7 de dezembro de 2024

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Integração latino-americana para ter voz no mundo

Por sua história, cultura, recursos e população, a América Latina deveria ser um ator protagonista nos grandes cenários mundiais. Mas o que se nota é uma ausência gritante da voz latino-americana nesses espaços. Caberia a pergunta: “Existe, sequer, uma voz latino-americana? Ou o que há são países em uma zona de escasso peso geopolítico específico que, em função da orientação ideológica de seus governos, têm apenas uma certa participação nesses cenários ou limitam-se a aderir à política exterior de turno dos Estados Unidos?”. A partir da crise mundial desatada pela emergência do coronavírus e a guerra de preços do petróleo aberta por Arábia Saudita e Rússia, dois desafios recentes, podemos colocar em perspectiva a ausência latino-americana.

Por Elvin Calcaño Ortiz* / Tradução por Felipe Bianchi

O coronavírus já infectou mais de 110 mil pessoas em mais de 100 países. Boa parte dos infectados foram chineses. Já são mais de quatro mil mortes. Itália, Irã e Coreia do Sul são, depois da China, nações bastante afetadas em contágio e mortes. Até o dia 3 de março, a taxa de mortalidade global do vírus giraa em torno de 3,4%. Em mais de 80% dos casos, não se registra sintomas mais graves. Outro vírus parecidos, como o MERS de 2012 originado na Arábia Saudita e o SARS, de 2002, originado em Guandong, na China, tiveram taxas de mortalidade maiores: 34% e 9.5%, respectivamente. Por tanto, a maior ameaça do coronavírus é justamente a facilidade com que se propaga e distância que estamos de encontrar uma vacina.

Porém, para além de dados mais gerais, mudemos o foco para a geopolítica. O coronavírus exige um esforço mundial que se vê muito prejudicado pela presença de governos e imaginários antigobalizalização vigentes no mundo de hoje. É uma doença que se propaga rapidamente por aeroportos, centros turísticos e intercâmbios cotidianos entre pessoas nas cidades. Isso exige dos países “centrais” do mundo – alguns diretamente afetados pelo vírus como Estados Unidos, Espanha e Itália – a buscar soluções articuladas lançando mão de investimentos, recursos técnicos e visão. Trata-se de um desafio à governança global, que há de impulsionar reconfigurações e novos planejamentos em si mesma. Quem falará pelos latino-americanos e caribenhos nesses espaços que se abrirão?

Por outro lado, no começo de março, Rússia e a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) encerraram, sem acordo, as negociações que tinham o objetivo de reduzir a produção mundial de petróleo cru frente à diminuição da demanda provocada pela pandemia. Isso gerou uma queda de 30% no preço do petróleo, o que deve ser situado, também, geopoliticamente. 

Os três principais exportadores de petróleo do mundo são os Estados Unidos, a Arábia Saudita e a Rússia, nesta ordem. A partir de setembro de 2019, os Estados Unidos começaram a exportar petróleo mais do que importava, convertendo-se assim em exportador líquido. A marca foi atingida, em grande medida, pela política de Donald Trump em incentivar a produção petroleira por meio da extração por fraturação hidráulica – petróleo de xisto – com a finalidade de que as petroleiras estadunidenses aumentassem sua participação no mercado mundial. O presidente norte-americano, um ignorante que desdenha a ciência, apoiou os produtores de xisto mesmo sabendo muito bem dos impactos ambientais negativos causados por este tipo de extração petrolífera. O supremacismo tresloucado e linear de Trump indicou que o importante era cumprir sua promessa de tornar seu país autossuficiente em relação aos hidrocarburos.

No entanto, o problema é que o petróleo de xisto tem um alto custo de produção, enquanto países como Rússia e Arábia Saudita produzem a custo muito mais baixo. Para que o petróleo de xisto norte-americano seja rentável, o preço de referência mundial deve ficar na casa de, pelo menos, 50 dólares. Atualmente, quando Rússia e Arábia Saudita se lançam, no curto prazo, a uma guerra de preços, o valor do barril não deve ultrapassar 40 dólares, segundo especialistas. A queda recente de 30% derrubou o valor do barril para 35 dólares.

Por trás desta disputa entre russos e sauditas, pode-se perceber o interesse dos russos em golpear a produção petroleira estadunidense, algo que não ocorria desde 2014. Isso tem a ver com uma chave geopolítica encontrada nas sanções impostas pela administração Trump à Rosneft (principal produtora russa de capital misto e participação internacional) devido às relações comerciais entre Rússia e Venezuela.

A Rússia denunciou a manobra como uma jogada para tirar cotas de mercado de suas produtoras petrolíferas. Do ponto de vista estritamente comercial, não se justificaria a postura russa de se negar a limitar a produção, o que, no curto prazo, inundará o mercado de petróleo barato e com desconto da Arábia Saudita, que tem maior capacidade de produção instalada (a ARAMCO, principal produtora saudita, pode ser rentável mesmo com o barril de petróleo valendo apenas 30 dólares).

O que explica este quadro é a medida geopolítica para golpear as petroleiras norte-americanas que, além de estarem altamente endividadas (ou seja, financeirizadas), sustentam suas cotas de mercado no xisto, que é caro de se produzir. Portanto, os russos, ao passo em que provocaram um reordenamento do mercado mundial no qual saem perdendo no curto prazo, sairiam ganhando no médio prazo e provocam rupturas internas nos Estados Unidos, com os produtores vindo a pressionar o governo de Trump mediante os prejuízos iminentes. Rússia, neste contexto, joga suas fichas geopolíticas a partir de sua política de produção petroleira.

