Ladislau Dowbor, para o Barão de Itararé*
“A arte da tributação consiste em depenar o ganso de maneira a obter a quantidade máxima de penas, com o mínimo possível de chiadeira”
Jean Baptiste Colbert, Séc. 17
Tenho batalhado sistematicamente para melhorar o nível de informação econômica da população. A mídia comercial que nos domina apresenta contas complexas, se desculpando porque a economia “é técnica”. Quando te tiram dinheiro do bolso, não é “técnico”, é roubo. No caso das contas públicas, não é bolso, e não é roubo, é o orçamento e “apropriação indébita”. Odilon Guedes tem trabalhado muito esta questão de tornar as contas públicas transparentes, e se trata de uma questão essencial. O orçamento é o nosso bolso comum, e o dinheiro que ali colocamos também é nosso.
Como ordem de grandeza, dois terços do bem estar econômico das famílias depende de ter dinheiro no bolso, mas pelo menos um terço, um gigantesco montante de recursos, depende de acesso a bens de consumo coletivo, como saúde, educação, segurança, um rio limpo, um parque no bairro, a rua asfaltada e tantos elementos que constituem o “salário indireto”. Cuidamos sim dos nossos bolsos, mas temos de cuidar, e muito, dos recursos públicos.
Trata-se de um desafio essencial para a mídia livre, curiosamente chamada de “alternativa” porque honesta e desinteressada. A mídia comercial depende da publicidade, e esta depende das grandes corporações financeiras. Hoje, com as plataformas que dominam o mundo da informação, o sistema se deformou radicalmente. A Meta (Facebook, Instagram…) se apropria da informação pessoal, e monetiza nossa atenção ao vender espaço de publicidade: 98% dos seus gigantescos lucros vêm de vender o nosso tempo de atenção e nossa informação privada. E os custos da publicidade são incorporados nos preços que pagamos. Nos os pagamos para que nos desinformem e manipulem. É a nova indústria da atenção (attention industry). O Zuckerberg (pão de açúcar, este é o nome traduzido) estava se derretendo na inauguração, atrás de Trump e ao lado de Musk e Bezos. Tutti buona gente.
Mas na realidade, a questão que estamos aqui discutindo, a reforma tributária, é simples, se assumirmos que se trata da apropriação do nosso dinheiro. É entender como funciona esse “bolso”, na dimensão pública. O interesse é grande. Há dois meses coloquei no Youtube um vídeo de 15 minutos sobre como funciona o ciclo econômico: em poucas semanas, mais de meio milhão de visualizações. Não é porque coloquei gatinhos ou cachorrinhos, mas porque coloquei em termos simples como funciona o ciclo econômico básico. As pessoas querem muito entender, e esta democratização da informação econômica representa um caminho importante para a mídia livre. Trata-se, como dizem os americanos, de seguir o dinheiro, follow the money.
No nosso caso, basta dividir o PIB, da ordem de 11 trilhões, pela população, 213 milhões: o que produzimos de bens e serviços anualmente corresponde a 17 mil reais por mês por família de 4 pessoas. O que produzimos é amplamente suficiente para todos viverem de maneira digna e confortável, bastando para isso reduzir de alguns porcentos as fortunas dos mais ricos, por exemplo dos 240 bilionários que a Forbes apresenta.
Poderíamos utilizar a Renda Nacional Líquida em vez do Produto Interno Bruto, ou acrescentar estimativas do capital acumulado, mas isso não muda a dimensão essencial: produzimos amplamente o suficiente para todos. O nosso problema, portanto, não é propriamente econômico, e sim de organização política e social. Em termos de tributação, significa que há recursos suficientes para assegurar ao Estado o papel dinamizador que lhe compete.
