Repleto de episódios absurdos e surreais, o episódio que culminou no impeachment da presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff virou obra de cinema e está em cartaz, no país, desde o dia 17 de maio. Trata-se do documentário O Processo, dirigido por Maria Augusta Ramos. A cineasta esteve no Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé nesta terça-feira (12) e teve a oportunidade de dialogar sobre o filme com o público presente.
Por Felipe Bianchi
“Um grupo de amigos juristas e progressistas me estimularam a filmar o que estava acontecendo no Planalto. Fui para Brasília – onde nasci e fui criada – de repente, faltando oito dias para a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, registrar o que estava ocorrendo”, conta a cineasta.
Com o plano inicial de passar duas semanas na capital federal, Guta Ramos acabou prolongando a visita. Esperançosa de que o Parlamento pudesse rechaçar a admissibilidade da denúncia contra Dilma Rousseff, a cineasta relata ter se dado conta, após aquela votação, de que dali poderia sair um enredo de grandes dimensões.
“Sabemos que aconteceram mil e um fatos na trajetória do impeachment, que podem ser abordados de diversas maneiras”, diz Guta. “Eu optei por focar no processo jurídico e político, no ‘teatro’ da Justiça e da política”, argumenta. Ela deixa claro: o termo teatro, aqui, não é empregado em um sentido pejorativo.
A perspectiva escolhida pela cineasta não foi ao acaso, mas sim uma sequência lógica do trabalho que desenvolve no cinema há anos. “Todos os documentários que fiz lidam com o conceito de Justiça, tanto do ponto de vista dos operadores da lei, quanto do ponto de vista da comunidade e dos cidadãos, das relações que se dão através do ‘teatro’ da Justiça”, conta Guta. Dentre os trabalhos citados por ela estão o filme Justiça (2004), sobre varas criminais do Rio de Janeiro; Juízo (2008), sobre menores infratores; e Morro dos Prazeres (2013), que retrata a ocupação de uma Unidade de Polícial Pacificadora (UPP) na comunidade de Santa Teresa, também no Rio.
“Como sempre em meu trabalho, não uso entrevistas e nem comentários. É assim que faço documentário. Proponho a descoberta de um universo através de personagens e protagonistas”, explica Guta Ramos. Segundo ela, os personagens da obra são pessoas reais que se tornam protagonistas, como Gleisi Hoffmann, Janaína Paschoal, José Eduardo Cardozo… “Somos guiados através desse universo por esses protagonistas. Chamo de cinema reflexivo”, sublinha.
Não é que o cinema seja isento, pondera a cineasta. “Não existe cinema, nem jornalismo e nem fotografia isentos”, já que sempre há um conjunto de valores e ideias embutidos, mas no caso do cinema reflexivo, Guta aposta que o filme vá além de sua visão como indivíduo. “Por paradoxal que possa parecer, eu sei que os espectadores verão coisas que eu jamais imaginaria. Mas claro que cada corte é uma escolha, cada fala é uma escolha, tudo é intencional”.
Para se ter ideia, O Processo foi filmado com apenas uma câmera, com exceção das imagens feitas no Plenário da Câmara, quando foram utilizadas duas câmeras. A cineasta trabalhou com cerca de 450 horas de filmagem para chegar ao resultado final.
Reação da mídia e prêmios internacionais
Ao contrário do que parte da esquerda brasileira pensa, Guta Ramos considera ser uma ilusão achar que a opinião pública internacional tem clareza do golpe em curso no Brasil. De acordo com a cineasta, a maioria das pessoas ficam boquiabertas com a dimensão do que ocorreu. “Tem, sim, gente lá fora denunciando, mas boa parte da opinião pública acha que foi um simples processo de impeachment. As pessoas ficam completamente surpresas”, diz.
Na avaliação dela, a reação das pessoas no exterior é diferente da nossa pelo fato de não terem vivido de forma tão intensa esse processo todo. “Nós tivemos uma relação muito emocional. As pessoas choram, interagem, batem palma”, diz. Mas no exterior, revela, tem sido comum momentos de aplausos.
O filme foi aclamado no consagrado Festival de Berlim, além de ter conquistado o prêmio de melhor longa-metragem no Festival Documenta Madri, na Espanha, e escolhido como melhor longa-metragem tanto pelo público quanto pelo júri do festival IndieLisboa, em Portugal, além de aplausos na Suíça e no Canadá. “As pessoas podem não ter vivido isso tudo, mas compreendem muito bem o que está sendo retratado, o que se passou, quem é quem na história”.
Com forte teor kafkiano, na opinião da própria diretora, a identificação do público estrangeiro com O Processo se dá, também, pela universalidade do que ela chama “teatro” da política: “Existem Janaínas Paschoais no Brasil, mas existem Trumps lá fora. Existe uma extrema-direita em ascensão. Fui exibir o filme na França e havia uma greve gigantesca contra a reforma trabalhista de Emmanuel Macron. É um filme atual, que se relaciona com essa universalidade da política”.
O fato de ter recebido premiações internacionais, na visão de Guta Ramos, mostra que o filme não é panfletário, mas um filme bom como cinema. “Não é um filme feito só para denunciar, mas para retratar e refletir sobre o tema”, diz.
Sobre a crítica feita pela mídia tradicional brasileira, um dos principais formuladores do golpe contra Dilma Rousseff, a cineasta diz que não está sendo tão negativo como alguns poderiam esperar. “A crítica até que foi boa. Algumas positivas, outras nem tanto. Cada um com sua opinião, eu respeito”, diz. “Mas teve gente que disse que o filme é monótono. Monótono pra quem? Teve, também, gente dizendo que o filme é tendencioso… Ora, e a mídia não é tendenciosa?”.
Quanto às acusações de que o filme teria lado ou levantar bandeiras, Guta esclarece que a mídia inteira estava presente na Câmara durante o impeachment, mas muitos parlamentares questionavam apenas a presença da equipe do documentário. “Fora as insinuações e suposições de que estávamos sendo pagos, estávamos enviesados… Eu pedi acesso aos bastidores da esquerda e da direita. A esquerda me deu acesso. Os assessores jurídicos das lideranças de esquerda já conheciam meus filmes”.
Por fim, a cineasta reforçou a importância de que o filme seja um sucesso nas salas de cinema como forma de fortalecer esse tipo de produção. “É importante que resgatemos espaços de cinema no Brasil. É difícil emplacar filmes no cinema. Há, inclusive, poucos cinemas no país. Quanto mais gente for ver, mais tempo o filme fica. O público tem que ir ao cinema e isso, por si só, tem muito peso político. É importante que haja esse esforço para que o filme seja assistido no cinema e, quando não for possível, que utilizemos a Internet e outras plataformas para disseminá-lo”.
Núcleo de Cultura
A atividade marcou o lançamento oficial do Núcleo de Cultura do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. A proposta do Núcleo é realizar debates, diálogos e atividades relacionadas ao mundo das artes em intersecção com temas como a mídia e a política.
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