Enquanto o Brasil tenta digerir os traumas recentes e projetar um futuro minimamente estável, nos bastidores digitais, a extrema direita não perde tempo. O que se viu recentemente em Fortaleza, Ceará, durante um seminário promovido pelo PL, não foi apenas um evento partidário, mas a cristalização de uma aliança sinistra e a demonstração cabal de que o colchão para a batalha eleitoral de 2026 já está sendo meticulosamente preparado. Trata-se de uma reedição turbinada dos “Engenheiros do Caos”, versão 5.0, operando sem qualquer pudor ou respeito às regras do jogo democrático. O sinal é claro: 2026 será palco de um vale-tudo digital, e a democracia, mais uma vez, está na mira, emparedada.
Por Joanne Mota, para o Barão de Itararé*
O legado sombrio: de 2018 ao 8 de janeiro
Não podemos analisar o presente sem olhar para o passado recente. As eleições de 2018 foram marcadas por uma enxurrada sem precedentes de fake news e desinformação, disseminadas principalmente via WhatsApp, que corroeu o debate público e pavimentou o caminho para a ascensão de um projeto autoritário. O ápice dessa escalada de ataques à democracia materializou-se nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, uma tentativa bárbara de subverter o resultado eleitoral, alimentada por anos de narrativas de ódio, negacionismo e teorias conspiratórias propagadas pelas mesmas redes digitais que hoje recebem treinamento VIP.
O seminário no Centro de Eventos do Ceará, como bem relatado pela jornalista Sara Goes, foi mais do que um encontro político; foi uma aula prática de como transformar um partido em base operacional de uma milícia digital sofisticada. Com um auditório lotado, o evento contou com a presença e o protagonismo de representantes oficiais da Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), Google e CapCut (editor de vídeos popular no TikTok). No palco, as Big Techs dominaram a programação, oferecendo sem pudor tutoriais sobre automação de vídeos, uso de inteligência artificial para criar conteúdo enviesado, impulsionamento via WhatsApp Business e até geração de podcasts com voz sintética – Pode isso Arnaldo???.
O objetivo era explícito, criminoso e assustador: treinar a extrema direita a dominar as plataformas com as ferramentas fornecidas pelas próprias corporações. Se antes o chamado “gabinete do ódio” operava na base do improviso – de certa forma -, memes e raiva, agora a cartilha é outra. Há método, scripts automatizados, fluxos de produção baseados no chamado aprendizado de máquina (machine learning) e uma estética gamificada para engajar e manipular. Jair Bolsonaro, presente como um mascote ideológico, falou por 5 minutos e abençoou a aliança: “Ainda bem que as big techs estão do lado certo”. Uma confissão da simbiose nefasta.
A democracia emparedada e o ódio como combustível
Essa profissionalização da milícia digital, com o aval e as ferramentas das gigantes da tecnologia, representa uma ameaça direta às jovens e ainda fragilizadas instituições democráticas brasileiras. O objetivo não é mais apenas disseminar mentiras pontuais, mas criar um ecossistema de desinformação permanente, que mina a confiança no processo eleitoral, recruta a população, ataca o Judiciário (como visto nas falas de Bolsonaro no evento e mesmo do seu filho, Eduardo, acomodado atrás das saias dos EUA), deslegitima a imprensa profissional e normaliza a violência política. Os crimes são muitos.
O treinamento explícito em “ataque a adversários” e a alimentação de IAs com “conteúdo político enviesado” são a receita para intensificar os discursos de ódio contra minorias, opositores políticos e qualquer voz dissonante. Sem falar a incitação ao crime. A estética gamificada e a linguagem emocional servem para engajar e fidelizar públicos, tornando-os receptivos a narrativas cada vez mais radicais e violentas. O que está em jogo não é apenas a disputa eleitoral, mas a própria possibilidade de um debate público minimamente racional e dentro das quatro linhas da nossa Constituição. As big techs, ao fornecerem as armas e o treinamento, tornam-se mais uma vez cúmplices diretas dessa erosão democrática e da escalada do ódio, priorizando o lucro e o engajamento acima de qualquer valor cívico.
A esquerda e o risco da inércia: confiar apenas em Lula não basta
Diante desse cenário alarmante, no qual o adversário se profissionaliza e se arma com tecnologia de ponta mais de um ano antes da disputa, a postura da esquerda, ou ao menos de parte significativa dela, preocupa. Como apontado, parece haver uma perigosa tendência a se fiar quase exclusivamente na figura de Lula como trunfo para a disputa de 2026. A confiança no legado de governos passados e na força eleitoral do presidente, embora compreensível, corre o risco de se tornar uma armadilha fatal.
As pesquisas de opinião já começam a acender sinais de alerta, indicando um cenário potencialmente mais adverso do que se imagina. Hoje, afetos movem montanhas. Ignorar esses avisos e apostar apenas na memória e na rejeição ao bolsonarismo pode ser suicida. A milícia digital não opera mais no improviso; ela possui método, tecnologia e um exército treinado para moldar percepções e inflamar paixões. Contra essa máquina, um “legado de lembranças” será insuficiente. Basta olhar para Europa para ver com que esse agenciamento tem feito em diversos países.
É urgente que o campo progressista e de esquerda compreenda a profundidade da transformação em curso no campo de batalha digital. É preciso ir além das boas intenções e das discussões sobre regulação – que são fundamentais, mas não bastam por si só. É necessário desenvolver estratégias próprias, inovadoras e eficazes para disputar narrativas, mobilizar bases, levantar conceitos, combater a desinformação com inteligência e agilidade e, principalmente, construir um projeto de futuro que dialogue com as angústias e esperanças da população de forma autêntica e conectada à realidade imposta pelas tecnologias. A inércia ou a repetição de fórmulas antigas pode significar entregar o futuro de bandeja para aqueles que já demonstraram não ter apreço algum pela democracia e nem pela vida do povo.
A aliança entre a extrema direita e as big techs está selada e operacional. 2026 será uma batalha feroz, travada em grande parte no terreno digital, com armas cada vez mais sofisticadas de manipulação em massa. A democracia brasileira, já combalida, enfrentará um teste de estresse sem precedentes. A reação precisa ser imediata, estratégica e contundente, envolvendo não apenas os partidos, mas toda a sociedade civil comprometida com os valores democráticos. Ou levantamos nossas armas e ideias agora, com inteligência e coragem, ou corremos o sério risco de assistir à consolidação de um projeto autoritário alimentado por algoritmos e ódio, no qual a verdade se torna irrelevante e a vontade popular, uma mera peça manipulável no jogo do poder.
A Coluna do Barão é um espaço dedicado à publicação de análises e reflexões sobre a comunicação e questões como a política, a economia, a cultura e sociedade brasileira em geral. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos, em sua ampla maioria, membros a Coordenação Executiva ou do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.