19 de setembro de 2024

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Cultura quer Lei de Direito Autoral no mundo digital

Por Miriam Aquino, no TeleSíntese

O Ministério da Cultura começa a travar o debate sobre o direito autoral no mundo digital. Para o secretário-executivo da pasta, João Brant, é possível conseguir aplicar regras brasileiras aos provedores de conteúdos de internet globais, de maneira a garantir que os criadores, os artistas brasileiros, sejam remunerados pelo seu trabalho. Para o ministério, hoje, os artistas ganham muito pouco pelo conteúdo baixado da internet. Além disso, o ministério começa a discutir, através do Conselho Superior de Cultura o video on demand.

Tele.Síntese – Qual a sua avaliação da Lei do SeAC (TV paga)?

João Brant – Se já não estava evidente que a Lei 12.485 (Lei do SeAC)  ia criar um impacto, acho que ficou evidente. O reforço do Fundo Setorial Audiovisual  (FSA) gerou impacto significativo no setor. A ampliação do FSA gerou, inclusive, a possibilidade de um cinema perto de você, do cinema na cidade e isso significa uma possibilidade de ampliação das salas e da capacidade de exibição. E as cotas também se mostraram uma política acertada, com o fortalecimento da política de compra do produto brasileiro independente. Acho que o voto do minsitro Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação, mostra uma visão muito próxima da visão que o próprio ministério tem. A visão prevista  na lei de induzir o mercado, no sentido de ampliação de compra dos produtos brasileiros independentes, sem com isso afetar além da conta a lógica da indústria do audiovisual. É uma medida equilibrada e acho que, neste sentido, estamos em um ótimo caminho. A Ancine segue o Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual, que também aponta caminhos importantes.

Tele.Síntese – Onde é preciso avançar, então?

Brant – Primeiro, avançar na capacidade do cidadão brasileiro acessar este conteúdo financiado diretamente por ele.  O FSA tem este ano um orçamento de R$ 600 milhões para investimentos retornáveis. Sem contar mais R$ 46 milhões para investimentos não retornáveis. Cerca de 500 milhões são para filmes, produção. Mas ainda é pequeno o número de brasileiros que se beneficiam dessa produção e acho que o Estado brasileiro não pode ficar alheio a este debate. É evidente que não podemos achar que cabe ao Estado brasileiro obrigar os cidadãos a assistir a filme brasileiro. Mas essa conta precisa estar equilibrada. Então, em parte, é preciso que a produção esteja mais conectada com o que o brasileiro quer; em parte precisamos destravar os gargalos de acesso que fazem com que boa parte desses filmes não passe mais do que uma, duas semanas em cartaz e sejam lançados em poucas salas. Tem havido ações importantes da Ancine neste sentido, mas acho que é preciso ir além. Ir além significa, primeiro, ampliar o acesso ao acervo, ao que já foi produzido com dinheiro público.

Tele.Síntese – Você vê as TVs como veículos importantes para isso?

Brant – Sem dúvida. E acho que as tevês conectadas são uma possibilidade de trabalhar, inclusive, aplicativos específicos para dar acesso à produção audiovisual brasileira financiada com recursos públicos. Claro, há uma questão de direitos, de licenciamento, que vamos fazer com todo o cuidado necessário. Mas precisamos reconhecer que a maior parte dessa produção é financiada por recursos públicos, portanto precisa alcançar o público. Há uma preocupação, evidente, de que o produtor não encerre seu compromisso com a obra no lançamento, que ele possa pensar todas as janelas, pensar a lógica dos contratos de distribuição, fortalecer o produtor na relação com o distribuidor. Mas isso não pode inibir o Ministério da Cultura de pensar em como ampliar o acesso do cidadão brasileiro aos filmes.

Tele.Síntese – Você falou em TV conectada, mas há uma assimetria em relação à produção nacional. A Ancine ficou de estudar isso. Não há cota na internet para qualquer tipo de produção.

Brant – O Conselho Superior de Cinema tirou, em sua última reunião, e vai implementar na reunião de setembro um grupo para discutir regulação de setores que não são regulados. O primeiro será o vídeo por demanda. Nessa regulação, precisamos primeiro reconhecer que hoje a Condecine que se aplica sobre vídeo por demanda é muito alta mas que, por outro lado, precisa ser garantida uma série de requisitos e premissas em que você consiga a presença de conteúdo brasileiro, de conteúdo independente.

Tele.Síntese – É uma decisão a ser tomada pelo conselho?

Brant – O Conselho Superior de Cinema vai discutir os termos da regulação.

Tele.Síntese – Isso tem a ver com as medidas que vocês estão tomando para ampliar o acesso?

