Houve um “erro de estratégia” e os atos terroristas do 8 de Janeiro de 2023 se deram em um contexto não propício a “golpes militares tradicionais”. No entanto, um ano após essa “intentona”, observa-se que a democracia, embora devidamente resgatada naquele momento, ainda está sob risco, conforme avalia a pesquisadora Sonia Fleury em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz.
Por Eliane Bardanachvili/CEE-Fiocruz
À frente de dois projetos de pesquisa do Centro, Futuros da Proteção Social e Gestão Federativa do SUS – ao lado do pesquisador Assis Mafort –, em que vem analisando a conjuntura do país, Sonia observa que ainda não se pode falar em uma democracia consolidada, tendo em vista uma sociedade ainda muito polarizada e um cenário, nas manifestações do 8 de Janeiro de 2024, diferente daquele do ano anterior, em que os vários poderes da nação “se uniram contra a barbárie”. Uma mostra foi a ausência de 15 governadores aos atos em defesa da democracia. “É muito clara a apreensão persistente”, aponta.
Sonia chama atenção para um processo que se dá em nível global de “desdemocratização”, tema de livro recém-lançado, do qual foi a organizadora. “É um processo que, diferentemente do golpe militar tradicional, elimina a democracia por dentro”, alerta.
Para a pesquisadora, não só o governo brasileiro, como os governos progressistas da América Latina devem aprofundar “reformas estruturais” que possam superar a diferença entre a democracia eleitoral e a democracia social. “Essa é a disjuntiva que temos. Claro, fortaleceu-se a democracia eleitoral, mas a democracia social continua muito precária”, considera, propondo o que define como “Estado pedagógico”, conceito que construiu a partir do pensamento de Paulo Freire e Antonio Gramsci. “Um Estado dialógico, capaz de se comunicar com a população. Isso não é a mesma coisa que divulgar, dar publicidade ao que foi feito. É também ouvir, politizar, dialogar com o mundo da vida, do cotidiano. Discutir com a população um projeto emancipador”, define.
Leia a entrevista a seguir.
O que podemos tirar de aprendizado, um ano após os atos terroristas do 8 de Janeiro de 2023? Podemos considerar que a vitória da democracia que alcançamos representa uma consolidação da legalidade democrática?
Houve uma intentona que não terminou como golpe militar, conforme previam. Foi criado todo um script, de uma situação de caos absoluto para se requerer uma GLO [Garantia da Lei e da Ordem], o governo passando aos militares o comando, que não retornaria mais. Mas o que se tornaria um golpe clássico não ocorreu, por várias razões. Em parte, isso tem a ver com o contexto internacional. Conforme vimos pela imprensa, houve reuniões entre militares, autoridades dos Estados Unidos, CIA, autoridades do governo, que desestimularam o golpe. O alto comando dos militares não saiu à frente. Então, o contexto hoje em dia não é para golpes militares tradicionais – houve um erro de estratégia. Em vez disso, o que está acontecendo no mundo inteiro é um processo que, diferentemente do golpe militar tradicional, elimina a democracia por dentro, no que se chama de desdemocratização [ver o livro de Sonia Fleury], em nível global.
Mas isso se conforma muito antes dos atos terroristas. Na entrevista anterior [sobre o 8 de Janeiro de 2023], já falávamos da não aceitação pelo PSDB da vitória da Dilma; do PDSB, como Centro, abrindo mão da perspectiva democrática – democracia no sentido mais tradicional é a certeza sobre as regras do jogo e a certeza dos resultados, mas quiseram ter certeza dos resultados e questionar as regras. O Centro, que tinha tradição democrática, abre mão disso, cria-se um vazio e abre-se espaço para a direita tradicional, que assume também uma feição de ultradireita. Isso continua com o impeachment da [presidente] Dilma e com o governo Temer, eleito com o programa político da presidente, mas levando à frente outro programa, a Ponte para o futuro, de centro liberal, apoiado pela elite econômica e pelos militares, que voltaram à cena política fortemente, a cobrar o lugar deles como poder moderador, alegando que a Constituição, em seu artigo 142, lhes dava esse poder – o que não é verdade. E temos um processo de reformas muito fortes, como a Reforma da Previdência, há a prisão do Lula, em que vimos um Supremo e um Congresso que se intimidaram diante da pressão dos militares… A entrada do Bolsonaro em cena também é apoiada pelas bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia, utilizando recursos como as fake news, com a criação de um mundo paralelo, em que manipularam muito bem a insatisfação e insegurança das massas, prometendo soluções da forma mais tradicional.
De que forma isso foi feito?