A segunda referência é o perfil de produção. Há poucas décadas, a indústria representava 22% da produção, hoje representa algo como 11%. O Brasil se desindustrializou, ainda que hoje esteja se recuperando parcialmente, com as iniciativas da nova gestão Lula. Paralelamente, com a fragilização dos sistemas de apoio à agricultura familiar, base da alimentação do país, e reforço da agro exportação, continuamos a produzir muito grão e carne para a exportação, mas a fome atinge milhões, aqui também com forte redução, nesses dois últimos anos. A privatização das estatais, por sua vez, ao abrir o controle para acionistas nacionais e internacionais, levou a que a produção de minério se orientasse mais para a exportação de produtos em bruto, em vez de enriquecer a cadeia técnica de cada setor, a jusante e a montante, e financiar setores mais modernos, como o fazem hoje vários países árabes com os recursos do petróleo. O Brasil se reprimarizou, com novas tecnologias e maior intensidade. O Banco Mundial qualifica corretamente o dreno de recursos naturais como descapitalização, não como “produto”.
Uma terceira referência é a financeirização da economia, tendência mundial, mas que no Brasil adquiriu características grotescas. Os bancos e o sistema financeiro em geral passaram a drenar fortunas para proveito dos grupos nacionais (Faria Lima e bancos privados) e internacionais (BlackRock, State Street, Vanguard e outros). Com a taxa Selic a 13,25%, os grupos financeiros se apropriam de grande parte dos nossos impostos, cerca de 7 a 8% do PIB, só nessa conta. Para um ponto de referência, o Bolsa Família representa 1,5% do PIB.
Com juros no crédito privado atingindo 53% para pessoas físicas e 22,1% para pessoas jurídicas, o dreno por agiotagem atinge cerca de 15% do PIB, reduzindo a capacidade de compra das famílias e a capacidade de investimento das empresas. O esfriamento geral da economia reduz o fluxo de receitas para o Estado. No geral, podemos estimar um dreno financeiro líquido, improdutivo, bem acima de 20% do PIB. Não estamos incluindo aqui a evasão fiscal, cerca de 6% do PIB, e as renúncias fiscais, cerca de 4,7% do PIB.
Assim, apenas dois setores avançaram depois do golpe de 2016: a exportação de bens primários e o rentismo financeiro. Nenhum dos dois enriquece o país, antes o drenam. A deformação da tributação aparece com clareza. Com a Lei Kandir, de 1996, a produção de bens primários e semi-primários para a exportação foi isenta de impostos. O agronegócio, os grupos de mineração privatizados, os que extraem madeira da Amazônia se desinteressam do mercado interno. As grandes fortunas de base rentista, essencialmente grupos financeiros, também são isentos de imposto, desde 1995: são os lucros e dividendos distribuídos. No conjunto, gerou-se uma fratura entre os interesses corporativos por um lado, e as necessidades da população e o desenvolvimento no médio e longo prazo do país por outro.
A política tributária no Brasil é injusta. Os debates no Congresso são intermináveis porque se trata de homens brancos e ricos que em grande parte organizam a cobrança e o uso dos impostos em proveito de si mesmos. A ampla maioria deles têm aplicações financeiras, não empresas produtivas. Chamam isso de “investimentos”, e se apresentam como “investidores”, mas são aplicações financeiras, apenas teclas no computador. Em grande paarte representam interesses de corporações, não os interesses da nação.
O básico é que os países que funcionam usam os impostos para redistribuir, equilibrando melhor a sociedade. No Brasil a tributação é utilizada para concentrar ainda mais. A metade dos nossos tributos vem de impostos indiretos, embutidos nos preços dos produtos que compramos. Como a massa da população gasta quase tudo o que ganha em compras, os pobres e remediados do país pagam proporcionalmente muito mais. Precisamos de tributação progressiva, não regressiva. O princípio ético, de redução das injustiças, é fundamental.
É também uma política tributária improdutiva. A Lei Kandir vista acima fragiliza quem produz para o mercado interno, gera custos ambientais e sociais, com poucos efeitos multiplicadores internos. O ITR (imposto territorial rural) que não é cobrado favorece a subutilização do solo, que atinge cerca de 160 milhões de hectares (cinco vezes o território da Itália). Somos dos poucos países com esses absurdos. A não taxação das fortunas financeiras desvia os recursos do investimento produtivo para a especulação. E os desequilíbrios da tributação são reforçados pelos desequilíbrios nas taxas de juros: para que uma pessoa com recursos vai abrir uma empresa, produzir bens e serviços, se a aplicação financeira em títulos do governo lhe rende 9% líquidos, já descontada a inflação, sem risco? Em termos de dinamização econômica, a incidência do imposto deve favorecer o investimento produtivo e taxar o rentismo improdutivo; e em termos de justiça social, taxar proporcionalmente mais os mais ricos.
