
Donald Trump, 45º e 47º presidente dos Estados Unidos da América. Dentre todas as agendas prioritárias, decidiu embarcar na narrativa conspiracionista de que rastros químicos despejados por aviões e vacinas da “Big Pharma” seriam as causas do autismo. Essa ideia não vem sozinha, pois é fruto de uma antiga agenda de Robert F. Kennedy Jr., hoje no comando da Saúde dos EUA e mentor político da pauta. O próprio Kennedy Jr. já disse diversas vezes, mesmo sem nenhuma evidência científica, que a causa do autismo seriam as vacinas. Dessa vez, Trump também veio a público e anunciou que a causa do autismo seria o consumo de Tylenol durante a gestação.
Por Ergon Cugler* e Arthur Ataíde**/The Conversation
A manchete corre o mundo antes de qualquer ressalva metodológica. O pacote incluiria ainda a promoção de uma suposta cura milagrosa para o autismo, a leucovorina. O próprio Trump tratou o anúncio como “um dos maiores da história do país”.
Contudo, é importante dizer que isso não é Ciência, é espetáculo. E é falso chamar essa hipótese de causalidade.
Os fatos:
Em 2024, por exemplo, um estudo de base populacional com 2,48 milhões de crianças na Suécia, publicado na JAMA, encontrou apenas uma diferença absoluta de risco de 0,09% para autismo aos 10 anos entre expostos e não expostos ao acetaminofeno. Após ajustes estatísticos e comparações dentro de famílias, esse efeito ficou ainda mais fraco. Como dizemos na Ciência, o estudo mostrou apenas uma associação, não uma causalidade. Em outras palavras, ver duas coisas acontecendo juntas não significa que uma cause a outra. E, mesmo nesse caso, a diferença foi tão pequena que não muda nada na prática.
As sociedades médicas que lidam com gestação e risco fetal não apoiam a cruzada política. A Society for Maternal-Fetal Medicine reiterou em setembro de 2025 que acetaminofeno permanece apropriado para tratar dor e febre na gravidez, que febre não tratada traz riscos reais, e que os estudos que sugeriram alguma ligação com autismo possuem limitações metodológicas importantes e não estabelecem causalidade. O recado é simples: prudência sim, pânico não.
Há outro dado incômodo para a narrativa de Trump. Em 2023 e 2024, a juíza federal Denise Cote, no caso multidistrital sobre Tylenol, rejeitou sucessivamente as testemunhas de “causalidade geral” dos autores, por falhas metodológicas, e encerrou a maior parte das ações. Em agosto de 2024, ela voltou a barrar a última testemunha remanescente sobre TDAH. A mensagem do tribunal foi cristalina, não há base científica robusta que sustente a alegação de que o acetaminofeno cause autismo.
Mas por que, então, esse boato persiste e, em mãos políticas, vira decreto? Porque existe um conjunto de estudos frágeis, pequenos, com vieses graves, que alimentam manchetes e confirmam suspeitas prévias. Tomemos alguns exemplos que analisamos recentemente.
Um artigo em Behavioral Sciences analisou pesquisas em que os próprios pais, por meio de questionários online, relataram tanto o uso de acetaminofeno quanto sinais de autismo em seus filhos. Esse tipo de estudo tem vários problemas: a memória dos pais pode falhar, as respostas podem ser imprecisas e o grupo que responde ao questionário não representa necessariamente todas as famílias. O próprio artigo cita pesquisas desse tipo, incluindo uma em que os pais foram perguntados, no aniversário de um ano da criança, se haviam dado antitérmicos e depois se relataram sintomas de autismo. Além disso, havia poucos casos envolvendo meninas, o que não permite comparar de forma confiável diferenças entre meninos e meninas. Como dizemos na Ciência, isso gera apenas correlações frágeis. Em outras palavras, mostra coisas que parecem andar juntas, mas sem qualquer base para concluir que uma causa a outra.