A insegurança, o medo, envolve vários níveis. Há não só a insegurança econômica, como outras relacionadas, por exemplo, ao lugar de certos grupos na sociedade. O papel do homem tem mudado fortemente, na medida em que o papel das mulheres mudou. E Bolsonaro representava o machismo, o tratar a mulher como ser inferior, dando segurança ao macho patriarcal que sentia estar perdendo o lugar dele. Bolsonaro representou para determinadas pessoas alguém que estava colocando ordem na casa, com a criação de um mundo irreal que, de alguma forma, respondia por uma demanda de ordem. E isso ganha o apoio de vários atores na sociedade, de diferentes espectros políticos. Ao fragilizar as mulheres, ao fragilizar os grupos marginais, excluídos, propicia-se a superexploração desses grupos, que vão ganhar menos, se submeter a trabalhos aviltantes. São interesses religiosos, materiais e econômicos em jogo, em um capitalismo muito selvagem, que superexplora.
A senhora já chegou a mencionar a habilidade que a direita mostrou durante o governo anterior em construir esse ‘mundo paralelo’, com bolhas de informações falsas…
Acho que eu talvez não tenha dado suficiente relevo ao fato de que isso não ocorre sem um instrumento de repressão e coerção. Foi um governo de violência, que incentivou a violência em todos os níveis. Pessoas que pensam de forma diferente, que podiam criar outras discussões, foram suprimidas. Tivemos deputado que precisou sair do país, pesquisadora que precisou sair do país. Nas universidades, os reitores escolhidos pela comunidade universitária eram substituídos por reitores de direita. O pensamento contrário foi eliminado. Então, na verdade, não se trata só de uma realidade paralela, mas do impedimento de qualquer contestação a essa realidade. É preciso destacar o papel da repressão e da violência.
Como avalia, então, a forma como foi enfrentado o 8 de Janeiro e suas consequências?
O 8 de Janeiro mostrou uma reação importante das instituições. Já tínhamos tido, em dezembro [de 2022], as manifestações absurdas em Brasília [contra a vitória e a posse de Luiz Inácio Lula da Silva] – que não foram devidamente apuradas, resolvidas. A posse do Lula é um interregno, em que ele nos trouxe uma sociedade pacificada, subindo a rampa simbolicamente com o povo brasileiro e sua diversidade, um símbolo muito bonito. A violência do 8 de Janeiro foi contra a Nação, contra os poderes da Nação, por parte de pessoas que se diziam patriotas, mas patriotas de um país só deles, que não comporta os outros. A descida da rampa de Lula com os vários poderes, logo em seguida aos atos, também foi muito simbólico. Ele consegue reconstruir o pacto federativo diante do caos, com a habilidade que tem. Havia governadores de oposição, o Congresso, o Supremo, os vários poderes da nação se unindo contra a barbárie. Mas, veja, isso não se impõe durante o governo Lula. E temos agora um novo simbolismo, na celebração do 8 de janeiro de 2024 [em defesa da democracia], em que 15 governadores não compareceram, em que o presidente da Câmara [Artur Lira] esteve com Bolsonaro na semana anterior, mas não foi à manifestação. É muito clara a apreensão persistente. Houve uma reação democrática, com vários atores importantes, que conseguiram segurar e desmontar a possibilidade do golpe e promover uma punição – que, infelizmente, só chegou às pessoas que estavam nos atos terroristas, fazendo o trabalho grosso; os financiadores, formuladores ainda não foram punidos. Esse esvaziamento do 8 de Janeiro de 2024 deixa evidente que as tensões e a polarização persistem. Então, não há uma consolidação [da democracia], nesse sentido.
A que atribui não termos alcançado essa não consolidação da democracia que a senhora aponta?
Temos um Congresso muito conservador, reacionário, no qual houve uma perda muito grande do controle que os partidos políticos tinham sobre suas bases políticas e seus congressistas. O presidencialismo de coalizão funcionava com uma pactuação do presidente eleito sem maioria com outros partidos, colocando esses partidos dentro do governo nos ministérios. Hoje, isso já não garante voto, porque as lideranças já não têm o mesmo controle. Houve mudanças nas relações entre Executivo e Legislativo. Há uma implosão do presidencialismo de coalizão e não há um modelo alternativo que propicie a governança. Quando há interesses convergentes das elites políticas e econômicas, como no caso da política econômica que o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad defendeu, dá para o governo passar suas medidas, mas não mais do que isso. E, nesse caso, conseguiu passar um modelo que mantém a ideia de uma política de austeridade, de superávit primário, de não haver déficit fiscal, pontos contrários ao próprio programa do PT e do governo Lula. A Reforma Tributária foi, inclusive, fatiada para só se aprovar a parte que torna mais racional o sistema, o que favorece, sim, a sociedade, mas fundamentalmente os empresários. A parte que resultaria em maior redistribuição, do quem ganha mais paga mais e quem ganha menos paga menos
Depende de quê e de quem uma mudança nesse cenário?
