Ganhou as manchetes dos portais e jornais a denúncia do Ministério Público Federal contra Glenn Greenwald, fundador do The Intercept Brasil, por ter supostamente auxiliado, incentivado e orientado a invasão de celulares de autoridades brasileiras por hackers. Como se sabe, o jornalista recebeu mensagens trocadas por procuradores da Lava Jato e as publicou em uma série de reportagens, em parceria com outros veículos de comunicação. A denúncia, que já seria abusiva, visto que o jornalista está protegido por liminar concedida em agosto passado pelo ministro Gilmar Mendes, parte de um entendimento completamente equivocado. Segundo a peça, por ter mantido contato com os hackers enquanto a invasão ocorria, Greenwald também seria responsável pelo suposto delito.
Por Pedro Estevam Serrano, na CartaCapital
Ganhou as manchetes dos portais e jornais a denúncia do Ministério Público Federal contra Glenn Greenwald, fundador do The Intercept Brasil, por ter supostamente auxiliado, incentivado e orientado a invasão de celulares de autoridades brasileiras por hackers. Como se sabe, o jornalista recebeu mensagens trocadas por procuradores da Lava Jato e as publicou em uma série de reportagens, em parceria com outros veículos de comunicação. A denúncia, que já seria abusiva, visto que o jornalista está protegido por liminar concedida em agosto passado pelo ministro Gilmar Mendes, parte de um entendimento completamente equivocado. Segundo a peça, por ter mantido contato com os hackers enquanto a invasão ocorria, Greenwald também seria responsável pelo suposto delito.
Poderia deslindar aqui os detalhes da denúncia, mas os professores Lenio Luiz Streck, Gilberto Morbach e Horacio Neiva já o fizeram, em excelente artigo publicado em um portal jurídico. Eles desmontam a tese do procurador Wellington de Oliveira de que diálogos encontrados em investigação de um dos hackers revelam o envolvimento de Greenwald na invasão. Ao contrário, os diálogos anexados à denúncia evidenciam que o jornalista teve tão somente a intenção de proteger o sigilo de sua fonte e de preservar os conteúdos já em sua posse, sem qualquer participação na interceptação das mensagens.
Em uma das conversas obtidas pelo MPF, o jornalista diz ao hacker que não poderia aconselhá-lo sobre fazer ou não download de informações que ainda não haviam sido baixadas. O próprio procurador, aliás, menciona na denúncia que Greenwald não o incentivou, o que contradiz a razão apontada para incriminar o jornalista.
O fato de Greenwald ter mantido contato com os hackers no processo de obtenção das mensagens de forma alguma caracteriza crime. Não é relevante se a informação foi entregue ao jornalista neste ou naquele momento, pois ela só é entregue depois de obtida pelo hacker. Pela lógica do procurador, todo jornalista que obtém uma informação sigilosa de um inquérito em andamento cometeria crime, já que o vazamento teria ocorrido antes de o inquérito ser encerrado. Vale destacar que a maioria dos vazamentos de informações para a imprensa nos últimos anos, inclusive no próprio espetáculo montado pela Operação Lava Jato, ocorreu ainda no intercorrer das investigações.
O procurador cita a proteção ao sigilo da fonte como garantia constitucional, mas diz ser “diferente a situação em que o ‘jornalista’ recebe material ilícito enquanto a situação delituosa ocor- re e, tendo ciência de que a conduta criminosa ainda persiste, mantém contato com os agentes infratores e ainda garante que os criminosos serão por ele ‘protegidos’, indicando ações para dificultar as investigações e reduzir a possibilidade de responsabilização penal”. Ora, nos parece óbvio que Greenwald não tinha nenhum poder para interromper qualquer ciclo criminoso que estivesse eventualmente ocorrendo. Tampouco havia uma relação de comando e de subordinação entre o jornalista e os hackers, o que fica claro nas conversas anexadas à denúncia.
O relatório da própria Polícia Federal diz não ter sido possível identificar a participação de Greenwald nos crimes. Portanto, a hipótese acusatória é absolutamente fantasiosa. Estabelecer processos penais com base em fatos imaginados é uma das práticas que tem caracterizado os chamados “processos penais de exceção”, expressão cunhada pelo professor Fernando Hideo Lacerda, e que aponto há muitos anos como umas das principais categorias de medidas de exceção adotadas pelo autoritarismo líquido dos nossos dias. Assim tem sido em diversas situações que envolvem lideranças de esquerda, advogados e, agora, jornalistas, ou seja, todos aqueles que contestam e denunciam irregularidades.
O processo penal de exceção tem sido utilizado como instrumento para silenciar a crítica. Como mostro em meu livro Autoritarismo e Golpes na América Latina, o sistema de justiça é em grande parte o legitimador e em grande parte o agente, o soberano, das medidas de exceção praticadas no interior das rotinas democráticas.
A democracia brasileira tem sofrido diversos ataques neste último período, dos quais a eleição de um presidente autoritário certamente foi dos mais contundentes. No caso de Glenn Greenwald, houve clara intenção de silenciá-lo por meio de uma medida de persecução com roupagem de processo penal comum. Some-se a essa arbitrariedade o agravante de que não apenas a pessoa dele foi atingida, mas a própria liberdade de imprensa e de expressão. Criminalizar a atividade jornalística e suas prerrogativas constitucionais é um grave perigo para a democracia.