Notícias falsas e uso intenso de redes sociais para emplacar um discurso moralista, fundamentalmente anticorrupção e que se coloca como alternativa ao establishment da política tradicional. A fórmula que levou Jair Bolsonaro à vitória sem ter de participar de debates presidenciais, explicar seu programa eleitoral ou mesmo provar as acusações feitas em campanha não é exclusividade do Brasil. Em eleição realizada no dia 3 de fevereiro, Nayib Bukele foi eleito presidente de El Salvador, com 53% dos votos.
Por Felipe Bianchi
Com apenas 37 anos e passado ligado à histórica Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), Bukele descolou sua imagem da esquerda e, encarnando um empresário bem sucedido no ramo de publicidade, lançou sua candidatura através da sigla Gana – Grande Aliança pela Unidade Nacional. Enquanto a FMLN amargou o terceiro lugar no pleito, um revés sem precedentes, a força mais tradicional da direita local, a Aliança Republicana Nacionalista ficou em… segundo. Sinal dos tempos?
Para Franklin Selva, comunicador e experto em pesquisas políticas de El Salvador, qualquer semelhança não é mera coincidência, “Há muitas similaridades entre a candidatura de Bukele e a de Bolsonaro. “Há, de fato, uma tendência de os partidos de direita fugirem da exposição pública, porque entram em uma zona de conforto. Se as pesquisas eleitorais começam a favorecê-los, por exemplo, elas se tornam um indicador para que as figuras dos candidatos permaneçam fora de cena”. Vale lembrar que Fernando Haddad, candidato do PT que enfrentou Bolsonaro no segundo turno das eleições brasileiras de 2018, não teve nenhuma oportunidade de confrontar ideias com seu oponente, que alegou problemas de saúde para justificar a ausência em debates televisivos, mesmo aparecendo para entrevistas em canal simpático à sua candidatura (TV Record).
Esse receituário eleitoral, na visão do especialista, reforça o discurso de negação da política, porque os candidatos entram em cena batendo na tecla do “não somos iguais aos políticos de sempre”, mas terminam se aliando justamente aos mesmos de sempre. “Esses candidatos tendem a substituir um discurso de propostas pela tentativa de capturar a empatia de setores que perderam a esperança nos partidos tradicionais, praticando uma espécie de ‘necrofagia’. Para disfarçar o que são, se vendem como ‘outsiders'”, explica. “O êxito desses falsos messias é que se alimentam do discurso da desesperança”.
Em relação às redes sociais, Selva opina que é um ambiente no qual pode-se dizer tudo: “O discurso nas redes é minimalista e os próprios usuários se encarregam de replicar as mensagens, geralmente baseadas em narrativas de fácil adesão, mas que nem sempre são concretas”. A lógica do uso das redes por candidaturas como a de Bukele e de Bolsonaro é simples: “Se você manipula o cenário, você o controla”. Ao mesmo tempo, acrescenta o salvadorenho, é um chamado para que a comunicação tradicional de boa parte das esquerdas atente para a importância da presença e da atuação nas redes sociais, sem nunca perder a vitalidade da permanência territorial.
As fake news são um problema para as eleições porque, sobretudo, são um tremendo problema para a comunicação em geral, assevera Selva. “As pessoas vêm se despreendendo de hábitos de leitura, de investigação, criando uma cultura de consumo jornalístico baseado no superficial e no falso, o que é extremamente grave”, diz. “A acomadação de ter tudo à palma da mão, com um telefone inteligente, parece ter diminuído a capacidade de análise críritca da realidade. Tudo se resume a um meme. O horizonte das mídias alternativas têm de ser oferecer a verdade, de maneira comprometida. Do contrário, chegará ao momento em que tudo será tão falso que ninguém sinta a necessidade de acreditar em nada. E é nesses tempos de desesperança que surgem esses messias”.
A prisão política de Lula também foi paralelo de comparação sobre o que se passa na região. “O caso de Lula é emblemático. Depois de várias tentativas, conseguiram neutralizá-lo. O que assusta, no caso específico da América do Sul, é que estão usando a mesma receita para todos os países ‘ameaçados’ pela esquerda”, como a caçada judicial à Cristina Kirchner, na Argentina, ou a Rafael Correa, no Equador. “O surgimento de grandes estadistas como Kirchner e Correa geraram muito ruído e incômodo para as direitas, que sentem a necessidade de destruir qualquer oportunidade de líderes como eles triunfarem em seus países”.
O lawfare – ferramenta que, grosso modo, consiste em perseguições judiciais vitaminadas por fortes campanhas midiáticas – também se fez presente em El Salvador, ajudando a produzir o caldo que culminou na eleição de Bukele. “Depois do primeiro governo de esquerda, em 2009, os grupos que dominaram o país por tanto tempo tiveram de se reconfigurar para continuar exercendo o poder fora da via eleitoral. É quando surge o que chamo de ‘ditadura dos juizes'”. No caso do país centro-americano, Selva explica que diversos programas de políticas do governo foram judicializados, barrando avanços e restaurando privilégios para setores empresariais e para as elites.