O Congresso é um limite; a questão militar é outro limite. O fato de os militares se considerarem um poder acima de qualquer outro foi fortalecido com o bolsonarismo, mas já existia e nos leva ao retrocesso permanentemente. Na Constituinte, não punimos devidamente aqueles atores da ditadura, fizemos uma anistia para todos, e essa questão sempre volta. Outro limite, ainda, é a própria posição não só do governo brasileiro, como dos governos progressistas da América Latina quanto a reformas estruturais que possam superar a diferença entre a democracia eleitoral e a democracia social. Essa é a disjuntiva que temos. Claro, fortaleceu-se a democracia eleitoral, mas a democracia social continua muito precária. Estabelece-se uma política econômica que restringe a capacidade do governo de redistribuir e isso vai limitar a capacidade de inclusão social. O governo tem feito propostas que avançam, por exemplo, o novo modelo de industrialização, a neoindustrialização. Várias medidas foram tomadas, como o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o fortalecimento do papel do BNDES, uma busca por se reverter o modelo da Petrobras de só distribuir os lucros entre os acionistas e não para a população brasileira – que é na verdade sua maior acionista. Há várias medidas assim, mas que não chegam ao estágio de, por exemplo, se discutir reforma agrária, questões que possam, de fato, reverter esse modelo de acumulação, em direção a um modelo econômico e político que tenha mais legitimidade diante da população.
Democracia e desigualdade não caminham juntas, como a senhora já pontuou…
Esse é o gargalo de tudo. Não há possibilidade de se imaginar uma situação de estabilidade democrática se temos exclusão e desigualdade no ponto em que estamos. Creio que o governo tenha que começar a combater a riqueza, pela reforma tributária, limitando a redistribuição de benesses, diminuir a possibilidade de aumento absurdo da riqueza, porque isso gera essa desigualdade.
Com isso, podemos pensar que há brechas para novos atos terroristas como o de Janeiro de 2023?
Da forma como foi, não. Não há, no contexto internacional e nacional, respaldo para isso. Mas não estamos livres de uma eleição em que volte a ultradireita. Os governadores do Sudeste e do Sul, regiões que reúnem os estados mais desenvolvidos do país, estão na mão da direita e ultradireita. As estatísticas mostram também que a polarização segue inalterada. Apesar dos programas sociais lançados, ainda há 30% da população que não muda o voto que deram em Bolsonaro. O governo ainda está com dificuldade de chegar na população.
É nesse sentido que a senhora trabalha com a noção de ‘Estado pedagógico’, a partir do pensamento de Paulo Freire?
Uma mistura de Paulo Freire [1921-1997] com [Antonio] Gramsci [1891-1937]. Gramsci fala em Estado educador, Paulo Freire, na pedagogia do oprimido. Juntei os dois e criei o conceito de Estado pedagógico, a ideia de um Estado dialógico, capaz de se comunicar com a população. Isso não é a mesma coisa que divulgar, dar publicidade ao que foi feito. É também ouvir a população. Houve mudanças grandes neste governo, no sentido de restaurar os vários conselhos, criar novos, criar ministérios em que minorias estão representadas. Mas promover a representação, mesmo quando de minorias, não é o mesmo que politizar, discutir, dialogar com o mundo da vida, do cotidiano. O representante, por vezes, acaba se afastando da população quando está no governo. E o que precisamos é de o governo chegar lá.
Existem formas de se fazer isso? Dependeria também de outros atores, não?
Há os partidos políticos, que estão muito distantes da vida das pessoas, não dão o suporte de que as pessoas precisam – as igrejas evangélicas dão. Nesse sentido é que digo que qualquer órgão público deveria ser um órgão que dialogasse com a população, politizasse e acolhesse. Quando vejo pessoas reclamando de algum atendimento público, o que elas reportam é uma sensação de humilhação. Esse conceito de eu fui humilhado é fortíssimo! Quero estudar mais isso. Com esses anos de democracia, as pessoas já adquiriram a consciência de que têm direito. Antigamente, o camponês nem se sentia humilhado, era subordinado, submisso. A ideia de se sentir humilhado constrói uma noção de direito, de cidadania que não se realiza. E isso o governo precisa trabalhar. É difícil, mas é preciso discutir com a população. Sem confundir propaganda e publicidade e, mesmo, transparência, com comunicação. Há uma confusão entre publicidade, transparência, representação e o governo dialógico, que chega na população, discute com ela um projeto emancipador. Não sei se é só por falta de meios – no caso dos partidos políticos, por exemplo, que não chegam mais à sociedade – ou se por falta de um projeto emancipatório. Aí o buraco é mais embaixo. Se não há um projeto emancipatório e há necessidade de conciliação constante com as elites, por medo de se perder a governança, temos um grande dilema entre governança e governabilidade. Acordos de todas as formas para haver governança, possibilidade de governar, impedem de se chegar à população, atendê-la e emancipá-la, perdendo-se a governabilidade.
