No dia 15 de janeiro o presidente Lula sancionou a Lei nº 14.812, que altera o Decreto 236 de 1967. A nova Lei, embora tenha apenas uma página, altera de forma significativa os dispositivos que limitam o número de concessão de estações de rádio e TV, aumentando a concentração do mercado da radiodifusão no Brasil. A sanção da Lei expõe a dificuldade de parte da esquerda brasileira em entender a regulação das comunicações como uma agenda estratégica para a consolidação da democracia.
Por Ana Mielke/Outras Palavras
Ilustração: OjoPúblico/ Eduardo Yaguas
O primeiro deles é que ela aumenta de dez para 20 o limite de concessões de TV (estações radiodifusoras de som e imagem) para cada empresa ou organização social privada. O limite estabelecido anteriormente era de dez concessões, sendo cinco em VHF e duas por estado. Agora, qualquer empresa ou organização social poderá ter até 20, independente do tipo de frequência. Isso significa que conglomerados como a Rede Globo, que atualmente possui cinco concessões em VHF (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Brasília), poderão expandir seu negócio até o limite de 20 concessões. É quase uma por estado da federação.
A segunda regra diz respeito às concessões de rádio (ou estações de difusão sonora). O Decreto 236/1967 estabelecia limites que levavam em conta a amplitude do território alcançado e o tipo de frequência. Sendo assim, permitia a concessão de até 20 canais desde que em nível local fossem quatro em ondas médias (AM) e seis em frequência modulada (FM); em nível regional fossem três em ondas médias (AM) e três em ondas tropicais (não podendo exceder a quantidade de dois por estado) e, em nível nacional, dois em ondas médias (AM) e dois em ondas curtas.
Como desde 2013 o país passa por uma transição tecnológica, com a liberação dos antigos canais 5 e 6 da TV analógica para a transmissão em frequência modulada, todas as rádios locais atualmente operam em FM. A revogação dos limites em relação à amplitude do território alcançado e o tipo de frequência permite que uma empresa do setor possa controlar o mercado de rádios localmente, aumentando de seis para 20 o número de estações no dial. É um escândalo!
A Lei foi originada no PL 07/2023 de propositura do deputado federal Marcos Pereira (Republicanos-SP). Sua tramitação açodada teve início no começo desta legislatura, em fevereiro de 2023. O presidente da mesa diretora, deputado federal Arthur Lira (PP-AL), colocou o PL para tramitar em caráter conclusivo pelas comissões. Isso significa que não havendo pareceres divergentes nas comissões, o PL é considerado aprovado sem precisar passar por votação em Plenário. A proposta foi aprovada nas comissões de Comunicação e de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara.
Na sequência a proposta seguiu para o Senado, onde passou pela Comissão de Comunicação e Direitos Digitais e também pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Depois seguiu para o Plenário do Senado, onde foi votada e aprovada em 12 de dezembro de 2023. Em 26 do mesmo mês foi encaminhada à sanção presidencial.
Desde a Constituição de 1988, diferentes movimentos sociais têm se organizado para garantir maior diversidade e pluralidade na mídia brasileira. Inúmeras foram as ações para tentar produzir uma regulamentação dos artigos constitucionais que versam sobre o tema, entre os quais, o Art. 220, que traz em seu parágrafo 5º que “meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Embora a proibição seja explícita, operadores do direito à serviço de atores contrários à regulação da mídia defendem que os artigos constitucionais carecem de regulamentação específica, que qualifique monopólio e oligopólio e efetive as designações da Carta Magna.
Em 2014, após ampla pressão dos movimentos sociais, com a elaboração de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular para produzir regulação da mídia no país (Projeto de Lei da Mídia Democrática), a ex-presidenta Dilma Rousseff falou em regulação econômica, pela primeira vez, durante debate presidencial realizado na TV Bandeirantes.
O momento foi de grande entusiasmo para o movimento pela democratização das comunicações, mas obviamente fez com que Dilma Rousseff fosse diametralmente atacada pela mídia. A ex-presidenta chegou a ser acusada de querer impor censura aos meios de comunicação, quando sabemos, a regulação econômica tem como foco a concentração de mercado e não interfere diretamente sobre o conteúdo da programação.
Nestes mais de 35 anos pós-Constituição, algumas pesquisas produzidas pelos próprios movimentos sociais em parceria com instituições acadêmicas buscaram mostrar como a concentração midiática, que avançou no país desde 1987, produz impactos negativos relevantes para a liberdade de expressão (aqui entendida como um direito difuso e coletivo e não apenas individual) e para a própria democracia.