Em relação ao flamejante tema da Venezuela, que sofre com o assédio, o bloqueio econômico e a crescente ameaça golpista e intervencionista estadunidense, Franklin Selva ressalta que Juan Guaidó, opositor do governo de Nicolás Maduro que se autoproclamou presidente em obsceno conchavo com Donald Trump e governos satélites dos Estados Unidos, foi o primeiro a saudar a vitória de Bukele em El Salvador. Buekele é recíproco ao reconhecer e apoiar Guaidó. “Podemos dizer que a agenda imperialista também vem se transformando. Agora também trava sua batalha a nível emocional, com os temas sensíveis para os povos. Ao menos em El Salvador, a preocupação que antes era com a economia ou a segurança passou a se concentrar no tema da corrupção, porque são casos que marcaram a agenda midiática em sintonia com o discurso que vem de Washington, nos Estados Unidos”.
Especialista em pesquisas eleitorais no país centro-americano, Franklin Selva produziu um relato sobre o processo que deu a vitória a Nayib Bukele. Leia na íntegra a seguir.
Recentemente El Salvador viveu uma jornada eleitoral muito atípica. Não no sentido do processo em si ou da forma de votar, mas atípico nos métodos de convocatória e de apresentação de propostas, se assim podemos dizer.
Desta vez, a FMLN, principal e mais organizada força política de esquerda na história do país, sofreu seu pior revés em tempos eleitorais, exatamente quando cumpre 25 anos de sua primeira participação eleitoral depois da transição de guerrilha a partido político.
As mensagens foram claras: a FMLN perdeu a oportunidade delegada pelo voto de mais de 1.3 milhão de eleitores em 2009, durante o pleito que venceu e que levou a esquerda pela primeira vez à cadeira presidencial, com um candidato cujo lema era a esperança. Naquela ocasião, a FMLN foi à contenda contra uma direita unificada sob a bandeira da Arena.
Em 2014, a eleição presidencial significou, para a FMLN, quase 1.5 milhão de votantes no segundo turno. Até então, a Arena, que vinha de uma ruptura interna, seguia sendo seu principal adversário político. Abaixo, em terceiro lugar, surgia o Gana, partido que nasceu como a “nova direita depois da derrota do Arena, acumulando apenas 307 mil votos.
Cinco anos depois, com uma derrota histórica, a FMLN perdeu 1.1 milhão de votos, se comparado à eleição presidencial de 2014, frente ao Gana, que não hesitou em servir como veículo eleitoral para oferecer uma nova opção que as pesquisas já davam como favorita. A mensagem foi contundente. A população não votou pela direita tradicional, mas sim por uma direita que lançara um candidato nascido e promovido pela esquerda, mas que havia sido expulso dali. Foi assim, não se pode negar. Um candidato que ocultou dos debates, mas que soube se conectar com os votantes. Que desenvolveu uma campanha virtual e que criou linhas discursivas simples, mas impactantes. Quase sempre contraditórias, mas, como sempre, as contradições foram sendo esquecidas no mar de informação.
A campanha eleitoral, midiática e comunicacionalmente traz à tona novos horizontes em matéria de discurso. Massivamente, de forma a obtermos referências qualitativas, as mediações se criaram sob o discurso do “voto de castigo” – não ao partido ou seus programas sociais, senão à uma direção que segue tendo os mesmos rostos há mais de 30 anos. A população não protestou por conta das transformações sociais, mas sim perguntou por que não foi possível ser mais radical para aplicar medidas econômicas que transformassem a realidade imposta pelo sistema neoliberal. O povo ficou esperando uma reforma fiscal que cobrasse do grande capital a sua conta.
A falta de uma liderança facilitou a evolução de um novo tipo de discurso, apegado à eferverscência das fake news, à rapidez da “memecracia” e à aparição de influenciadores que surgem de estratos médios, que ademais de não serem beneficiários diretos dos programas sociais, se viram afetados, em algum momento, pelas medidas econômicas desacertadas, como o ajuste de subsídios e a falta de uma garantia para pensionistas, algo que não é uma realidade apenas em El Salvador, mas ponto de quebra de toda a economia mundial.
Dois elementos comunicacionais foram chave para o retorno da direito ao país: o desgaste das opções políticas e os discursos da “não-ideologia”. O horizonte que se apresenta à esquerda latino-americana é duro, cercado por novos governos de extrema-direita e pelo ressurgimento de alternativas políticas representadas por “empresários de sucesso”, além de um movimento judicial que força processos constitucionais atípicos e elegem presidentes interinos.
A desvinculação com os movimentos sociais, com os círculos de pensamento crítico e com os espaços de debate permitiram a difusão do discurso de desgaste com muitos e poucos argumentos. A conduta coerente, o pensamento crítico para criar militância popular exige, desta vez, mexer em fibrar sensíveis e estruturais da esquerda. Não se pode simplesmente apontar culpados, mas também assumir os desafios, que incluem o abandono do discurso retórico e a adaptação de novas formas de se comunicar e entender os processos eleitorais. O que resta para a esquerda: repensar-se, reorganizar-se ou reinventar-se? O relevo geracional não é opcional, mas uma condição necessária para a transformação e a coerência no discurso que as pessoas provavelmente ainda esperam da esquerda.