Quase duas décadas após sua vitória histórica nas urnas, o primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales, foi proscrito da disputa e conclama o voto nulo.
Por Javier Tolcachier/FCINA
Tradução: Vanessa Martina-Silva/ Diálogos do Sul Global
Aquele que, em determinado momento, foi considerado seu herdeiro político, o atual presidente da Câmara de Senadores, Andrónico Rodríguez, aparece como único candidato progressista com alguma chance de chegar ao segundo turno, embora não conte com o apoio explícito das distintas organizações camponesas e indígenas. Por sua vez, os movimentos populares chegam fragmentados, o que abre a possibilidade de retorno da direita ao poder político.
Para iluminar esse panorama preocupante, o Fórum de Comunicação para a Integração de NossAmérica (FCINA) convidou o analista político Antonio Abal Oña, a comunicadora Dolores Arce e a socióloga brasileira Ana Prestes para um diálogo. Com mediação de Vanessa Martina-Silva (Diálogos do Sul Global), participaram da entrevista Abel Ticona (Agência Plurinacional de Comunicação da Bolívia), Felipe Bianchi (Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé) e Javier Tolcachier (Pressenza).
Direita busca retomar poder na Bolívia com ajuste neoliberal
Numa primeira abordagem, Abal Oña destacou a intenção das candidaturas de direita em buscar reformas estruturais, impondo uma mudança drástica no modelo social, comunitário e de redistribuição, em favor de uma economia de livre mercado. Trata-se, em outras palavras, de um retorno às políticas de ajuste neoliberal, que constituem a base programática de todas as opções da direita.
Esses setores propõem inclusive abrir um processo de reforma da Constituição Política do Estado, revertendo assim as conquistas do Estado Plurinacional.
Receitas já conhecidas, como recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI), reduzir o tamanho do Estado e demitir milhares de trabalhadores de empresas estatais, fazem parte de um ajuste brutal, que os bolivianos conhecem muito bem em sua história.
Comunicação popular sofre perseguição; grandes meios apoiam virada neoliberal
Questionada sobre a situação da comunicação e a influência dos meios dominantes na conjuntura atual, Dolores Arce indicou que os últimos anos não foram um período fácil para os meios alternativos e populares, enquanto os grandes meios se fortaleceram.
Os meios alternativos estão sendo penalizados para que não possam acessar verbas de publicidade governamental apenas por manterem uma linha minimamente crítica — ou algo pior. Há graves ameaças contra aqueles que informam sobre os protestos sociais, incluindo uma lista de bloqueio de emissoras comunitárias e apreensão de equipamentos em várias rádios.
Embora se aleguem razões burocráticas, o que ocorre na prática é que as sanções visam intimidar a comunicação crítica. Enquanto isso, os meios dominantes, que incentivaram as situações de crise, mantêm boa sintonia com o governo nacional por meio das verbas publicitárias. Esses veículos jamais deixaram de conspirar e foram os principais instigadores do linchamento midiático ao ex-presidente Evo Morales (2006-2019).
Trata-se, em última instância, de uma estratégia de guerra cognitiva operada pelos grandes meios, que foi aprimorada com o objetivo de moldar o senso comum da população e prepará-la psicologicamente para aceitar que o retorno ao neoliberalismo é a única saída para a crise, assinalou Arce.
Avanço da extrema-direita e apoio internacional ao povo boliviano
Desde o Brasil, a politóloga Ana Prestes destacou os processos de lawfare e perseguição contra lideranças populares — dos quais foi vítima o ex-presidente Lula (2003-2011), assim como o que ocorreu com Rafael Correa no Equador, e atualmente com a ex-presidenta Cristina Kirchner na Argentina e com Evo na Bolívia — como mecanismos de uma onda de restauração conservadora.
Com relação ao chamado ao voto nulo feito pelo próprio Morales na recente cúpula da Runasur, no Trópico de Cochabamba, a analista expressou que é preciso confiar e respeitar que o povo boliviano deverá tirar de suas próprias experiências as soluções para o enfrentamento desses ataques da direita.
Diante da fragmentação e das divisões internas do campo popular e de seu instrumento político na Bolívia, Prestes pontuou que não se pode traçar paralelos automáticos com a estratégia de uma frente ampla que levou à derrota de Jair Bolsonaro no Brasil.