O mais famoso destes estudos foi o projeto Donos da Mídia, iniciado ainda nos anos 1980, em função da farra da distribuição das concessões durante a constituinte. O projeto era liderado pelo jornalista Daniel Herz, conhecido defensor da democratização dos meios de comunicação e ganhou bastante relevância nos anos 90, quando inspirou a produção de reportagens, dissertações de mestrado e diversos trabalhos sobre o tema.
A última pesquisa que produziu dados acerca da concentração de propriedade dos meios foi a Media Ownership Monitor, realizada em 2017, em uma parceria entre o Intervozes e a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Para a pesquisa foram selecionados os 50 veículos com maior índice de audiência no Brasil, em quatro tipos de mídia: tevê, rádio, impresso e internet. E o resultado sobre a análise da propriedade de mídia é que apenas cinco grupos econômicos controlam 26 destes veículos.
Aquela antiga expectativa de que a internet promoveria democratização das comunicações, pela entrada de novos players no ambiente da difusão da informação e do entretenimento concretizou-se apenas em parte (uma pequena parte, diga-se de passagem). Isso porque os achados da pesquisa mostraram, não apenas a continuidade do cenário de concentração de décadas anteriores, como também apontaram para um fenômeno de crescimento diagonal ou lateral dos conglomerados.
Autores como Mastrini e Becerra (2006) já haviam apontado esta tendência em que as empresas passam a “buscar a diversificação fora do ramo de origem com o objetivo de reduzir e compensar riscos por meio da criação de sinergias”. E o advento da massificação da internet tornou isto possível, dando às empresas de mídia condições para compartilharem conteúdos especializados por meio de estruturas comuns.
Os dados do Media Ownership Monitor mostraram que empresas que já mantinham grande audiência em determinados tipos de mídia, não tiveram muita dificuldade em transferir esta hegemonia da TV aberta ou do jornal impresso para outros setores e mídias, como o da TV por assinatura, canais de streaming ou portais de notícias. Estes cenários de concentração outrora tão mapeados seguem intactos, ou melhor, com a sanção da Lei nº 14.812/2024 deverão piorar em muito.
Um pastor, uma igreja, uma TV
A terceira alteração proposta pela Lei é que, a partir de agora, empresas unipessoais – aquelas que não precisam de sócios para sua abertura -, poderão pleitear concessões de rádio e TV. A mudança, aparentemente pouco relevante, aponta para a tendência de propagação do fenômeno já conhecido, chamado de televangelismo, mas agora, com cada líder religioso podendo ter o seu próprio canal.
Os maiores expoentes deste fenômeno são os pastores Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, que arrenda a grade de programação por até 11 horas por dia na Rede Brasil; R. R. Soares, fundador da Rede Internacional de Televisão (RIT) e apresentador do programa de televisão religioso Show da Fé, que durante 18 anos ocupou a programação da Rede Bandeirantes, também no esquema de arrendamento; Silas Malafaia, cujo programa Vitória em Cristo hoje é produzido e distribuído pela Associação Vitória em Cristo (AVEC); e o Bispo Edir Macedo, líder e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e proprietário do Grupo Record, que dispensa apresentações.
Até o ano de 2022, o arrendamento de horários na grade de rádios e TVs comerciais era restrito ao limite de 25% da programação e destinado a fins publicitários. Ou seja, as emissoras poderiam comercializar este percentual da grade para aferir lucro e assim se manter no mercado de radiodifusão. A regra estava prevista na Lei 4.117/1962, conhecida como Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT). Mas foi alterada pela Lei 14.408/2022 que pôs fim a este limite, abrindo as porteiras para a subconcessão, até então proibida em contratos de concessão.
A aprovação desta Lei em 2022 teve grande lobby das empresas de radiodifusão, representadas pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e pela Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel) e também da bancada evangélica. Não por acaso, os mesmos atores que agora incidiram pela quebra das regras que limitavam a quantidade de concessões por empresas ou grupo econômico. A diferença é que, em 2022, não se esperava que o então presidente Jair Bolsonaro fosse vetar o PL.
Em 2024, depois de décadas de debate pela democratização da comunicação, da proposição de marcos regulatórios pela sociedade civil, e depois de inúmeros episódios que mostraram como a concentração da mídia é nefasta para a democracia, para a garantia de direitos e para a liberdade de expressão, esperava-se, no mínimo, um amplo debate com a sociedade sobre as mudanças impostas pela nova Lei.
O que se viu, no entanto, foi um vídeo constrangedor, em que o presidente Lula aparece ao lado do atual ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil), enquanto este afirma que a Lei vai “ajudar a ampliar a radiodifusão como um todo”. Se o presidente Lula estava informado ou não do estrago que a revogação dos limites de concessões poderá causar, não sabemos, mas o fato é que em 18 de dezembro, uma carta recomendando o veto foi produzida pelo Conselho de Participação Social, ligado à Presidência da República. Resta questionar se de fato o documento chegou às mãos do Presidente!