11 de dezembro de 2024

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Desafios da comunicação popular no período pós-pandemia

A pandemia gerada pelo Covid-19 causou impacto em todas as sociedades e deixará um rastro que, até o momento, temos noção apenas de seus primeiros sinais. Tem-se debatido e escrito muito sobre o que pode acontecer nesta etapa de fragilidade posterior ao choque inicial e, também, no momento em que o contágio e a mortalidade finalmente sejam reduzidos de forma significativa. A necessidade de respostas a questões pré-existentes, no marco de uma crise generalizada do sistema e da incerteza sobre o amanhã, é inegável.

Por Javier Tolcachier*

Tradução: Felipe Bianchi

Neste contexto, recorremos a vozes de quem é referência no campo da comunicação popular em distintos lugares da América Latina e do Caribe, consultando suas opiniões sobre o papel e as principais tarefas para o período pós-pandemia.

 

Disputar o balanço da pandemia

Para Pablo Antonini, presidente do Foro Argentino de Rádios Comunitárias (Farco):

“O que está por vir é um cenário de reconstrução social e econômica para muitos setores e pessoas, mas também de uma disputa em torno do tão propalado ‘novo normal’.

A pandemia evoca muitos debates que já estavam colocados, como por exemplo a necessidade de Estados fortes, com sistemas capazes de responder às necessidades de seus cidadãos, ou seja, sociedades que não fiquem nas mãos e ao bel-prazer dos mercados em questões essenciais como a segurança, a saúde e a vida.

A comunicação popular, como já sabemos, terá muito trabalho em promover esses debates e dar visibilidade às vozes que desejam esta mudança de rumos. Nesta nova fase de uma sociedade pós-pandemia que está para nascer, creio que o foco deverá ser no trabalho para disputar o balanço do que foi a pandemia, pois certamente haverá setores que seguirão defendendo a necessidade de modelos desiguais e o império dos negócios sobre a vida, além de dezenas de questões derivadas desta visão. Portanto, os meios populares teremos que lutar para nos fazermos escutar neste debate, como já o fazemos, a fim de tornar óbvio o balanço que, à primeira vista, é tão lógico. Afinal de contas, sabemos que os grupos econômicos, através de seus meios de comunicação e seus porta-vozes, são perfeitamente capazes de promover a confusão e inverter a realidade dos fatos, como historicamente o fazem.”

 

Produzir conteúdos centrados na comunidade e mobilizar a população para fazer frente aos problemas

Do Brasil, Renata Mielli secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), assinala:

“A pandemia do Coronavírus colocou em evidência muitos dos problemas estruturais da nossa sociedade. Na área da saúde, educação, moradia, as profundas desigualdades econômicas. Vimos como o déficit de acesso à Internet é fator de segregação social, de exclusão da população mais vulnerável de acessar outros direitos (educação à distância, acesso à renda emergencial, restrição a cumprir o isolamento social em função da impossibilidade de acesso à banda larga fixa, entre outros). A concentração econômica que marca o cenário midiático deixou explícito como a ausência de diversidade e pluralidade impacta negativamente no acesso à informações de qualidade num momento tão fundamental.

Neste sentido, o desafio colocado para a comunicação popular é muito grande. Entre eles, o de produzir conteúdo voltado para a comunidade, com informações de interesse público sobre prestação de serviços públicos e outros assuntos que não têm visibilidade na grande mídia, inclusive por serem de âmbito local. A falta de veículos populares e comunitários que efetivem o direito à comunicação no interior das localidades é uma realidade que precisa ser alterada.

Assim, um dos desafios da comunicação popular – durante e após a pandemia – é se qualificar, produzir conteúdos que reflitam os problemas de cada comunidade e buscar empoderar e mobilizar a população para enfrentar esses problemas. Dar voz e visibilidade ao povo da comunidade.”

 

Articular nos territórios com processos organizativos e de mobilização anti-hegemônicos uma devida compreensão do mundo digital

O comunicólogo equatoriano Osvaldo Léon, diretor da Agência Latino-Americana de Informação (ALAI), que edita a revista América Latina en Movimiento, expressou:

“Com a pandemia e o aumento vertiginoso do uso da Internet, assistimos à consolidação de diversas atividades econômicas ancoradas em plataformas sustentadas nesta tecnologia. Neste marco, constata-se uma ampliação das chamadas redes sociais, cujo encanto estava abalado por temores de crimes cibernéticos, bullying virtual, notícias falsas e vigilância por parte de corporações privadas e governos.

