Permissão para venda de 100% da programação é um grave desvio de finalidade e prejudicará oferta de conteúdos à população
O presidente Jair Bolsonaro sancionou nesta terça-feira (12) um projeto de lei (PL) que permite a uma emissora de rádio ou televisão ceder todo o seu tempo de programação para exibição de programas produzidos de forma independente. A matéria havia sido aprovada no Congresso Nacional no fim de junho.
Até então, não havia um percentual definido para produção independente, apenas a regra que permite que até 25% da programação das emissoras possa ser destinada à veiculação de publicidade comercial de produtos e serviços. Esse limite de veiculação de publicidade segue mantido, mas todo o restante da programação agora poderá ser vendido. Isso porque considerava-se esse “arrendamento” de horário como publicidade comercial. Agora, com a publicação da Lei 14.408/2022, publicidade comercial é o espaço da programação para a difusão de mensagens e informações com conteúdo próprio de publicidade de produtos e serviços para os consumidores ou de promoção de imagem e marca de empresas. A nova lei diz ainda que essa programação deve ter finalidades educativas e culturais.
No entanto, isso apenas esconde o real objetivo da medida, que buscou legalizar um balcão de negócios que já existia na prática, mas era flagrantemente irregular: a venda de espaço das emissoras para grupos religiosos e programas de televendas. Nada a ver com programação de caráter educativo, cultural ou científico, como está previsto na legislação. Além disso, é no mínimo problemático qualificar proselitismo religioso como conteúdo “independente”.
A cessão de espaço para igrejas já foi questionada pelo Ministério Público Federal (MPF) e uma decisão recente da Justiça Federal, proferida em maio deste ano, condenou os canais de TV Band e Record TV a reduzirem o período total comercializado de sua grade para 25% do tempo diário, incluindo nessa conta os espaços vendidos a entidades religiosas ou sem fins lucrativos, prática recorrente. Não à toa, o projeto de lei que originou a Lei 14.408/2022 foi aprovado em menos de um mês após a condenação das duas emissoras.
De acordo com o MPF, em inquérito civil instaurado em 2016, as emissoras descumprem o limite legal ao comercializarem, além do tempo destinado à publicidade de produtos e serviços, até 9 horas e 30 minutos diários para divulgação de proselitismo religioso. As informações foram divulgadas pelo site de notícias UOL. A reportagem informa que os procuradores apuraram que a emissora TV Record, por exemplo, comercializava até 28,19% do tempo, destinando 20,83% semanais para programas de responsabilidade da Igreja Universal do Reino de Deus. Já a Band no Rio de Janeiro cedia 25,98% de sua programação, em média, para fins comerciais, também burlando o limite legal.
Ao contrário do que muitos podem pensar, as emissoras de rádio e TV não são donas dos canais hospedados no chamado espectro eletromagnético. Ele é um bem público e, por isso, é necessário autorização do Estado para seu uso, ou seja, uma concessão pública. Essa concessão deve obedecer a uma série de regras para assegurar que a programação entregue à população tenha um mínimo de qualidade e compromisso com o interesse público e o direito à comunicação. Por isso, além de limitar em até 25% o tempo para publicidade comercial, as emissoras devem assegurar 5% de programação jornalística, por exemplo. De resto, a programação das emissoras deve, por lei, veicular prioritariamente conteúdos educativos, culturais e científicos.
Ao permitir a cessão total do tempo dos canais, sem qualquer garantia sobre a qualidade do conteúdo, a nova lei aplica um grave desvio de finalidade sobre essas concessões públicas, que são patrimônio da sociedade, e permite o enriquecimento indevido de empresários que já lucram com publicidade comercial em suas emissoras.
A veiculação de conteúdo independente é um princípio previsto na Constituição Federal, como forma de ampliar a diversidade de conteúdos na radiodifusão, mas esse princípio está sendo burlado para expandir a atuação de igrejas sobre emissoras de rádio e TV, sem qualquer debate ou fiscalização adequada por parte do Poder Público. O Ministério das Comunicações, historicamente, sempre foi omisso na fiscalização de abusos e irregularidades cometidos por emissoras que detêm concessões públicas de radiodifusão.
O direito à comunicação compreende a ideia de que população deve receber conteúdos de qualidade, com pluralidade e diversidade, por meio da radiodifusão, onde o espaço é limitado tecnicamente em número de canais. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) considera que a nova lei, além de tentar legalizar uma prática incompatível com a Constituição Federal, vai prejudicar enormemente a oferta de conteúdos informativos à população.
Brasília 13 de julho de 2022.