As experiências de comunicação popular na Argentina e na Bolívia e a atual situação desses países após a ascensão da extrema-direita. E as experiências de Cuba e da Venezuela na construção de uma comunicação popular e alternativa, visando romper o cerco da imprensa corporativa, dentro e fora destes países.
Por Tatiana Carlotti
Fotos: Priscila Ramos/MST
Esses foram os principais temas debatidos no sábado (21/9), durante o Seminário Internacional de Comunicação para a Integração, no Armazém do Campo, em São Paulo. Organizado pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé em parceria com a agência Inter Press Service (IPS), o debate sobre o fortalecimento das mídias independentes contou com a coordenação da jornalista e membro do Barão de Itararé, Vanessa Martina (Diálogos do Sul Global). Participaram presencialmente do seminário a jornalista argentina Úrsula Asta, integrante do coletivo dirigente da Rádio Gráfica, radialista na Sputknik e assessora de políticas públicas; e advogada feminista da Bolívia Canela Crespo, integrante da Casa Tomada – Coletivo Comunicacional de Esquerda.
Remotamente, de Cuba, participou o jornalista Alcides García, diretor da produtora audiovisual Videos Crisol, integrante da Rede de Educadoras e Educadores Populares da Associação Centro Martin Luther King e ex-coordenador da Secretaria de Comunicação da Secretaria Operativa de Articulação Continental de Movimentos Sociais rumo à ALBA (2015 a 2022). E da Venezuela, a politóloga Jennifer Mujica, criadora de conteúdo digital para o El Mundo Al Revés e para a agência Venezuela News.
Assista à íntegra do debate:
Argentina: comunicação sob ataques de Milei
A jornalista argentina Úrsula Asta, radialista na Sputnik e assessora de políticas públicas, contou a experiência de comunicação popular da Rádio Gráfica, sediada em Buenos Aires; e trouxe um panorama do setor na Argentina sob o governo de extrema-direita de Javier Milei.
A Rádio Gráfica surgiu a partir da recuperação de uma fábrica pelos trabalhadores argentinos no final do século XX, em meio à crise econômica, social e política que atingiu o país. Criada e mantida por decisão dos próprios trabalhadores, a organização se mantém vinculada ao mundo sindical e, além da rádio, eles criaram a Cooperativa Gráfica, montaram uma escola pública de ensino fundamental e também um centro de Saúde vinculado ao Hospital Argerich de Buenos Aires. “Um polo produtivo com quatro instituições que funcionam até hoje”, aponta.
Em 2009, conta Úrsula, o governo de Cristina Kirchner sancionou uma lei sobre o serviço de comunicação no país, extinguindo a regulação do período militar. A nova lei foi um avanço ao estabelecer que 33% do espectro radioelétrico – por onde se transmite os canais de TV e rádio – fossem destinados às mídias com fins lucrativos e, da mesma forma, que 33% fossem destinados às mídias públicas e 33% àquelas sem-fins lucrativos. Com esta medida, aponta Asta, as cooperativas e os centros alternativos existentes passaram a ter uma legalidade.
A orientação desse movimento foi a construção das bases: de baixo para cima e a partir do local e de uma agenda internacional. Esse processo, porém, levaria um revés com a chegada de Macri ao poder. “Em menos de um mês, foram outorgados três decretos que alteraram totalmente essa lei, sobretudo em seus aspectos fundamentais relacionados à concentração midiática e à autoridade que a regulava”, conta.
Agora, avalia Asta, “a Argentina está vivendo um momento político muito terrível e necessitamos refletir como uma figura como a de Javier Milei chegou ao poder no país. Sua eleição não significa que a sociedade se endireitou. Na verdade, nós não tivemos experiências capazes de propor um modelo popular que gerasse expectativa de uma vida melhor”.
Com Milei, a comunicação pública e a comunitária, em particular, “foram duramente atingidas”, avalia. “A Argentina passa por um período difícil de ataque aos meios públicos, de fechamento da Agência Nacional pública. O que impera é o setor privado, o desemprego, os salários baixos e a total pauperização da sociedade”, com isso, as mídias comunitárias e não lucrativas estão sob “um grande buraco econômico” e o financiamento acena como um gargalo.
Em termos de construção e manutenção da organização da comunicação popular, Asta aponta como indispensáveis as alianças construídas com sindicatos, com o Fórum Argentino das Rádios Comunitárias (Farco) e outros veículos comunitários. “Os meios de comunicação que se encontram nas mãos do povo têm uma lógica própria. Sua construção é a da participação, da democracia e de um modelo de produção que caminha na contramão do que normalmente acontece”.