Nesta nova onda, um fator gravitante é o confinamento que se estabelece para combater a pandemia, na medida em que as ditas redes sociais capitalizam a valorização que, paulatinamente, foi adquirida à dimensão das relações de comunicação, implicando em reconhecimento, estima, etc. Mais além de um critério instrumental, o fato é que em tais plataformas digitais, enquadra-se sob parâmetros ideológicos predominantes pautados pelo consumismo, a competitividade e o individualismo como valores de superação e certa convivência social residual, em meio a um ambiente altamente emotivo.

Nos territórios, com a pandemia também temos verificado uma revalorização da solidariedade, que anda de mãos dadas com processos organizativos e a correspondente disputa de sentidos. E é aí, onde se articula a comunicação popular, que se resgata as condições de produção e reprodução social do sentido, dando particular importância aos processos de organização e de mobilização, para a formulação de respostas anti-hegemônicas. Isso passa, necessariamente, por uma devida compreensão do mundo digital.”

 

Exigir o fim do bloqueio, a democratização da comunicação e o pleno acesso à comunicação digitalizada como condição para o exercício de direitos fundamentais

Direto da Venezuela, Ámbar García Márquez, da Alba TV, também deixa sua contribuição:

“Na conjuntura global, diversas perspectivas sobre o desenvolvimento da pandemia gerada pela expansão do Covid-19, suas razões estruturais e o devir civilizatório pós-pandemia têm enriquecido as reflexões feitas nas diversas esferas que tornam possível a reprodução digna da vida. A esfera da comunicação como direito humano fundamental não está excluída deste quadro.

No contexto do confinamento preventivo, destaca-se a inerência na relação entre a comunicação e as telecomunicações como ferramentas para o pleno exercício de tal direito. Com a promoção da teleducação e do teletrabalho, a possibilidade de garantir estes três direitos fundamentais (comunicação, educação e trabalho) passa pelos avanços (ou não) que foram alcançados em matéria de democratização da comunicação dos meios de radiodifusão de propriedade pública ou comunitários, usados para dar continuidade a programas educativos nas etapas básica e média. Na mesma dimensão de importância estão os avanços alcançados na questão do acesso às tecnologias de informação e à Internet para a maioria dos setores de educação universitária, trabalhadoras e trabalhadores. Na atualidade, onde não há acesso à digitalização da comunicação, há possibilidades de acesso a estes direitos universais?

No caso da Venezuela, a este quadro somam-se as reflexões de viver a pandemia sob um cenário de bloqueio financeiro e comercial instrumentalizado desde março de 2015 por via de uma série de medidas coercitivas unilaterais impostas pelo governo dos Estados Unidos contra a República Bolivariana da Venezuela, afetando de forma direta a capacidade de investimento e manutenção da infra-estrutura para o cumprimento de serviços básicos. Este cenário sofreu um recrudescimento em 2019, também no mês de março, devido a um ataque ao Sistema Elétrico Nacional, colapsando este sistema por semanas e que implica, ainda, em defasagens no fornecimento constante de energia elétrico em todo o país, afetando o acesso às telecomunicações, Internet e outros serviços associados. Esta combinação de fatores resulta no impedimento da possibilidade real de acesso universal aos direitos enunciados.

Em plena pandemia, a AT&T, transnacional da comunicação, através de sua empresa DIRECTV (proprietárias, junto à Warner Media, da agência de notícias CNN), principal plataforma de acesso a meios no território venezuelano, empreendeu uma liquidação e retirou a corporação do território nacional em um lapso inédito de sete dias, violando, de forma massiva, cláusulas de contratos com seus clientes e com a população de trabalhadores, que no marco do coronavírus sofrem com a imobilidade para trabalhar devido ao decreto presidencial. As consequências de tais ações, ainda em curso, com demanda coletiva por parte dos usuários e usuárias, além de processos penais na Justiça, expuseram com absoluta claridade que há debates fundamentais e inadiáveis. O da concentração midiática é um deles.