Em termos de gestão, uma deformação do sistema tributário consiste na extrema concentração dos recursos em Brasília, com acesso muito limitado aos recursos por parte dos governos de Estados, e em particular dos 5.570 municípios do país. Com 87% de população urbana, praticamente todos os municípios do país têm hoje núcleos urbanos que permitiriam uma descentralização efetiva de acesso aos recursos, para o uso diferenciado em função das realidades locais. Os poderes locais numa Suécia administram cerca de 70% dos recursos públicos, no Brasil estamos no nível da ordem de menos de 20%, com prefeitos viajando para Brasília para buscar uma fatia de emendas parlamentares, transformando a política em negociata permanente.
É importante lembrar que o sistema integrado informatizado, nesta era da revolução digital, permitiria seguir os fluxos de recursos em tempo real, e que os municípios menores têm se organizado em consórcios intermunicipais que asseguram outro nível de eficiência. O princípio geral que caracteriza os sistemas que funcionam é que o dinheiro é utilizado de maneira mais eficiente quando a decisão do seu uso é mais próxima das comunidades interessadas. A China, segundo Kroeber, é mais descentralizada ainda do que a Suécia: tem um governo central politicamente forte, mas as iniciativas e a organização são locais. O estudo recente de Keyu Jin, The New China Playbook, mostra a amplitude da descentralização da economia chinesa, que a autora chama de “mayor economy”, economia de prefeitos. O governo central dá as linhas, mas a gestão e organização é local, permitindo outro nível de eficiência.
A política tributária atual é injusta, improdutiva e ineficiente. Usa-se o argumento de que fazer os ricos pagarem impostos os fará levar o dinheiro para fora. Não precisam fugir: hoje, a evasão fiscal já é da ordem de 6% do PIB, e temos centenas de bilhões de dólares em paraísos fiscais. Temos de resgatar a política tributária no país, de forma justa e eficiente, mas em articulação com a política financeira em geral. O crédito deve servir para fomentar a economia, as exportações primárias para financiar investimentos em setores avançados, e a política monetária para estimular as atividades produtivas. O tripé de superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação seria melhor orientado ao assegurar renda básica, políticas sociais e garantia de emprego, que é aliás a luta do governo atual.
O problema básico não é “de onde” vêm os recursos, dos impostos, mas também podem ser de conversão das reservas cambiais, do endividamento ou até de emissão monetária pública, e sim “para onde” vão: um bom investimento gera retorno e equilibra as contas. A convergência dos absurdos de uma tributação regressiva, de agiotagem nas políticas de crédito, e de uma política fiscal que privilegia corporações financeiras em vez do fomento da economia, geou tensões simultaneamente econômicas, políticas e sociais. Reforçando: nosso desafio não é econômico, no sentido de falta de recursos, mas de organização política e social. Por desgraça, não é complexo, e uma pedagogia da economia é essencial, papel importante dessa mídia livre que está abrindo caminhos.
*Ladislau Dowbor é professor de economia na PUC-SP. Os seus trabalhos estão disponíveis no site http://dowbor.org , em particular, sobre o presente tema, o livro Resgatar a Função Social da Economia, https://dowbor.org/2022/04/resgatar-a-funcao-social-da-economia-uma-questao-de-dignidade-humana.html
A Coluna do Barão é um espaço dedicado à publicação de análises e reflexões sobre a comunicação e questões como a política, a economia, a cultura e sociedade brasileira em geral. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos, em sua ampla maioria, membros a Coordenação Executiva ou do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização. A reprodução é livre, desde que citados o autor e a fonte da publicação original.