3 de dezembro de 2024

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Venezuela: a “joia da coroa” da América Latina e a farsa da mídia hegemônica

Quando consideramos o contexto político que vivemos na América Latina nos últimos anos, no qual parte considerável dos países vive uma crise das instituições democráticas, observamos que as críticas da mídia hegemônica recaem, apenas, sobre o governo da Venezuela. Por que será que isso acontece?

Por Verbena Córdula/Diálogos do Sul Global

Não é raro que os informativos televisivos, os jornais impressos ou digitais, as emissoras de rádio analógicas ou digitai, disseminem o quanto o governo da Venezuela é antidemocrático. De fato, chegam a ser ridículos a ponto de adjetivar o Presidente Nicolás Maduro como ditador. E essa estigmatização, assim como os consequentes bloqueios econômicos, se dão porque o país ousa afrontar os Estados Unidos e sua tentativa de controlar o mundo – política, cultural, econômica e militarmente. O “país mais poderoso do mundo” não aceita que governantes de países considerados “subdesenvolvidos” ousem enfrentá-lo – ou apenas que não acatem todas as suas condições referentes às prerrogativas de comercialização, de relações exteriores, entre outras – e busquem salvaguardar sua soberania.

A não-subserviência de países como Cuba e Venezuela, que, diferentemente da maioria das nações latino-americanas, trabalham para manter a soberania nacional e criar modelos de desenvolvimento econômico que não signifiquem acatamento incondicional dos ditames dos “donos do mundo”, pagam um preço muito alto, sobretudo porque a visão dos grupos hegemônicos moldam a opinião pública internacional, que se encontra assentada no desprezo daquelas duas nações. Independentemente das inúmeras críticas que possamos tecer aos respectivos governos, o que salientamos aqui é o trabalho sistemático dos meios de comunicação hegemônicos em retratá-los unicamente a partir de perspectivas negativas.

Golpes de Estado e Massacres

Esse mesmo comportamento da mídia hegemônica não vemos acontecer em relação aos países aliados e alinhados com as políticas estadunidenses. Na Colômbia, por exemplo, durante o governo do presidente Ivan Duque, um grande subserviente do Ocidente, e especialmente dos EUA, uma onda de assassinatos de líderes sociais e de ex-combatentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) foi levada a cabo, sem que o governo adotasse qualquer providência para cessá-la. Mas as mídias hegemônicas não foram contundentes no sentido de cobrar os direitos humanos naquele país. Aliás, o Escritório de Direitos Humanos da própria ONU notificou 36 massacres em 2019 em território colombiano, classificados como recordes desde a contagem iniciada no ano de 2014. No entanto, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, à época sob o comando da ex-presidenta do Chile Michelle Bachelet, afirmava estar “profundamente preocupada”, conforme uma nota publicada em janeiro daquele ano.

No Equador, os cadáveres de vítimas da Covid-19 que enchiam as ruas de Guayaquil, a segunda maior cidade daquele país, não foram suficientes para motivar uma Resolução da ONU contra o então governo de Lenín Moreno. Tampouco a violência com a qual aquele mesmo governo enfrentou os mais de mil protestos em todo o país, em outubro de 2019, que pediam diminuição do preço da gasolina e, principalmente, o fim da Reforma Trabalhista que, da mesma maneira como a realizada no Brasil, precarizou o trabalho dos servidores públicos e privados. A insensibilidade demonstrada pelo presidente Lenín Moreno através do pacote econômico neoliberal que deixou ainda mais vulnerabilizado o povo equatoriano não foi vista como ataque aos direitos humanos.

Da mesma maneira, não vimos uma condenação ao Golpe de Estado que ocorreu na Bolívia e obrigou o presidente eleito democraticamente, Evo Morales, a renunciar e se exilar na Argentina. Não bastasse isso, Jeanine Áñez, que assumiu o governo após o golpe, manipulou os números da Covid-19, ao tempo em que o Estado boliviano sob a sua liderança não brindou a assistência adequada e deixou milhares de pessoas morrerem vitimizadas pelo vírus. Isso, aliado às reações violentas das forças do Estado equatoriano contra as manifestações que clamavam pelo retorno à democracia naquele país, também não foi suficiente para motivar a mídia hegemônica latino-americana e mundial a produzir materiais jornalísticos contra o governo da ditadora. De fato, Áñez nunca recebeu este adjetivo dos meios de comunicação ocidentais. Além disso, as tentativas de manipulação do processo eleitoral pela então “presidenta” Áñez, que adiou por diversas vezes as eleições presidenciais com medo da vitória dos candidatos e candidatas da oposição que apareciam com vantagem expressiva, tampouco motivaram um repúdio por parte da mídia hegemônica latino-americana e global.