Alcançar a governabilidade não é algo muito fácil… Qual deve ser o momento de confrontar e de conciliar?
O Petro [Gustavo Petro, presidente da Colômbia, o primeiro de esquerda do país] foi um que radicalizou e caiu. O apoio dele é quase nenhum. Esse é o risco. O Boric [Gabriel Boric, presidente do Chile, também de esquerda] foi para o lado do Centro. Estamos entre esses dois extremos na América Latina: temos o Milei, que representa a ultradireita, e o Lula que tenta uma alternativa, ao mesmo tempo, que não seja de retrocesso e não tire o prestígio do governo. De qualquer forma, não mostra ainda uma direção política emancipatória. Ainda precisamos de uma direção, de um projeto político que mobilize as forças da juventude. Na minha época, a gente fazia isso contra os governos. Mas hoje poderia ser o próprio governo a indicar as possibilidades.
Se, certamente, não estamos na mesma situação de um ano atrás, seria possível já termos ido mais além?
A sociedade está parada. E o governo tem capacidade de mobilizar. Lula é um grande político, um grande orador popular. Pode enfrentar questões fundamentais para a população, que se mobilizaria por um projeto político transformador – não se trata de fazer revolução alguma! O projeto do governo é reformista – não transformador – no sentido de atuar dentro dos limites possíveis. Vimos que isso não é suficiente para uma mudança social.
O ‘caldo antipetista’ mencionado na análise de 2023 continua alimentando o país… Nesse cenário, seria possível fazer mais?
As pesquisas de opinião indicam que isso não foi alterado e pode ser mobilizado fortemente pela ultradireita. Estamos em um governo progressista, que sinaliza isso, faz coisas boas, mas ainda aquém do esperado no que diz respeito a mobilizar a sociedade em um projeto transformador. Eu diria que seria possível tentar mais. Sem paixão não há mudança. O governo propõe reconstrução e união. Mas é limitado apenas reconstruir. É preciso avançar, porque a situação anterior, afinal, nos levou aos problemas que propiciaram a ultradireita. Não dá para reconstruir e voltar aos mesmos moldes. É preciso transformar. Mas para ir para onde? Além da reconstrução, é preciso uma direção política em um projeto de transformação social muito forte e capaz de mobilizar as forças da sociedade para apoiá-lo.
É isso que a senhora chama de disputa de hegemonia?
Sim. E o governo tem essa capacidade de sinalizar um projeto de transformação, radical. Nas áreas em que for possível. Não é preciso ser em tudo. É preciso uma política para conversar, por exemplo, com os jovens nem-nem [aqueles que nem estudam, nem trabalham], com os trabalhadores informais. A nossa informalidade não está só nos trabalhadores de plataformas, temos os camelôs, por exemplo. Não adianta só um projeto educacional, ou políticas de previdência para os trabalhadores formais. Claro que a nova política industrial vai incorporar essas pessoas, mas somente parte delas. O que fazer com as pessoas que não vislumbram perspectiva de mudança em suas vidas? Essa é a realidade latino-americana – são os informais, os nem-nem. Elas precisam de políticas específicas. E são presas muito fáceis de qualquer discurso de mudança da ultradireita. Avançamos na reconstrução, com retorno dos programas inclusive melhorados, como o Mais Médicos, o Minha Casa Minha Vida. Fomos muito inovadores com a Bolsa Família, com o orçamento participativo, mas os problemas hoje são maiores. É preciso e é possível envolver as pessoas em projetos do que chamo de construção do comum. Isso envolve colocar pessoas a trabalhar nos próprios territórios em que vivem, construindo relações de solidariedade, formas de inclusão social, de distribuição, de criação de espaços comuns, cooperativas, a economia solidária. Não se pode pensar que vamos resolver tudo pelo mercado formal. Seria como esperar arrumar o capitalismo. Não podemos ser arrumadores de capitalismo e sim ter um projeto alternativo. A ideia do comum é, por exemplo, pensar que hoje uma das grandes demandas da sociedade é a questão do cuidado. Isso pode ser uma alternativa para várias mulheres que estão desempregadas e que podem criar cooperativas para cuidar de crianças, de pessoas doentes. É preciso sair da ideia de que iremos levar todo mundo para o mercado formal de trabalho. Podemos ser mais ousados em mexer nas questões estruturais e mais inovadores para buscar soluções para problemas que não foram tratados antes e que precisam ser tratados agora.