“Estamos na reta final das eleições um ano após termos não só sofrido um golpe de Estado, senão o roubo do nosso voto, o desrespeito ao voto majoritário do povo boliviano, já que o informe da Organização dos Estados Americanos (OEA) nunca demonstrou nenhuma fraude. Na realidade, a guerra suja e o terrorismo midiático foi parte fundamental para induzir a uma convulsão social, em uma fase prévia às eleições onde aplicaram uma estratégia de desgaste cotidiano, de sabotagem, conspiração e manipulação da informação”.
Por Leonardo Wexell Severo*
A afirmação é de Dolores Arce, ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia (Cepra) e ex-chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs) – vinculadas ao Ministério da Comunicação, em entrevista exclusiva, nesta quinta-feira, na sede da Federação de Mulheres Bartolina Sisa de Cochabamba.
Ao lado de Severina Baltazar, dirigente das Bartolina Sisa, e de Porfirio Cochi, pesquisador e cientista social, Dolores denunciou como “os grandes meios de comunicação foram quem impuseram na opinião pública e no imaginário coletivo as ideias de Evo autoritário e Evo ditador, em que pese ter sido eleito com mais de 50% e 60% dos votos em três eleições gerais”. Da mesma forma, agora, tentam inculcar o fantasma da “fraude eleitoral”, transmitindo por seus jornais e emissoras de rádio e televisão a satanização dos movimentos sociais e do Movimento Ao Socialismo (MAS), “identificando os masistas como sinônimo de violentos, selvagens e assassinos”.
Enquanto isso, recordou Dolores, esta mesma mídia aponta os “cívicos” e as “pititas” [como ficaram conhecidos os golpistas] como salvadores da democracia, “não importando se queimaram tribunais, residências de ex-autoridades e familiares, ou se estes grupos armados de choque promovem atos violentos e de racismo”. “Diante dos constantes atos de corrupção e violência estatal, que se traduz em violações de direitos humanos – como os massacres com 37 mortos, mais de 800 feridos e mais de mil presos – a perseguição política e judicial, os meios guardam um silêncio cúmplice e fazem uma campanha de desprestígio da gestão anterior de governo”, assinalou.
Nesta conjuntura eleitoral, destacou Dolores, “a palavra de ordem da mídia poderia ser resumida em ‘Todos contra o MAS’, com ela martelando a ideia de que democracia é evitar que o MAS retorne ao poder, mesmo que seja a maior força política”. “Tudo isso obviamente não deve nos surpreender, pois a propriedade dos grandes meios de comunicação reflete a perversa relação entre o poder político e o poder econômico, com a casta oligárquica”.
Exemplos escandalosos desta relação promíscua é o fato do líder separatista e fascista Branko Marinkovic, atual ministro da Economia, ser um dos acionistas majoritários do Canal 9-ATV [uma das três principais emissoras de televisão da Bolívia, junto a UNITEL e RED UNO, que abarcam mais de 70% da atual publicidade governamental]; da família de latifundiários Monastérios ser proprietária de UNITEL; do banqueiro e empresário Ivo Kuljis ser dono de RED UNO, e do empresário político Raul Garafulic [vinculado aos criminosos processos de capitalização durante o governo de Sánchez de Lozada], ser dono do jornal Página Siete, um dos principais do país.
Não é mera casualidade, alertou Dolores, que entre os primeiros afetados ou perseguidos se encontrassem comunicadores e jornalistas de meios comunitários e alternativos. “Já nos primeiros dias de novembro o diretor da Rádio Comunidade foi amarrado a uma árvore, houve a queima das rádios Soberania e da rádio Klawsachun Coca, por hordas ligadas à Resistência Juvenil Cochala, de Cochabamba, mal chamados de cidadãos cívicos”.
APARELHOS IDEOLÓGICOS DE MANIPULAÇÃO DE MASSA
Para o cientista social Porfírio Cochi, “ao se comportarem como aparelhos ideológicos de difusão de interesses econômicos extremamente conservadores e de classe, os meios de comunicação bolivianos fazem um desserviço à construção de uma Pátria independente”.
“Durante os 14 anos do governo de Evo esta mídia tomou o partido da oposição, alinhando-se e reverberando o discurso da oligarquia e das transnacionais, opondo-se às ações estatais no processo de transformação”, disse o pesquisador. “Medidas positivas que modificaram para melhor a vida das pessoas, com planos, políticas e programas voltados às mais necessitadas foram completamente invisibilizados”, frisou.
Tão somente preocupados com a defesa de seus interesses, esclareceu Porfírio, “os meios preferiram desinformar com dados falsos que se estava desestimulando o investimento privado, enquanto na realidade nunca houve tanto apoio ao crescimento do mercado interno”. “Diferente disso, tentavam ligar os governantes ao rentismo, à corrupção e ao narcotráfico, projetando suas criminosas práticas sobre os demais”, enfatizou.