Brant – Estamos estudando outras estratégias para ampliar o acesso, mas prefiro nem adiantar porque ainda não têm maturidade. Você perguntou quais os desafios da política do audiovisual. O acesso é o primeiro. O segundo é entender, em um cenário em que boa parte da fruição audiovisual se dá pela internet, como se liga a questão do fomento à questão da internet. Por um lado, precisamos deixar de ter a internet como tabu. Existem muitas produções feitas para a internet que hoje conseguem se firmar, inclusive as que são feitas para vídeo por demanda. O Netflix fez o House of Cards, especificamente, para o serviço de vídeo por demanda, assim como o Porta dos Fundos é feito especificamente para a internet. Você tem um conjunto produções que estão fora das janelas tradicionais e que têm um alcance bastante significativo. Isso não significa, necessariamente, que o Estado deva entrar. Não é porque a música de barzinho talvez seja a maior execução pública de música hoje que o Estado tem que atuar em barzinhos para fazer mais. Mas nós precisamos entender a internet como possibilidade de primeira janela para algumas produções audiovisuais.

Tele.Síntese – O tabu existe onde? Na produção?

Brant – Acho que existe um tabu geral. Não só no mercado. Mas também no Ministério da Cultura e na Ancine, junto com o setor de produção etc . Mas hoje, se eu quiser produzir algo cuja primeira janela seja a internet, eu não tenho financiamento direto. Se deve haver ou não, eu não sei, mas acho que precisamos entrar nessa conversa.

Tele.Síntese- Em relação à digitalização dos sinais de TV, vocês acham que precisa ter uma estratégia diferenciada?

Brant – A digitalização tem uma estratégia desenhada, e estamos  dialogando para a criação do canal cultura. Do nosso ponto de vista, há algumas decisões sendo tomadas agora que influenciam a capacidade que a digitalização vai ter para promover novos conteúdos e maior diversidade. Uma delas é a presença do Wi Fi nas caixinhas que vão ser distribuídas (aos cadastrados no Bolsa Família). Do nosso ponto de vista, seria muito importante para se ampliar a interatividade e de tornar as TVs todas conectadas, na prática.

Tele.síntese – Por que você acha que o Wi Fi faz isso?

Brant – Porque não tem canal de retorno.

Tele.Síntese-Mas vai ter a porta USB.

Brant – Acho que Wi Fi significa uma possibilidade de ampliação  e de criar redes Mesh a partir dessas caixinhas. Mas fundamental, para nós, é conseguir pensar como a estratégia de ampliação da inclusão digital, feita por exemplo pela Telebras, pode se coadunar com uma estratégia de ampliação da disponibilidade de conteúdos digitais.

Tele.Síntese – Mas a Telebras não vai chegar na ponta, não é?

Brant – Não vai chegar na ponta mas vai expandir os backhauls, o que dá condições para se montar CDNs, por exemplo. Esses centros de distribuição podem levar conteúdos do Ministério da Cultura e da Educação para o Brasil inteiro. Isso significa ampliar muito a capacidade.

Tele.Síntese –  E a questão do direito autoral, como estamos?

Brant – Acabamos de publicar um conjunto de quatro normativas: o decreto, uma portaria, duas INs que regulamentam a fiscalização estatal do serviço de gestão coletiva. E para nós é um enorme desafio, porque o Ministério da Cultura passa a ter um papel estratégico de acompanhamento e fiscalização da gestão coletiva.  É desafiadora porque vamos precisar dar respostas muito claras, isso significa uma reorganização do setor. E há o debate sobre o  direito autoral na internet. Do nosso ponto de vista, a reforma da Lei de Direitos Autorais que estava pronta em 2010 precisa ser revista. O texto que vai ser enviado ao Congresso Nacional precisa ser revisto para incluir a questão do direito autoral no digital.  Hoje temos a Ubem, por exemplo, a União Brasileira de Editoras Musicai,s estabelecendo acordos com algumas das empresas, como o Google etc, que se tornam acordos ilegais a partir da promulgação do decreto, já que a gestão do direito tem que ser feita por quem realmente detém o direito. Não pode haver intermediários, como gravadoras, fazendo a gestão dos direitos em nome dos autores.

Tele.Síntese– Isso é o Ecad?

Brant – O Ecad é o melhor exemplo, mas isso não é só na música, porque você passa a lidar com a gestão coletiva com as diferentes indústrias que atuam com direito autoral. É preciso pensar o direito autoral como um todo digital. Acho que esse é um belo desafio que nós temos pela frente e que o Brasil pode se tornar referência global neste debate, porque todo o mundo está buscando resposta para essas questões.

Tele.Síntese – Qual é o cerne da questão?

Brant – A nossa preocupação é como podemos garantir que os criadores, os artistas brasileiros, sejam remunerados pelo seu trabalho, ao mesmo tempo em que a gente garante o acesso mais amplo possível do público a essas produções. E ao mesmo tempo em que a gente reconhece o papel dos intermediários, que embora não sejam protagonistas têm um papel importante na circulação de bens culturais.

