O editorial da Folha deste domingo, ‘Mitos das Redes Sociais’, exercita o malabarismo dissimulatório típico de um poder declinante, que pretende estender sua vida útil cerceando o curso da história.
Por Saul Leblon
No caso, trata-se de desqualificar ‘a forma de jornalismo’ praticado nas redes sociais – “mais sujeita a falhas do que as já frequentes no jornalismo profissional”, diz o texto, que justifica: “Informações se divulgam sem comprovação, quase sempre embaladas nas estridentes convicções, autênticas mas parciais, de seu emitente”.
É forçoso lembrar.
Um: o que se transcreve é um trecho editorial do veículo que se notabilizou, em 2009, por dar veracidade a uma ordinária falsificação de documento da polícia política da ditadura, de modo a prejudicar a então pré-candidata, Dilma Rousseff.
Dois: a Folha até hoje, repita-se, até hoje, não assumiu o erro grosseiro de manipulação.
Três: não foi um ponto fora da curva.
Tampouco representou um divisor, a partir do qual o jornal imbuiu-se de maior isenção e rigor na veiculação dos fatos.
Para não abusar da redundância, confira-se, nesta página de Carta Maior, a ‘falha’ da casa Frias na seleção e manipulação de indicadores de uma pesquisa eleitoral recente, de modo a desidratar Dilma e poupar Alckmin.
Estamos diante de uma norma.
De absoluta falta de compostura no presente, da qual já se teve robusta evidência no passado, e de cuja incidência dificilmente se escapará na campanha eleitoral de 2014.
A pluralidade da informação não pode ser reduzida a uma maratona para escalonar os campeões de erros e acertos na prática do jornalismo.
Por certo, a rede social comete os seus. Por certo, a exemplo da narrativa pré-fabricada Barão de Limeira, há manipulação também no mundo da web.
Por certo, a questão deve ser colocada em outros termos.
Se o interesse for salvaguardar a formação do discernimento crítico da sociedade, não serve a disjuntiva do editorial, centrado na suposta supremacia de um modelo de mídia que pressupõe o monopólio da informação.
É a preservação desse estatuto, cujo requisito é o sufocamento do jornalismo praticado na rede, que ordena as advertências e o lobby dos barões da mídia em relação ao Marco Civil da Internet, a ser votado em agosto na Câmara dos Deputados.
O que está em disputa, na verdade, é uma questão política de relevância decisiva dos dias que correm e naqueles que virão, já tratada neste espaço e em sites e blogs progressistas.
O jornal, em nome dos seus pares, quer manter intacto o poder de agendamento sobre o país.
Quer preservar, através do monopólio da emissão, o poder de determinar aquilo sobre o que o Brasil deve e não deve discutir; pode e não pode cogitar.
Hoje, meia dúzia de corporações determinam os limites desse gradiente.
O resto obedece – incluindo-se nesse genuflexório, não raro, o próprio governo.
Um dos pratos principais desse agendamento – do qual a Folha se desincumbe com afinco — consiste em dissolver o PT e seus governos num caldeirão fervente de desastre e suspeição.
A meta, desde 2003, sublinhe-se, é transformar anseios progressistas abarcados pelo partido num frango desossado, incapaz de ficar de pé, sobretudo num palanque.
O agendamento conservador falhou em 2006 e em 2010.
Persiste no mesmo diapasão a caminho de 2014, com algumas inovações.
Uma delas é o neogolpismo, aquele que arremete por dentro das regras institucionais, aliás invocando o papel de guardião daquilo que golpeia.
O novo ferramental não se dispensa de artefatos do velho repertório.
Avulta, como antes, a falta de respeito e o preconceito de classe, recorrente nos confrontos entre a ‘informação ‘menos falha’, alardeada pela Folha, e as demandas progressistas históricas da sociedade brasileira.
A outra novidade do arsenal é essa que o editorial insinua.
Barrar a emissão pluralista e insurgente de uma rede social que argui e disputa a agenda do país com o monopólio conservador.
O saldo positivo das gestões petistas apenas radicalizou essa necessidade de calar canais alternativos de formação da agenda política brasileira.
Em tempo: a palavra saldo aqui não condensa uma evolução linear, nem isenta o percurso das críticas e contradições inerentes a governos policlassistas de centro esquerda.
O fato é que o atrito crescente entre esse conjunto radicalizou a narrativa conservadora.
Presa em uma dupla travessia de esgarçamento tecnológico e político, ela dobrou a aposta no tudo ou nada.
Analistas de maior consistência e equidistância são expelidos de seus veículos; ou abafados pelo alarido grosseiro do segundo escalão.
A fotografia cede lugar ao photoshop. Literalmente e eticamente (veja-se a edição das fotos selecionadas pela Folha para ilustrar a entrevista da Presidenta Dilma ao jornal, na edição deste domingo).
O nível degrada.
Tome-se o exemplo a página 2 da mesma Folha.
Ali já escreveram progressistas como Antonio Calado e conservadores como Otto Lara Resende, entre outros. Ambas as cepas com expressões de alto nível.
Com honrosas exceções, tornou-se um rodapé intelectual.
Dele escorre o suor inglório dos que brigam com as palavras para compensar a irrelevância do que dizem em decibéis adicionais.
Isso para não falar de casos clínicos.
‘Veja’, que um dia foi dirigida por Mino Carta, é cada vez mais um encadernamento de rascunhos tolos do Tea Party.
A forma como esses veículos rejeitam a regulação da mídia –e tentam induzir o Marco Civil da Internet a cercear a rede social–, dá testemunho de uma dependência autoritária em relação ao futuro.
Carta Maior, ao contrário do editorial da Folha, entende que ter lado é uma virtude do jornalismo.
A indispensável lealdade com o leitor consiste em oferecer-lhe nossas coordenadas históricas: a construção de uma sociedade democrática e socialista.
Elas formam o mirante das nossas ideias.
Sobre ele repousa nosso olhar sobre o país e o mundo.
A pretensão da Folha e assemelhados de apresentar-se à sociedade como um canal de informação sem a “mácula” do engajamento tem um nome.
Fraude.
A máscara rota mais revela do que esconde.
Não há observador neutro.
Assim como nas relações sociais não há conhecimento dissociado de envolvimento na ação.
“Não foi a Internacional que levou os operários à greve; foram as greves que levaram os operários à Internacional”, respondeu Marx à imprensa burguesa, que acusava os ‘agitadores’ de manipular e incutir “ideias” totalitárias na cabeça dos trabalhadores.
Isso, em 1864.
Responde com notável pertinência aos esperneios dos editoriais conservadores no Brasil do século 21.
Publicado originalmente na Carta Maior