Embora a mídia tente ocultar, lembrou o pesquisador, “na última década a economia boliviana se caracterizou pela estabilidade com crescimento inclusivo, sempre acima dos 4% do Produto Interno Bruto (PIB), permitindo o pagamento do décimo quarto salário e uma política de redistribuição de renda entre empresários e trabalhadores”. “E quem esteve dirigindo esta política foi Luis Arce, atual candidato à presidência, que vem para garantir os avanços sociais com a industrialização do país, acelerando o combate à pobreza e ampliando investimentos para alcançar a igualdade”, defendeu Porfirio.
FALTA DE GARANTIAS E TRANSPARÊNCIA
Para Severina Baltazar, secretária-executiva da Federação Departamental de Mulheres Camponesas Originárias Indígenas de Cochabamba Bartolina Sisa, pelo quadro acima exposto, “há uma profunda preocupação pela falta de garantias e transparência com relação ao processo eleitoral”. A situação se agrava ainda mais, frisou, “pela violência sistemática que tomou conta da campanha política com palavras racistas e cheias de ódio movidas por representantes da direita”.
Mulher aimará e heroína indígena, companheira de Túpac Katari, Bartolina Sisa organizou e liderou o cerco a La Paz contra os espanhóis, sendo presa, torturada e cruelmente assassinada em 5 de setembro de 1782. Hoje a organização que honra seu nome integra o “Pacto de Unidade” conjuntamente com a Confederação de Camponeses, a Confederação Sindicalista de Comunidades Interculturais e a Confederação de Povos Indígenas. O movimento foi chave para a construção e manutenção do Estado Plurinacional bem como para impulsionar, a partir da ação dos 36 povos originários, as primeiras transformações realizadas no governo do MAS. Por sua coerência e compromisso, as Bartolinas têm sofrido na própria pele o peso do retrocesso.
“Depois de 13 anos e nove meses de avanços sociais, particularmente para a questão dos direitos das mulheres, dos indígenas e dos trabalhadores, em que a nacionalização dos hidrocarbonetos nos permitiu espraiar a construção de escolas, hospitais, moradias e rodovias por todo o país, tivemos nestes poucos meses em que os golpistas tomaram de assalto o poder uma tragédia sem precedentes”, enfatizou Severina. “Com o velho ranço neocolonial, os mesmos neoliberais que sempre se submeteram ao estrangeiro, voltaram com o assédio, a censura e a perseguição contra as nossas organizações, nossos dirigentes e nossa base em geral, porém com ainda mais raiva contra os nossos candidatos. E na tentativa de justificar o racismo e a discriminação, e desqualificar o MAS”, alertou, “caluniam, mentem e difamam nos chamando de terroristas e narcotraficantes”, condenou.
Conforme Severina, “a desconfiança se torna total com a ação do ministro de Governo, Arturo Murillo, que esteve recentemente nos Estados Unidos, em chamadas reuniões de ‘alto nível’, usurpando funções que corresponderiam em todo caso à Chancelaria e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)”. Os sucessivos anúncios de “fraude” com que têm trabalhado, ressaltou, “apontam para criar novamente o caos e um clima de violência que atenta contra eleições limpas”.
A Rede de Comunicação Popular divulgou com nome, sobrenome e posto militar na ativa e na reserva, a tropa que estaria sendo mobilizada pelos golpistas para realizar atos terroristas antes, durante e depois das eleições. O eixo central da farsa seriam a multiplicação de cenários com “falsos positivos” como a colocação de artefatos explosivos fora e dentro dos hotéis para incriminar o MAS.
“Por tudo o que aconteceu ao longo destes meses, não há nenhuma confiança na transparência das eleições, nem nas Forças Militares, na Polícia, nos meios de comunicação ou no TSE, pelo qual exortamos a todos os organismos internacionais que possam enviar missões de observadores para nos auxiliar com garantias de pleno e democrático desenvolvimento do pleito”, declarou a liderança das Bartolina Sisa.
“O golpe de Estado de 2019 nos ensinou que precisamos redobrar a vigilância cidadã e o controle social, e que, diante das falsas montagens e armações às vésperas da vitória de Luis Arce e David Choquehuanca, que representam o resgate da democracia na Bolívia, mais do que nunca o acompanhamento da comunidade internacional se torna imprescindível”, assinalou Severina Baltazar.
***
* A Carta Maior começa com este artigo uma série de reportagens sobre as eleições bolivianas, que após o golpe de Estado de 2019 e inúmeras lutas finalmente ocorrerá no próximo dia 18 de outubro. Pelo majestoso papel que as mulheres vêm tendo ao longo deste processo, nada mais justo do que começar pela sede da Federação Departamental de Mulheres Camponesas Originárias Indígenas de Cochabamba “Bartolina Sisa”. Foram elas que defenderam a Whipala como bandeira de luta e manto sagrado, bem como os avanços políticos e sociais do governo de Evo Morales. Foram elas que, carregando seus filhos nas costas, não se intimidaram e denunciaram os retrocessos impostos pela oligarquia a serviço do imperialismo.
Serão dias e noites de intensos combates de ideias em que esperamos contribuir com textos e imagens para a reflexão e a construção da Pátria Grande tão sonhada por Bolívar.