Tele. Síntese – Mas você tem que definir o papel deles, nessa regulação.

Brant – Nós não podemos fazer com que os protagonistas sejam os intermediários, os protagonistas são os criadores e o público.

Tele.Síntese – Hoje os principais atores de venda de conteúdo cultural na internet não são nacionais. Você acha que dentro dessa política há alguma coisa que conseguiria reverter este quadro? Ou nesse mundo tão globalizado da internet isso não se coloca?

Brant – Uma das preocupações, talvez a principal, é exatamente esta. Como a gente consegue aplicar regras brasileiras a provedores de conteúdo que atuam globalmente. Do nosso ponto de vista, isso é possível. Passa, é claro, por uma concertação também internacional, que tem a ver com a discussão de governança na internet e com a capacidade que os Estados nacionais têm. Acho que isso dialoga, em parte, com a convenção da Unesco para a diversidade de expressões culturais (eu sempre esqueço o nome), aprovada em 2005, que completa dez anos este ano, e que  garante aos Estados nacionais a possibilidade de adotar regras diferenciadas para fortalecer a diversidade cultural. Por que isso nos preocupa? Porque em parte, a gente sabe que atores como a Apple estão fazendo contratos diretos com as gravadoras, as majors internacionais, e transferindo uma recursos e, entre aspas, “pagando direitos autorais”, quando na verdade o autor brasileiro não recebe nada. Como ele está no catálogo da empresa,  entra em uma conta geral. Mas aqui ele recebe muito pouco. Tem o exemplo do disco do Caetano Veloso com a Maria Gadu, que teve seis milhões de views e eles, quase nada. E não estamos falando da dificuldade de um artista marginal, estamos falando de um Caetano Veloso ser remunerado pela sua obra. Portanto, é algo grave. Achamos que dá para interferir sim. O Brasil é um mercado grande o suficiente para poder definir suas regras e fazer com que as empresas se adaptem às regras brasileiras.

Tele.Síntese – Sempre se argumenta que essas empresas não têm sede aqui…

Brant – Essa conversa já tem mostrado seus limites. Se essa empresa não tem sede aqui mas anuncia e vende serviços aqui etc, ela precisa que se adaptar à condições. Claro que isso não pode inibir nem a inovação nem a presença de serviços de ponta da internet. Não queremos criar uma barreira a priori mas temos que dizer que é possível, do nosso ponto de vista, harmonizar nossos instrumentos regulatórios para que continue a presença e a exploração comercial do mercado brasileiro por empresas estrangeiras, garantindo ao mesmo tempo o respeito a regras locais, inclusive do ponto de vista tributário.

Tele.Síntese – Você imagina que em dois anos o Brasil já teria uma legislação consolidada nessa questão?

Brant – Difícil prever. Acho que daqui para o ano que vem, primeiro semestre de 2016, a gente consegue consolidar uma visão e uma proposta. Depois tem  o trâmite no Congresso Nacional. Mas o Brasil tem sido procurado. O ministro Juca, quando esteve na França, dialogou sobre este tema com a ministra da França. A Alemanha tem sinalizado também. A União Europeia. Temos um conjunto de países preocupados com as mesmas questões. E acho que a busca de respostas não é uma busca isolada, ela dialoga com a elaboração e o trabalho que está sendo feito nos diferentes países sobre as mesmas questões.

Tele.Síntese – Sobre o Vale Cultura. A adesão é pequena, não é?

Brant – Foram cerca de 400 mil cartões emitidos. Nós achamos que dá para chegar a 3 milhões nos próximos quatro anos. Mas para isso, é preciso destravar alguns gargalos já identificados. Estamos trabalhando nisso. Há o papel que têm as empresas que emitem o cartão, as empresas que cobram, que têm a maquininha do cartão, para não gerar um cenário em um estabelecimento comercial tenha que se relacionar com oito empresas emissoras de cartão do Vale Cultura. Isso é um problema.

Tele.Síntese – Em relação à proposta de mudanças da Lei Rouanet, o que vocês conseguiram avançar?