Nomear, saber, poder, atuar e agir
“Os grandes avanços são feitos cruzando e eliminando fronteiras. Houve um período, não faz muito tempo, que a integração entre nossos Estados parecia quase natural”, salientou a advogada feminista Canela Crespo, integrante da Casa Tomada – Coletivo Comunicacional de Esquerda, ao citar a colaboração, em 2006, dos governos de Nestor Kirchner, Lula e Chávez à nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia, promovida por Evo Morales.
“Se isso acontece no âmbito do Estado (ou pelo menos acontecia), também deveria acontecer no âmbito das nossas organizações sociais, movimentos, partidos e militâncias e dos nossos espaços de comunicação. Na Bolívia chamamos isso de ‘diplomacia dos povos’, que é igual ou mais importante do que a diplomacia tradicional colonizadora”.
Ao trazer a conjuntura política no país, ela destacou a importância dos meios de comunicação alternativos e independentes, bolivianos e internacionais, durante o golpe de 2019, quando os meios hegemônicos, que recebiam publicidade do governo, voltaram-se contra Evo. Apesar disso o financiamento continua, “um erro que permanece”, avalia, e se soma à “postergação de regulações urgentes” e à “não aposta na construção de uma comunicação popular”.
Ela conta que uma das primeiras medidas do governo de Jeanine Añez, após a renúncia forçada de Evo, foi desmontar o sistema de rádios comunitárias no país – que passou de 180 para 30 rádios – e ameaçar com processos penais quem falar contra o governo. “Até hoje, as rádios não foram restauradas como se devia. É uma dívida pendente”, concluiu.
“Sem as rádios comunitárias, sem os meios alternativos e sem os meios independentes, talvez hoje não tivéssemos registros suficientes para levar os processos penais contra os golpistas”, destacou. Ela também trouxe a tradição histórica de organização comunitária no país, cujas lideranças revolucionárias se articularam “tanto em organizações indígenas originárias e campesinas, como em organizações de trabalhadores e do campo popular”.
Na Bolívia conta Crespo, “se você viver no campo e trabalhar com a terra, você estará conectado ao sindicato e à central agrária. Se for um trabalhador, estará filiado ao sindicato. Se morar na cidade e tiver filhos, provavelmente, fará parte do grupo de mães e pais de família ou de um grupo de vizinhos”.
“É um país de fato politizado”, complementou, ao destacar que todos esses sujeitos coletivos atuam no fortalecimento de seus movimentos e, nas últimas décadas, na disputa do poder institucional”. Assim Evo foi eleito o primeiro presidente indígena da Bolívia que tem 60% de sua população autodeclarada indígena, detalha.
Membro de um coletivo de comunicação que se assume “de esquerda e feminista, em prol da descolonização, da “despatriarcalização” e da consolidação do Estado plurinacional”, ela também abordou as formas de se fazer comunicação popular: “comunicar deve ser claro, honesto, transparente”.
Além disso, a construção da narrativa “não cai do céu”. Ela precisa “estar a par das agendas revolucionárias do nosso povo, mobilizando ainda mais as pessoas”. É “um pé na instituição e outro na rua” e a partir de todos os meios: rádio, imprensa escrita, plataformas digitais, televisão. Em termos de linguagem: é preciso desburocratizar e mudar a linguagem.
“Não nomear as coisas, mas nomear a dor. Nomeemos, portanto, este fascismo que está nos oprimindo. O neoliberalismo, o imperialismo, o capitalismo, o patriarcado, a colonização e as formas de vida mercantilizada. Somente nomeando é que conhecemos e somente conhecendo é que podemos ou poderemos fazer algo a respeito. Nomear, saber, poder, atuar ou agir”, sintetizou.
As lições cubanas para a comunicação popular
“Estamos enfrentando uma guerra por uma nova hegemonia mundial e, atrevo-me a dizer, estamos enfrentando uma Terceira Guerra Mundial”, com esta avaliação o jornalista cubano Alcides García, diretor da Videos Crisol e membro da Rede de Educadoras e Educadores Populares da Associação Centro Martin Luther King, analisou a questão da comunicação na ilha.
Ex-coordenador da Secretaria de Comunicação da Secretaria Operativa de Articulação Continental de Movimentos Sociais rumo à ALBA (2015 a 2022), García trouxe a crise que enfrentam os Estados Unidos pela hegemonia diante da ascensão do bloco dos BRICs, que cria uma nova reconfiguração da geopolítica mundial.
“Embora o conflito entre Rússia e Ucrânia seja bélico, o real conflito é a luta pela hegemonia global, a nova ordem mundial que é política, econômica, financeira e, sobretudo, uma nova ordem comunicacional, simbólica e cultural”, apontou. Frente a isso, a integração é uma urgência. “Não poderemos chegar a nenhum lugar se não nos articularmos e nos integrarmos”, salientou, ao mencionar dois aspectos desta integração: a econômica (ainda insuficiente) e a comunicativa.
