto de chefe das Rádios de Povos Originários, dias antes do massacre de Sakaba, em Cochabamba [onde morreram dez pessoas e mais de 200 ficaram feridos, 80% à bala], fiz uma denúncia pedindo garantias às rádios Soberania e Kawsachun Coca, que estavam tendo seus equipamentos queimados e seus comunicadores perseguidos. A Kawsachun Coca, das seis federações de trabalhadores de coca, havia recebido um reforço em equipamentos do Ministério. A ministra justificou a perseguição a esta emissora dizendo que vem cometendo os delitos de sedição e terrorismo. Está buscando mecanismos para terminar de calar as rádios comunitárias.
Há casos de jornalistas que foram surrados e espancados, e inclusive um argentino, Sebástian Moro, que morreu devido à gravidade dos ferimentos. Acompanhaste algum problema como esse?
Infelizmente sim. Entre os comunicadores de Rádios de Povos Originários, que sempre trabalharam como organizadores, e o governo de Evo tivemos o caso de um companheiro que durante os bloqueios dos “cívicos” lhe revisaram o celular e a credencial, sendo barrado no caminho antes de chegar à emissora. Me chamaram às cinco da manhã, do celular do meu comunicador e, pensando que era ele, lhe digo: “Oi Samuel, como estás?”. Era um dos que lhe havia tirado o celular e que estava falando comigo, perguntando se eu era o seu chefe, quem e o que estava fazendo. Me disse que queria verificar quem era aquele que haviam barrado e respondi que trabalhava comigo no Ministério da Comunicação. Então este era o seu grande delito, por isso lhe haviam danificado a moto, quebrado seu espelho, jogado no chão o seu celular, seu instrumento de trabalho, que agora está imprestável. Tudo pelo simples fato de que era um comunicador do Estado e estava combatendo os ditos “cívicos”. Temos outros casos de comunicadores que passavam a ser insultados assim que eram identificados como evista ou masista.