Brant – O projeto do Procultura foi aprovado na Câmara e está na Comissão de Justiça do Senado. Ele muda uma série de questões. Primeiro, a relação entre e a renúncia fiscal e o Fundo Nacional de Cultura. Ele amplia o Fundo Nacional de Cultura. Nós estamos falando de quatro problemas, hoje. Primeiro é um recurso  público, proveniente de renúncia fiscal, cujo destino é decidido pelo departamento de marketing das empresas. Nada contra o departamento de marketing das empresas, mas se a maior parte do nosso orçamento de fomento vem daí, estamos falando de R$ 1,3 bilhão no ano passado, ao mesmo tempo em que tivemos R$ 350 milhões para ações finalísticas do MinC. Precisamos ter um equilíbrio em que você possa ter a maior parte do destino de recursos públicos decidida por órgãos públicos. Essa é uma das questões que o projeto toca. A segunda é a distribuição regional de recursos. Temos hoje uma concentração muito grande de recursos em algumas localidades. Nem é do Sudeste inteiro. Quando falamos de concentração de recursos públicos no Rio, ele não chega na Baixada Fluminense. Estamos falando da concentração, à vezes, em alguns bairros, o que é natural de uma dinâmica de mercado. O problema é que tamanho vulto de recursos não pode estar sujeito somente a uma lógica de mercado. Temos que garantir uma distribuição em que o recurso público esteja incentivando, fomentando cultura em mais estados e mais localidades do que a gente tem hoje, de forma mais democrática.

Por fim, temos o problema de que este custo operacional está todo concentrado no Estado. Hoje, cabe ao Ministério da Cultura discutir toda a admissibilidade, fazer o projeto de aprovação , libera a captação, depois cuidar de toda a prestação de contas. Isso faz com que a maior parte da estrutura do Ministério da Cultura esteja voltada para esta ação. De nosso ponto de vista, isso tudo precisa ser enfrentado, mas com três garantias: que a gente não tenha uma diminuição, mas uma ampliação dos recursos para a cultura. Não vamos fazer nenhum movimento irresponsável, que possa levar, por conta de arranjos em que esses recursos a entrar no orçamento contingenciável, e menos recursos para a cultura. Essa é uma preocupação posta e continuamos com ela.

Tele.Síntese – Sim, mas em sua proposta,  os recursos em vez de irem diretamente para os projetos serão colocado em um fundo, o que o tornarão  “contingenciáveis”.

Brant – Nós temos, por exemplo, um fundo da Ancine contingenciado e com R$ 600 milhões para atuar, é o Fundo Setorial do Audiovisual, que faz parte do Fundo Nacional de Cultura. Porque está montado em um arranjo forte, um arranjo político que sustenta o programa. Não nos parece simplesmente uma questão de não poder jogar esses recursos dentro do orçamento porque eles podem ser contingenciados. Há determinados arranjos que, uma vez estabelecidos, garantem que os recursos cheguem. Essa é nossa preocupação. A segunda preocupação é que todo esse mecanismo de democratização não se transforme em dirigismo. Os mecanismos precisam ser equilibrados para não levar a isso. O terceiro é que a gente crie mecanismos que ampliem a participação privada no investimento em cultura. Temos hoje uma participação declinante, desde o ano 2000, do setor privado no financiamento da cultura. Então, se uma lei que é de incentivo está, na verdade, desincentivando o investimento privado,  precisa ser modificada.

Tele.Síntese – Por que ela está caindo se a renúncia fiscal continua crescendo?

Brant – Porque se você usa o artigo 18 da Lei Rouanet, está usando 100% de dinheiro público. Eu quero saber quanto de privado está entrando. O ministro Juca tem uma perspectiva de que precisa entrar pelo menos 20% de recurso privado. Não dá para ter uma renúncia de 100%. E não se trata apenas de porcentagem, se trata de definir modelos e arranjos que estimulem um crescimento da participação privada no investimento em cultura, já que hoje este valor é declinante. Os efeitos da Lei Rouanet hoje são perversos porque, na verdade, ampliam a dependência de recursos públicos e diminuem o compromisso do setor privado no investimento da cultura. O que queremos é mais recursos privados na cultura. Do ponto de vista da tramitação, isso está no Senado, na CCJ, estamos discutindo isso com o relator, porque ele vai apresentar um substitutivo.

Tele.Síntese – Nenhum fundo do setor de telecom se viabilizou…

Brant – Mas ali faltou um determinado arranjo.Nós estamos falando de outra coisa. Estamos falando do Fundo Setorial do Audiovisual hoje, com R$ 600 milhões de investimentos retornáveis. Um fundo bastante pujante. Estou dizendo que, a Lei 12.485, pela maneira que foi construída gerou um desenho em que há contingenciamento nesse fundo mas em que ele é preservado em sua finalidade, com um volume considerável de recursos. De R$ 600 milhões, estamos falando de um contingenciamento de R$ 400 milhões, porque o fundo é de R$ 1 bilhão. O contigenciamento de uma parcela não impediu a liberação de outra. Não é o mecanismo de fundo. A Lei Rouanet, por exemplo, poderia ter um teto menor do que tem. Porque o teto nunca foi batido? Porque o setor cultural é organizado o suficiente e a história consolidou a Lei Rouanet como um mecanismo importante de financiamento do setor.