A equação é simples: a boa articulação na comunicação conduz à articulação política e econômica, porém, quando é priorizado apenas o político ou o econômico, e a comunicação é vista como “mera ferramenta, “nós terminamos sozinhos”. Em sua avaliação, é fundamental dar sentido político e econômico para fazer a verdadeira comunicação demandada pelos nossos tempos.
“As mídias alternativas, aponta García, costumam estar muito mais próximas dos povos, da verdade e da construção de agendas que partam do movimento popular e de seu cotidiano”. É preciso pensar em como harmonizar os esforços de governos com os esforços desses meios alternativos, pelo menos, aonde isso for possível, recomenda.
A partir da experiência durante os “anos de construção e reflexão coletiva em âmbito continental” da ALBA, García destacou três níveis de comunicação: o organizacional, o midiático e o comunitário.
O organizacional, explicou, diz respeito à construção dos próprios processos políticos e parte da reflexão sobre a lógica de comunicação que irá embasá-los. Qual a lógica de comunicação construirá nossas organizações políticas e movimentos sociais? Como fazer a comunicação interna com a militância? Questionou, ao alertar para a necessidade de construirmos lógicas de comunicação que sejam “dialógicas, participativas, pedagógicas, educativas para construir militância e poder popular”.
O segundo âmbito que ele menciona é o midiático. García apontou que as mídias alternativas, às vezes, são carentes de impacto e de efeito junto à sociedade. “É muito importante construir esse discurso com a maioria ou ficaremos no “solilóquio, falando entre nós, sem disputar a hegemonia como temos que disputar”, salientou.
Por último, ele destacou o âmbito comunitário. “É como dialogamos nos espaços populares onde nos movemos, inclusive, como organização e como mídia. Muitas vezes, nós dialogamos com um público local, estadual, nacional ou internacional, e esquecemos de dialogar com as comunidades que estão mais próximas”, frisou.
Muito mais do que meios ou construção de discursos, há “um emaranhado de comunicação que precisa ser pensado estrategicamente”. Neste sentido, criar redes de comunicação e integrá-las passa por “integrar a economia, o financiamento e os custos”, além da articulação entre mídias e suas agendas, produção colaborativa, definição de ênfases, pautas e campanhas comuns”.
Venezuela, terra de comunicadores populares
Diretamente da Venezuela, a politóloga Jennifer Mujica, criadora de conteúdo digital para o canal El Mundo al Revés e para a agência Venezuela News, destacou que em 12 de abril é comemorado o Dia da Comunicação Popular, “para lembrar, a cada ano, o papel que a mídia alternativa e a ação popular desempenharam no estabelecimento da democracia e da constitucionalidade no país”.
O golpe de estado contra o então presidente Hugo Chávez, em meio à manipulação dos meios tradicionais da comunicação privada e internacional, “foi a primeira experiência em que o povo organizado, através da comunicação alternativa, restabeleceu a ordem constitucional”, procurando “formas de quebrar o silêncio informativo e expressar a verdade com megafones, mensagens de texto, grafite, rádios comunitárias e outros meios de comunicação alternativos”, relata.
A partir daí, a comunicação do país se abriu para novas formas, estratégias e métodos, visando superar as barreiras midiáticas. Chávez, por exemplo, fundou emissoras de rádio (são mais de duzentas no país), de televisão, jornais populares e comunitários, além da posterior entrada na comunicação digital usando as novas tecnologias da informação “para melhorar e fortalecer a revolução bolivariana e defender a verdade da Venezuela”, acrescentou.
A partir do que o país viveu e ainda vive, ela elencou uma série de medidas que considera importantes para frear a desinformação: a formação permanente e a democratização constante da comunicação; o financiamento dos meios alternativos e a criação de leis populares que permitam a democratização; a regulamentação do uso das redes sociais; a responsabilização legal dos grandes meios de comunicação e das novas aristocracias financeiras.
E também mencionou os principais entraves como a questão dos dados e da privacidade nas redes, “em cada país, os cidadãos terão de debater publicamente sobre o significado da privacidade e o que esperam que os governos protejam e que as empresas respeitem”. A questão da justiça e da penalização do uso da tecnologia em ações de vigilância e controle. E o dilema do trabalho e dos direitos dos trabalhadores frente ao ritmo acelerado da automatização que coloca em risco o emprego em todo o globo.
Por fim, alertou: sem democratização, “o desenvolvimento tecnológico poderá levar a novas emergências de conflitos e agitação política na Venezuela. É preciso entender que todas as direitas e todas as pessoas acreditam no conteúdo que observam na internet. Como garantir que elas tenham informação real? O que fazer para validarmos a informação?”