Esta guerra de preços do petróleo, em meio à crise do coronavírus, significa um forte golpe às economias da América Latina e do Caribe. Já se nota pelas quedas da moeda no México, no Chile e no Peru. O golpe é duplo, pois são economias que dependem da exportação de matérias-primas à China, cuja produtividade será reduzida devido ao foco do país ter se deslocado para o combate ao coronavírus. Por outro lado, são economias cujas principais fontes de divisas vêm da exportação de hidrocarburos. Venezuela, cuja capacidade de captar divisas está nas cordas, devido às sanções imperiais e um pouco, também, pela ineficiência das políticas de seu governo, também deve ser duramente afetada. Entretanto, se a Rússia conseguir reordenar o mercado petroleiro à margem da OPEP, sendo a Venezuela sua sócia estratégica no plano geopolítico, provavelmente o país latino-americano ganhará a médio prazo. 

A maioria dos países da região, alinhados à política imperial dos Estados Unidos, não poderão dizer o mesmo e estarão sob forte risco. Os pesos pesados do mundo estão em uma forte disputa. E a América Latina, com uma maioria de governos de direita totalmente servis ao imperialismo norte-americano, está sem voz própria nestas disputas.

Chegamos, então, ao ponto central desta análise, que é repensar a integração regional para que tenhamos peso na geopolítica mundial, a fim de construir mecanismos de integração que nos permitam ter esta voz própria em espaços e conjunturas onde expressam-se as grandes problemáticas e disputas globais no mundo de hoje. 

Isto passa, em primeiro lugar, por um olhar crítico às estruturas integracionistas construídas na década passada, quando a região gozava de uma maioria de governos progressistas. Por exemplo, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba). Hoje, quando a realidade ideológica da região é inversa, ou seja, com uma maioria de governos conservadores, estas estruturas estão praticamente mortas. Com o triunfo de Mauricio Macri na Argentina, em 2015, começou a restauração conservadora no continente e, em muito pouco tempo, estes organismos foram sendo destruídos. Sim, eram importantes pelo seu potencial e projeção ao futuro, no sentido de construirmos espaços para resolver os problemas regionais; criar mecanismos formais de governança regional; conquistar voz para nos posicionarmos em bloco no mundo, onde blocos regionais têm grande peso na política mundial. Um mundo, também, marcado pelas disputas geopolíticas dos Estados Unidos contra a Rússia, a China e outras potências emergente.

Neste sentido, devemos buscar superar estruturas como a Organização dos Estados Unidos e sua tendência pró-Estados Unidos, devido à própria história de sua criação e o fato de 60% de seu financiamento depender do país norte-americano, o que evidentemente limita sua capacidade de ação autônoma. Há também o fato de a OEA ser dirigida por um personagem sinistro como Luis Almagro, um notório direitista que sustenta visões caducas similares às da guerra fria e que funciona como um instrumento destrutivo e polarizador, impulsionando golpes de Estado contra governos progressistas e, ao mesmo tempo, consentindo com repressões brutais em países de governos conservadores amigos. É difícil imaginar a OEA como parte do futuro da integração regional porque não foi feita para isso e tampouco atua em função dos interesses latino-americanos. É um organismo neocolonial que mais cria do que resolve problemas. Portanto, atrapalha a tarefa de construir uma visão de bloco regional, para além das diferenças ideológicas entre governos.

Devemos superar, também, a incidência de grande parte das elites regionais, que conservam visões de subordinação ideológica em relação aos Estados Unidos, o que revela uma grande imaturidade cultural e histórica. Esta elite, no interior de nossos países, utilizam de sua influência midiática e da sua condição de detentores dos meios de produção, além de sua participação nos setores rentistas, bloqueiam qualquer aposta de integração soberana. E este bloqueio é feito com um senso comum já arraigado: o senso de que falar de soberania e anti-imperialismo é sinônimo de “chavismo” ou “marxismo”. Isso deve ser desmontado até em função de visões mais pragmáticas, pois a integração regional soberana e sem ingerência imperial é chave para que se impulsione uma agenda de interesses próprios, para além da dicotomia entre esquerda e direita, mas de sobrevivência em um mundo atual no qual nenhum país latino-americana tem peso específico suficiente para negociar por si só com as grandes potências.

É urgente trabalhar muito, desde a superestrutura cultural geradora de sentidos e imaginários, assim como desde a política formal, para gerar consensos dentro de nossos países – e, por conseguinte, regionalmente – dirigidos à criação de mecanismos de integração soberanos. Articular universidades e setores de conhecimento em prol da participação latino-americana em debates e lutas globais relacionados às áreas centrais do mundo atual, como inteligência artificial, engenharia genética e Internet das Coisas. Temos de conjugar tudo isso com o trabalho de expertos políticos acerca de uma soberania regional ampla e superadora. Este é o caminho para que tenhamos, enfim, voz própria no cenario mundial atual e futuro. Para que deixemos de ser anões geopolíticos que somente consomem  conhecimento sem produzi-lo de forma articulada; que somente tem certa força se aliados à outras potências, com russos, chineses e o velho imperialismo norte-americano nos traçando linhas alheias a nossos verdadeiros interesses; e que nos colocam em situação como não termos como enfrentar, de forma coordenada, crises como a pandemia do coronavírus e dos preços de petróleo.

*Elvin Calcaño Ortiz é politólogo dominicano. Publicado originalmente pelo Fórum de Comunicação para a Integração de Nossa América (FCINA)