Qualquer direito universal em um cenário de pós-pandemia deve se basear no fim imediato das medidas coercitivas unilaterais como formas de fazer política internacional que limita, de forma direta, o pleno exercício dos direitos fundamentais. Quanto ao direito à comunicação, é urgente fortalecer as iniciativas de luta pela democratização da comunicação e superar, transcorrida a pandemia, as formas de exclusão de acesso a direitos por falta de acessibilidade à comunicação digitalizada. Só assim, será possível recolocar estes meios populares no centro do debate e suas perspectivas como ferramentas de interesse público. Seguiremos relegando estes debates ao cenário pós-pandemia?”

 

Sobre o papel dos veículos e jornalistas populares no pós-pandemia

Leonel Herrera Lemus, desde a experiência da Associação de Radiodifusão Participativa de El Salvador (ARPAS) e da Associação Latino-Americana de Educação e Comunicação Popular (ALER), aponta quatro eixos:

“1. Assegurar a pertinência e veracidade da informação, da análise e das opiniões que publicamos frente ao turbilhão de informação falsa (desinformação) e versões distorcidas da realidade, tão difundidas em redes e plataformas digitais, meios tradicionais e, inclusive, em casos como o de El Salvador e do Brasil, nas próprias narrativas governamentais. Neste sentido, os meios e jornalistas comunitários e populares temos o desafio de aprimorar o rigor do método, a ética e a função jornalística que, segundo o professor espanhol Lorenzo Gomis, é “oferecer à cidadania a informação que ela necessita para compreender sua realidade e transformá-la” (e que até o fundador do jornalismo estadunidense, Joseph Pullitzer, asseverou: “defender a democracia, denunciar as injustiças e combater aos demagogos”.

2. O exercício do que, seguindo a lógica da “sociologia das ausências”, do português Boaventura de Souza Santos, podemos chamar de “jornalismo do ausente”. Isto significa que frente à agenda e dos enfoques dominantes nos meios hegemônicos, os jornalistas e meios populares devemos projetar uma agenda alternativa que incorpore aqueles temas que não são de interesse e, portanto, não têm espaço na imprensa tradicional ou corporativa. É preciso dar especial relevância aos temas relacionados às lutas reivindicatórias e demandas das organizações populares, movimentos sociais e povos originários, incorporando os enfoques feministas, ambientalistas, etc.

3. Criar ou fortalecer, junto aos movimentos sociais, o que o sociólogo Ignacio Ramonet chama de “poder cidadão” frente ao “super poder” formado por grandes meios (e redes sociais comerciais), elites políticas conservadoras e as corporações. Frente a esta “besta de três cabeças”, como Ramonet classifica, meios populares e organizações cidadãs devemos apostar na construção de uma frente comum capaz de instalar observatórios midiáticos e promover a democratização dos modelos de meios tradicionais e das redes e plataformas digitais.

4. Promover alternativas ao modelo de desenvolvimento capitalista neoliberal imperante que, se queremos assegurar a continuidade da vida no período pós-pandemia, deve ser desmontado. Os meios e jornalistas populares devemos colaborar com a construção de um novo ou de novos modelos necessários, retomando, por exemplo, a cosmovisão dos povos andino-amazônicos e sua perspectiva do ‘Bem Viver’; os valores do humanismo (e suas propostas ‘neossocialistas’ ou ‘neocomunistas’); ou mesmo a perspectiva de justiça social desde o ‘evangelho progressista’, pelo qual militou o arcebispo mártir e agora santo salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, que tem um eco importante com o atual Papa da Igreja Católica.”

***

Mais além da dor e das dificuldades sociais produzidas pela pandemia, que estão presentes em demasia em toda a região, estas reflexões comprometidas fornecem aportes aos debates inevitáveis para os coletivos de comunicação popular da América Latina e do Caribe.

Está mais do que claro que a democracia e a emancipação continuam sendo restringidas e bloqueadas, toda vez que a subjetividade sofre os intentos de controle e manipulação por parte do mesquinho interesse dos monopólios, tanto no campo dos meios de comunicação como na exponencialmente dominante esfera digital.

Para além das distintas leituras e hipóteses apresentadas, as aspirações e o protagonismo do coletivo social, amplificado através dos meios populares, serão decisivos, como em cada encruzilhada histórica, para determinar as condições nas quais se deseja viver.

*Javier Tolcachier é pesquisador do Centro Mundial de Estudos Humanistas, comunicador na agência de notícias Pressenza e integrante do Fórum de Comunicação para a Intergração de Nossa América (FCINA).