“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, reza o parágrafo único do Art. 1º da Constituição Federal de 1988 (CF88). Por outro lado, o Título VIII, “Da Ordem Social”, estabelece várias formas de participação, sendo que o Art. 204, ao tratar da assistência social, define especificamente diretrizes para a descentralização político-administrativa e a participação popular na formulação de políticas públicas setoriais.
Por Venício Lima*, na revista Teoria e Debate (edição 126)
Na CF88 está prevista a instalação de quinze tipos de conselhos, diferenciados por sua inserção normativa, vinculação, atuação, composição, competência e natureza. Regulamentados por lei complementar, inúmeros funcionam rotineiramente, e esse funcionamento passou a ser condição legal para o repasse de recursos financeiros da União e dos estados. Outros cumprem funções relativas à avaliação de instituições públicas.
A diretriz constitucional da descentralização político-administrativa e da participação popular tem sido diretamente responsável por resultados positivos na formulação e avaliação de políticas públicas de setores de direitos fundamentais, há anos.
Apesar de tudo isso, o Decreto nº 8.243 de 23 de maio, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS), tem provocado uma irritada reação das forças conservadoras. Na Câmara dos Deputados, a oposição faz obstrução da pauta e ameaça impedir a votação de qualquer projeto de lei até que o decreto seja revogado. Além de líderes partidários, editoriais e colunistas de jornais tradicionais têm atacado a PNPS.
É interessante observar que os oligopólios de mídia lideram a reação conservadora: “golpe contra a democracia”, “devastadora desconstrução da democracia”, “decreto suspeito”, “bolivarismo” e “chavismo” são algumas das acusações ao decreto.
O porta-voz do tradicionalismo paulista, por exemplo, afirma em editorial que a presidente “tenta por decreto mudar a ordem constitucional”, que o decreto “é um conjunto de barbaridades jurídicas” e “mais um ato inconstitucional”. Por fim, conclama o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal a declararem “a inconstitucionalidade do decreto”.
Não há novidade na reação da grande mídia. O liberalismo que sempre afirma defender só é democrático no papel e ela tem apoiado sofismas historicamente utilizados para justificar a exclusão e a marginalização de importantes segmentos da população brasileira do exercício republicano da democracia. Mas há, sim, uma especificidade que une a mídia e as diretrizes constitucionais da descentralização político-administrativa e da participação popular. Desde a CF88, elas têm sido interditadas no campo da comunicação social.
Em dezembro de 1991, foi sancionada a Lei nº 8.389, que regulamentou o Art. 224 da CF e instituiu o Conselho de Comunicação Social (CCS). Apesar de ser apenas um órgão auxiliar do Congresso, o CCS teve sua instalação postergada por onze anos, até 2002. Instalado, funcionou durante quatro e ficou inativo de dezembro de 2006 até julho de 2012, quando foi reinstalado de forma polêmica e com uma composição distorcida, favorecendo a representação empresarial.
Por outro lado, desde a promulgação da CF, obedecendo ao princípio constitucional da simetria, nove das 26 Constituições estaduais – Alagoas, Amazonas, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul – e a Lei Orgânica do Distrito Federal incluíram em seus textos a criação dos Conselhos Estaduais de Comunicação Social (Cecs). Apesar de várias iniciativas tomadas nessas dez unidades da Federação para regulamentar o que está previsto em suas respectivas Constituições, até hoje os Cecs somente funcionam nos estados da Bahia e de Alagoas, e neste de maneira precária e limitada.
A formidável resistência histórica dos oligopólios de mídia impede, há mais de 25 anos, que normas da CF88 e de Constituições estaduais sejam cumpridas no campo da comunicação social.
O mesmo O Estado de S. Paulo publicou editorial, em 2010, no qual afirmava:
As tentativas de controlar os meios de comunicação no Brasil podem ser abertas ou camufladas. (…) A Assembleia Legislativa do Ceará aprovou, por unanimidade, o projeto de uma deputada petista que institui no estado um Conselho de Comunicação Social. (…) O pretendido conselho cearense (…) quer fiscalizar os meios de comunicação do estado, criar condições para a “democratização” da informação e orientar a distribuição das verbas publicitárias estaduais considerando a “qualidade e pluralismo” da programação dos órgãos da mídia eletrônica. (…) Para o diretor executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Ricardo Pedreira, a proposta é “obscurantista, autoritária e inconstitucional”. “Quem deve controlar os veículos de comunicação deve ser a sua audiência”, argumenta. “Não cabe a nenhum órgão do Estado exercer esse papel”.
Não é de surpreender, portanto, que os oligopólios tradicionais da velha mídia liderem a reação conservadora. Autodenominados defensores da democracia, rejeitam qualquer interferência popular direta na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas referentes às concessões do serviço público de radiodifusão. Temem que o Decreto nº 8.243 faça a prática da democracia participativa chegar à comunicação social, o que, até hoje, têm conseguido interditar.
*Venício A. Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador de Para Garantir o Direito à Comunicação – A Lei Argentina, o Relatório Leveson e o HGL da União Europeia, Perseu Abramo/Maurício Grabois, 2014; entre outros livros.