Frente à necessidade histórica de enfrentar Donald Trump e a extrema-direita, de unificar nossas forças na América Latina, “é muito importante que o povo boliviano consiga evitar que a direita sequestre o governo da Bolívia. Nós, como latino-americanos, sul-americanos, partidos e povos solidários com o Processo de Mudança na Bolívia, podemos apoiar fazendo aquilo que o povo boliviano convocar para colaborar, com o máximo respeito pelas particularidades de cada processo”, afirmou Prestes.
Resistência popular marca cenário boliviano
Diante da preocupação com a possível perseguição e exclusão dos povos indígenas do sistema político boliviano, caso a direita vença as eleições, Abal respondeu que essa ameaça é real, à luz de experiências anteriores. De fato, já ocorreram detenções políticas de dirigentes sem qualquer sustentação jurídica.
Em vista disso, há um fortalecimento da organização da resistência em níveis intermediários, promovendo novas lideranças jovens nas bases.
Sobre a questão dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos e das transnacionais no processo eleitoral boliviano, especialmente em relação aos recursos estratégicos como o lítio, Dolores Arce apontou uma relação direta na articulação desses interesses. “As transnacionais necessitam de políticos marionetes para entregar os recursos naturais, e essa entrega precisa ser incondicional, respaldada por um marco legal favorável — e, se necessário, não hesitarão em reprimir”.
“Há um pacto entre empresários, transnacionais e meios de comunicação que apoiam essa virada, em detrimento do povo boliviano. Mas, ao mesmo tempo, há também o trabalho silencioso dos meios comunitários, das redes sociais, das articulações nas bases. Devido à memória histórica, não é fácil enganar um povo, não é simples convencer que a solução está na privatização ou no retorno ao passado. O desempate entre essas forças será nas ruas e desde as bases”, concluiu a comunicadora.
Ao revisar o processo desde o icônico “Não à ALCA”, ocorrido há quase 20 anos, Prestes chegou ao momento atual afirmando que há uma espécie de internacional fascista e de extrema-direita conectando elementos da América Latina com outros em diferentes partes do mundo. Com poucas variações, apresentam um mesmo projeto: um modelo neoliberal para a economia, combinado com elementos de autoritarismo, protofascismo e, em alguns casos, neofascismo, quando assumem o controle do Estado. Ao mesmo tempo, diferentemente de momentos anteriores, a integração da América Latina encontra-se muito enfraquecida.
Nesse contexto, as eleições na Bolívia e as próximas eleições no Brasil são de grande importância, pois está em jogo a possibilidade ou não de reconectar projetos nacionais soberanos, emancipatórios, integracionistas, de construção coletiva por meio de mecanismos como a Unasul — ou uma nova Unasul — ou o fortalecimento da Celac, para enfrentar essa extrema-direita que está muito conectada, muito organizada, muito coordenada e que nos atacará com força nos próximos anos, indicou a analista.
Eleição opõe Andrónico à direita unificada com risco de vitória sem segundo turno
Por fim, o grande ponto de interrogação é o que poderá acontecer nas urnas no próximo 17 de agosto.
É preciso desconfiar das pesquisas, indicou Antonio Abal. Uma possível projeção é que o voto da direita se concentre, mas sem que esse candidato supere os 30% de apoio no primeiro turno. No entanto, se alcançar 40% e se confirmar uma vantagem de 10% sobre os demais, isso lhe daria uma vitória eventual sem necessidade de segundo turno.
Por sua vez, Dolores Arce ressaltou que acredita que o voto nulo e em branco ficará acima dos 20%. “Não há dúvida de que também haverá um voto em Andrónico como alternativa da esquerda e, seguramente, com a esperança de pelo menos garantir uma bancada que evite a consolidação de dois terços na Assembleia Legislativa Plurinacional — o que permitiria à direita abrir processos de modificação constitucional”.
“Mas, de fato, é a rua que poderá contrabalançar a implementação de medidas totalmente antipopulares. Isso nos conduz a um processo necessário de autorreflexão, de autocrítica, de reencontro entre os setores populares para superar a fragmentação”, precisou.
Por sua parte, Ana Prestes insistiu, desde o Brasil, na importância de respeitar o processo boliviano, expressando a esperança de que algum acordo permita que, ao menos, a esquerda chegue ao segundo turno para disputar o processo. “Porque a possibilidade de um governo repressivo na Bolívia, um governo privatizador, alinhado aos Estados Unidos, que repita o que Daniel Noboa faz com o povo equatoriano ou o que Nayib Bukele impõe ao povo salvadorenho, é algo profundamente angustiante e triste — pensar que o povo boliviano possa passar por isso”.