Também existem estudos ainda mais frágeis, chamados de análises ecológicas, que usam montagens de dados secundários. Um artigo na revista Entropy, por exemplo, sugeriu que a combinação entre o alumínio usado como adjuvante em vacinas e o acetaminofeno explicaria “a maioria” dos casos de autismo e TDAH. Como indício, os autores recorreram ao VAERS, que é um sistema americano de notificações espontâneas de efeitos adversos. Esse sistema, no entanto, registra apenas relatos voluntários, com muitas falhas, omissões e ruídos, sem confirmação independente. Esse tipo de raciocínio se apoia em dados não verificados e correlações agregadas. Ou seja, junta coincidências em bancos de dados pouco confiáveis e transforma em hipótese causal. É justamente nesse terreno que aparecem erros clássicos como confusão por indicação, viés de reporte e múltiplos testes, que nada mais são do que distorções estatísticas capazes de criar miragens em vez de fatos.
Outro exemplo, bem antigo, afirma que o aumento do uso de acetaminofeno “poderia explicar grande parte” da chamada epidemia de autismo. É um raciocínio “pós hoc”. Em outras palavras, é quando alguém vê duas curvas crescendo ao mesmo tempo e conclui que uma coisa causa a outra, sem apresentar um mecanismo biológico plausível e sem controlar fatores que poderiam explicar a coincidência. Mesmo revisões recentes de tom mais especulativo, que sugerem que acetaminofeno “deve ser considerado um fator de risco etiológico” para TEA e TDAH, reconhecem, ao fim, que carecemos de ensaios e de medidas de exposição objetivas ao longo da gestação.
O veredito honesto hoje é incerteza, com alguns sinais de associação em certos recortes, mas sem causalidade estabelecida. De fato, uma revisão sistemática de 2025 em Environmental Health, concluiu haver “evidência de associação” entre o uso de acetaminofeno na gravidez e autismo. Mas mesmo nesse trabalho, os autores reconhecem limitações: os estudos são muito diferentes entre si, há disputas sobre fatores externos que podem estar confundindo os resultados, existem erros em como a exposição ao remédio foi medida e, quando a análise é feita comparando irmãos dentro da mesma família, o efeito quase sempre desaparece.
De forma mais didática: não é porque as vendas de limonada crescem no verão e os ataques de tubarões também, que as vendas de limonada são causa dos ataques de tubarões. Não é reduzindo a venda de limonadas que reduzirá os ataques de tubarões. Essa é a diferença entre associação e causalidade: os dois números andam próximos, mas um não é a causa do outro.
Em resumo, há sinais de que as coisas podem andar juntas em alguns recortes muito específicos, mas isso está muito longe de provar que uma coisa causa a outra. E política pública séria não pode tratar “associação observacional” como sentença biológica.
Lógica eugenista
Mas onde entra o czar da saúde americana nessa história? Ele é o vetor político dessa agenda, com histórico longo de distorcer a literatura sobre autismo e causas ambientais. Agora, desde a cadeira de Secretário de Saúde, promete um “relatório definitivo” e influencia o presidente a adotar medidas que contrariam o consenso clínico e regulatório atual.
Ocorre que Trump e Kennedy não estão apenas equivocados quando falam que o autismo é causado pelo uso de Tylenol, mas estão reintroduzindo no século XXI a lógica eugenista que trata pessoas com deficiência como tragédia. O autismo se torna um vilão a ser combatido, e pessoas autistas são reduzidas a sujeitos desumanizados numa cruzada moral em nome de uma sociedade “pura” e “homogênea”, sem lugar para aqueles tidos como “diferentes” ou “deficientes”.
A cobertura jornalística recente também registra que, diante do rumor de um vínculo entre Tylenol e autismo, entidades como a American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) reafirmaram que não há evidência clara de relação direta e que acetaminofeno continua entre as poucas opções seguras para dor e, sobretudo, para febre, cujo não tratamento é um risco conhecido para o feto. A CBS, por exemplo, compilou vozes de especialistas destacando que a literatura é conflitante e que confusão por indicação é um problema central.
O resultado prático de um anúncio presidencial como esse, em vez de proteger famílias, é ampliar o dano. Primeiro, gera medo em gestantes que precisam tratar febre e dor. Febre alta na gestação pode, de fato, aumentar riscos reais, e a orientação de décadas tem sido usar acetaminofeno com parcimônia, na menor dose eficaz, por menor tempo possível. Ao semear pânico, o governo empurra pacientes para o pior dos mundos, a não tratar febre ou buscar analgésicos com perfil de risco mais problemático. Segundo, reforça o estereótipo de que o autismo tem um “culpado simples” e recente, o que estimula caça às bruxas doméstica, culpa materna e rachas em comunidades que lutam por inclusão.