No Chile, principalmente no último mandato do falecido Sebastián Piñera, cujos protestos de estudantes e da classe trabalhadora tornaram-se contumazes, sobretudo em rechaço à política previdenciária ultraliberal que deteriorou ainda mais a qualidade de vida dos mais pobres, assim como em repúdio ao alto custo de vida, assim como aos altos preços dos remédios e do transporte – protestos brutalmente reprimidos pelo governo – não houve uma indignação e crítica contundente por parte da mídia hegemônica. Embora o governo de Piñera, sucessor de Michelle Bachelet, tenha ignorado o sofrimento do povo chileno, e tratado os manifestantes com muita violência, gerando mortes e mutilações, não vimos a mídia neoliberal classificar o comportamento do mandatário como brutal e ditatorial. Inclusive, em outubro de 2019, por exemplo, policiais foram acusados de crucificar manifestantes, um deles adolescente, o que motivou a abertura de várias denúncias pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) daquele país, mas não vimos uma cobertura midiática recriminando o fato.

Vamos sair do passado recente e nos voltar para o presente. Na Argentina, desde a assunção de Javier Milei como Presidente da República, em dezembro de 2023, a população trabalhadora e também estudantil já realizou várias mobilizações para protestar contra as medidas neoliberais que brutalmente têm empobrecido aquele povo. A situação está tão crítica que, conforme a própria ONU, todos os dias mais de um milhão de crianças e adolescentes menores de 18 anos vão dormir sem se alimentar. Mas, quando o povo se levanta em protesto, tem sido brutalmente reprimido pelas forças policiais. Até jornalistas têm sido alvos da repressão, de modo a ver subtraído o seu direito a informar. Os meios de comunicação neoliberais “fecham os olhos” para o que acontece na Argentina de Milei. E insistem em se focar na Venezuela.

E nos perguntamos: por que todos esses países latino-americanos afrontam, desrespeitam os direitos humanos, e apenas a Venezuela é enxergada como alvo? Os motivos são vários. Mas aqui nos concentraremos em alguns deles.

Riquezas naturais e geopolítica

Não é segredo que as reservas de petróleo venezuelanas são maiores que as sauditas e ainda bem maiores que as estadunidenses. Isso, logicamente, leva os países que dependem desse tipo de energia a “ficarem de olho no ouro negro” da Venezuela, país que não se alinha às políticas capitalistas lideradas pelos Estados Unidos e a União Europeia, as quais estão baseadas principalmente na espoliação das riquezas de terceiros.

Apesar de produtor de petróleo, os EUA sempre dependeram das importações. De acordo com vários estudos, esse combustível é responsável por mais de 80% da demanda de energia do setor de transporte estadunidense. Desta forma, controlar fontes petrolíferas faz parte das grandes prioridades daquele país. Esse é um dos motivos, mas não o único. Apesar de Nicolás Maduro haver concordado em fornecer petróleo a Joe Biden, de permitir a dolarização das atividades comerciais, ainda assim não é suficiente. Os Estados Unidos querem controle total.

O segundo motivo é o fato de a Venezuela ser rica em outros recursos naturais. Dados da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) mostram que a região latino-americana e o Caribe possuem 65% das reservas mundiais de lítio, 38% de cobre, 42% de prata, 21% de ferro, 33% de estanho, 18% de bauxita e 14% de níquel. E que a Venezuela, além do petróleo, também é muito rica em alumínio, cobre, ferro, gás natural, entre outros recursos que também interessam aos Estados Unidos e às demais potências do Norte Global.

O terceiro motivo é que, tanto os Estados Unidos como também a União Europeia defendem seus interesses geoestratégicos em território latino-americano. E, neste sentido, estão buscando neutralizar as influências que China e Rússia vêm tendo na região, com a importante e estratégica parceria com o país bolivariano.

Por esses e outros motivos os países do Norte Global, liderados pelos EUA, se empenham tanto em fragilizar a Venezuela, infelizmente com o apoio de “satélites” localizados em outras partes do mundo –, inclusive na própria América Latina e Caribe, como os que compõem o Grupo de Lima, completamente subservientes às vontades e desejos dos “donos do mundo”.

As tentativas de dominar a Venezuela são muitas, inclusive contrariando todas as normas internacionais e reconhecendo um presidente que se autoproclamou, como Juan Guaidó. Os Estados Unidos, a União Europeia e todos os “poderosos” do Norte Global e seus lacaios querem, de fato, esconder suas verdadeiras intenções em relação ao país bolivariano. Querem “carta-branca” para dominar a “joia da Coroa” da América Latina. E personagens como Maduro são um obstáculo.

O processo eleitoral venezuelano é uma questão que cabe somente àquele povo. Não cabe a observadoras e observadores internacionais, não cabe a governantes de outros países, não cabe à mídia hegemônica mundial. O povo venezuelano tem capacidade suficiente para decidir se as eleições foram ou não legítimas.

Verbena Córdula é graduada em História, Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporânea pela Universidad Complutense de Madrid e Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA.