11 de dezembro de 2024

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A profecia da crise na Sabesp

Em 2003, quando a Sabesp teve seu capital aberto ao mercado, parlamentares e movimentos sociais já se preocupavam com a priorização de interesses privados sobre a universalização do acesso à água.

Por Felipe Bianchi, do Barão de Itararé, para o projeto A Conta da Água

Margem do Rio Tietê, na altura da cidade de Itu, interior paulista. Foto: Mídia NINJA

Apesar de atingir seu estopim em 2014, as razões para a grave crise hídrica pela qual passa o estado de São Paulo remetem a episódios que pouco têm a ver com falta de chuva ou caprichos da natureza. Um deles nos leva de volta a 2003, quando a Assembleia de São Paulo (Alesp) aprovou — na calada da noite — o Projeto de Lei 410/2003, de autoria do PSDB e responsável por abrir o capital da Sabesp ao mercado financeiro. Foram 55 votos contra 22, em sessão iniciada às 4h30 da madrugada do dia 27 de agosto.

Com a mudança na forma de gestão da empresa, 50,3% do seu capital encontra-se nas mãos do Governo do Estado de São Paulo, enquanto a bolsa de Nova Iorque (NYSE) detem 24,9% e a BM&F Bovespa abocanha 24,8% das ações. Ao longo desse período, a empresa atingiu números impressionantes: sua valorização bateu a marca de 601% e seu valor de mercado passou de R$ 6 bilhões a mais de R$ 17,1 bilhões.

Em 2012, os expressivos resultados foram comemorados no ‘Sabesp Day’, em plena Big Apple, com uma série de atividades especiais na bolsa nova-iorquina. Durante as festividades, a presidente da empresa, Dilma Pena, reafirmou o compromisso de “oferecer 100% de água tratada, 100% de coleta de esgoto e 100% de tratamento de esgoto em todo o interior do Estado de São Paulo até 2014”. Celebrada pelos acionistas, a dirigente argumentou que “a cada novo ano, a Sabesp mostra ter condições de executar seu objetivo com eficiência, de maneira sólida, dinâmica, inovadora e sustentável em termos financeiros, ambientais e sociais”.

 

Ou faltou combinar com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ou trata-se de uma realidade paralela. A conta da água não fecha. Apesar do sucesso da Sabesp na bolsa de valores, São Paulo sofre com a falta de abastecimento — o sistema da Cantareira, por exemplo, opera com 11% de sua capacidade e já utiliza a segunda cota do volume morto, levantando a seguinte questão: o modelo de gestão da Sabesp é o mais adequado para garantir a universalização do direito básico que é o acesso à água?

Na ocasião da votação que selou a entrada da Sabesp no mundo financeiro, a então deputada estadual Maria Lúcia Prandi fez uma declaração ‘profética’ sobre o tema, indagando se a empresa seria capaz de manter seu caráter público e priorizar os interesses da população ou se voltaria suas atenções aos desejos dos acionistas.

“Na prática, é uma quase privatização da Sabesp, que poderá perder seu caráter de empresa pública, abrindo espaço para os interesses privados, que visam lucros e não o benefício comum (…). Quem comprar as ações da Sabesp terá grande poder na gestão da empresa. Como ficará a questão das tarifas? Até que ponto a empresa vai querer investir em áreas carentes ou de difícil atendimento, como os morros? Como conseguir que as redes de esgoto e de distribuição de água cheguem a comunidades mais distantes?”

10 anos depois, ela comenta que “não se trata de profecia, mas de visão de mundo e de Estado”. Para a deputada federal, sua fala em 2003 foi uma “demonstração de que, a médio ou longo prazo, a população poderia pagar caro pela escolha que o governo estava prestes a fazer”.

Prandi recorda que, enquanto o PL 410/2003 estava em pauta, houve uma grande resistência na Alesp por parte de partidos à esquerda, que chegaram a realizar longos estudos sobre o tema para embasar o posicionamento contrário à matéria. “A Sabesp, à época, estava muito endividada. Tanto que havia forte pressão sobre os municípios não-conveniados. A capitalização foi uma das ferramentas que o governo lançou mão para sanar a situação e, na votação, foram vitoriosos”.

A tese de Prandi, no entanto, parece jogar luz sobre as origens de uma crise tratada de forma obscura pelo poder público paulista. “Ao vender ações, você sofre pressão de acionistas para aumentar o lucro, colocando os interesses dos donos das ações em primeiro lugar”, argumenta. “O acesso a um serviço essencial como o abastecimento de água nunca poderia ter sido relegado ao segundo plano”.

De acordo com ela, o governo poderia ter feitos ótimos investimentos que prevenissem crises como essa, já que há uma seca história no estado e o governo federal destina um significativo aporte financeiro para essa finalidade. “Mas a prioridade”, sugere, “parece ser agradar os acionistas”.

Primeira cota do Voume Morto, no sistema cantareira, São Paulo. Foto: Mídia NINJA

 

Governo optou por tratar água como negócio

Para Edson Aparecido da Silva, sociólogo e coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental, a opção feita 10 anos atrás pelo governo estadual foi de tratar a gestão da água como negócio. “Na época, a justificativa foi de que era preciso captar recursos em agências financeiras e bancos internacionais. Aderir à bolsa daria segurança aos que emprestassem dinheiro à Sabesp”, explica.

“Uma empresa pública com gestão privada”. Assim o sociólogo define a Sabesp, desde que passou a operar segundo a lógica de ampliação do lucro e de distribuição dos dividendos aos acionistas.

O principal problema, na avaliação de Silva, é a absoluta falta de transparência no modelo de gestão vigente. “Ainda que a quantidade de recursos investidos seja significativa — cerca de R$ 2 bilhões anuais -, não se tem a menor ideia de como é empregado. Os relatórios dizem apenas se foram feitos na região metropolitana, no interior ou no litoral, sem maiores detalhes, sendo que dentro desse valor podem estar embutidos, por exemplo, pagamentos a empresas terceirizadas que prestam serviço de má qualidade. A crise prova que os investimentos da Sabesp nos últimos anos podem ter sido péssimos”.

Ele repudia a postura de Geraldo Alckmin em não reconhecer publicamente a dimensão da crise e a responsabilidade que cabe à sua gestão, mesmo depois de pedir R$ 3,5 bilhões ao governo federal para bancar um pacote de medidas emergenciais. “Alckmin insiste em negar que há redução da pressão da água durante certos períodos do dia, sendo que boa parte da população das periferias de São Paulo enfrenta o problema quase que diariamente. O governo poderia optar por uma política transparente, informando o cidadão das faixas de horário de racionamento a fim de reduzir, inclusive, o desperdício”.

“Uma marca de cerveja nunca dirá ao seu consumidor ‘não compre cerveja’. É essa regra de mercado que a Sabesp tem seguido, mas seu produto é um serviço público, direito de todos”, afirma Edson Aparecido da Silva

 

Estoque de bebidas em Itu, interior de São Paulo. A cidade abriga uma das maiores indústrias de bebidas do país, apesar do racionamento e da falta de água constante para população. Foto: Mídia NINJA

 

Os números da Sabesp: declínio iminente?

O estatuto da Sabesp prevê que os acionistas podem receber até 25% do lucro líquido anual da empresa, mas desde a aprovação da regulamentação, o índice nunca foi menor que 26,1%. Em 2003, por exemplo, logo após a vitória de Geraldo Alckmin nas urnas de São Paulo, a porção que morreu nas mãos do capital privado atingiu obscenos 60,5% do montante total. Estima-se, ainda, que um terço do lucro líquido total da Sabesp já foi repassado aos acionistas, o que significa aproximadamente R$ 4,13 bilhões — o dobro do que a Sabesp investe anualmente em saneamento básico, segundo os cálculos do Jornal GGN

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente (Sintaema) entre 1988 e 1994 e atual vice-presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Nivaldo Santana ressalta que a antes vigorosa taxa de lucro da Sabesp já tem acusado o golpe da crise: “A diminuição da receita tarifária, por conta da menor oferta de água, faz com que a empresa torne-se pouco atraente para os acionistas, até porque o investidor de Nova Iorque, por exemplo, não está preocupado se falta água para a população de São Paulo, mas sim com o retorno de seu investimento. Por isso, a tendência é que a queda nos números se acentue cada vez mais”.

Segundo ele, “o que se vê na Sabesp é uma administração privatista, que segue a lógica privada mesmo tendo uma gestão, ao menos em tese, mista”. “No curto prazo, a aprovação do PL 410/2003 visava fazer caixa para a Sabesp, mas a longo prazo, é parte de um projeto de redução do papel do Estado nos serviços públicos”, assinala.

Por fim, Santana destaca o fator ‘mídia’ como um grande empecilho para a discussão do problema: os grandes meios de comunicação não abordam a dimensão política da crise, em sua opinião, “dando enfoque excessivo ao problema da seca, ao fenômeno natural, como se nos restasse apenas torcer para que chova muito”. Para ele, “trata-se de uma cortina de fumaça sobre os investimentos insuficientes e ruins feitos pela Sabesp, poupando o governo estadual de críticas por parte da opinião pública”.