A retórica mirabolante desloca o foco do que realmente importa, acesso a diagnóstico, intervenções baseadas em evidências e políticas de suporte às famílias.
Autismo não é doença e não precisa de cura
Ao apresentar o autismo como um erro biológico a ser evitado, eles não apenas distorcem a Ciência, mas legitimam um projeto de extermínio silencioso. Não é por acaso que Kennedy Jr. reduziu pessoas autistas a “pessoas que nunca pagarão impostos, nunca terão um emprego, nunca jogarão beisebol, nunca escreverão um poema, nunca sairão em um encontro”. Esse discurso nos desumaniza e rebaixa pessoas autistas à condição de peso social, preparando o terreno para políticas que não reconhecem nossa dignidade, mas apenas seu apagamento.
No fim, o que temos é o seguinte: A Ciência de maior qualidade sinaliza que, se existe alguma minúscula e residual coexistência do acetaminofeno sobre risco de TEA, ele é inconsistente entre desenhos, altamente sensível ao controle de confundidores e não significa causalidade. As principais sociedades clínicas mantém recomendação de uso prudente quando clinicamente indicado. A Justiça desautorizou peritos que tentaram transformar falsamente associação em causalidade. E o governo, empurrado por um propagador de teses desacreditadas, prefere dobrar a aposta no bode expiatório do momento. Chamar isso de Ciência é um insulto a quem pesquisa honestamente, a quem cuida e, sobretudo, a quem vive o autismo todos os dias.
Dessa forma, é preciso reafirmar que o autismo não é doença e não precisa de cura. O que a sociedade deve buscar são políticas públicas que promovam emancipação, e isso não se dá com um discurso que patologize a existência de pessoas autistas, se dá com acessibilidade, educação inclusiva, cuidado humanizado e emprego apoiado. Hoje, qualquer discurso que tente explicar o autismo por causas misteriosas ou externas à genética não passa de especulação ou teoria da conspiração. Pois, até o momento, não existe pesquisa de qualidade que comprove de forma consistente essas outras hipóteses.
O DSM passou a agrupar em um mesmo espectro condições que antes eram classificadas separadamente. Isso, por si só, aumenta o número de diagnósticos. Além disso, grupos historicamente ignorados, como mulheres autistas e pessoas negras, hoje têm mais acesso a avaliação e diagnóstico, revelando desigualdades que antes mantinham essas populações invisíveis no debate público. Portanto, o aumento de casos não é “epidemia” e não é sinal de “crise de saúde pública”. É sinal de que estamos diagnosticando melhor, reconhecendo mais pessoas autistas e corrigindo décadas de exclusão. É o avanço da democratização do acesso à saúde mental (democratização diagnóstica).
O que mais preocupa é que essa lógica patologizante em relação às deficiências, já encontra ressonância no Brasil. Setores ligados ao lobby das clínicas de autismo vêm importando, esse discurso medicalizante e repressivo, vendendo a promessa de “cura” e “normalização” como cuidado. É o mesmo roteiro: transformar o autismo em problema a ser corrigido em vez de reconhecer que somos sujeitos de direitos, com o mesmo direito à diferença e à dignidade que qualquer outra pessoa. E, depois, vender a cura milagrosa do momento.
Mas a Ciência de verdade jamais se deixa rebaixar por anúncios alarmistas e conspiratórios: Trump pode usar estudos frágeis para insinuar uma suposta associação, mas a verdade é que não existe prova de causalidade. E, quando diz que o Tylenol causa autismo, está mentindo
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* Ergon Cugler de Moraes Silva é membro do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, graduado em Gestão de Políticas Públicas pela USP e pós-graduado em Data Science & Analytics também pela USP, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV e especialista em Data Science for Social and Business Analytics pela Universitat de Barcelona. Pesquisador DTI/CNPq do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/FGV). Autor do livro “IA-Cracia: Como enfrentar a ditadura das Big Techs” (Kotter Editorial, 2024).
**Arthur Ataide Ferreira Garcia é autista, graduando em medicina pela Unimes, Vice-Presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas, ativista político pela neurodiversidade, primeiro cidadão autista a criar uma Lei Estadual no país.