5 de dezembro de 2024

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Evitar a destruição do serviço público no Brasil

Apresentada como reforma administrativa, Proposta de Emenda à Constituição parte de suposições equivocadas. Assim, abre espaço para privatizações, desvios e corrupção, em prejuízo à sociedade.  

Enviada pelo Executivo ao Congresso Nacional em setembro último e em tramitação desde 9 de junho último em Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020 representa, na análise de especialistas e dirigentes sindicais, o desmonte do serviço público no País, com impactos substanciais sobre a vida dos brasileiros.

A PEC em questão “altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”. A Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) e as entidades dos trabalhadores do setor denunciam que o governo decretou sigilo dos documentos técnicos e legais que fundamentariam a medida até depois de sua votação no Legislativo.

Por Soraya Misleh, no SEESP

Toninho do Diap: PEC é inoportuna, desnecessária e não urgente. Foto: Beatriz Arruda/Acervo SEESPPara Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho, diretor de documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o governo parte de três suposições equivocadas para seu envio ao Congresso: “a primeira é que o setor privado é superior ao Estado na prestação de serviços; a segunda, que a administração pública é ineficiente e corrupta por natureza; e a terceira, que o servidor público ganha bem e trabalha pouco”.

Sob essa visão distorcida, os objetivos alegados são “cortar despesas obrigatórias com salários para abrir espaço a investimentos, modernizar a administração pública e supostamente acabar com privilégios”. Contraditoriamente, como informa ele, deixa de fora os que recebem salário superior ao teto, como militares, políticos e magistrados.

O diretor do Diap é categórico: “Não atende nenhum desses objetivos. Já há contenção de despesas e redução da participação no Orçamento dos mais pobres com as emendas constitucionais 95 [relativa ao teto de gastos sociais], 103 [reforma da Previdência] e 109 [emergencial, dificultando a contratação de servidores]”. Ademais, detalha ele, a Lei Complementar 173/2020 já congela o reajuste do servidor até dezembro próximo. A PEC seria a cereja do bolo para o desmonte em curso, portanto. “É inoportuna, desnecessária e não urgente. A prioridade do País é enfrentar a pandemia”, destaca. Ao que o serviço público é mais necessário do que nunca.

Dívida pública é a vilã

Em carta que enviou a parlamentares ainda em fevereiro último, a Auditoria Cidadã da Dívida (ACD) informa que, ao alegar excesso de despesas de pessoal, com elevação de 145% em 12 anos, o governo erra ao apresentar valores nominais em série, como se a inflação tivesse sido nula neste período. “Essa distorção induz a grave erro quanto à evolução dos gastos com os servidores”. Como informa, não houve aumento, mas queda de 4,54% para 4,34% do PIB.

O principal gasto hoje, segundo a ACD, é com o pagamento da dívida pública: corresponde a 53,92% do total previsto no Orçamento para 2021. São R$ 2,2 trilhões de juros e amortizações, omitidos na justificativa para a PEC. A Previdência Social representa 19,46% e todas as demais despesas somam 26,62%.

 

O funcionalismo e a sociedade

Hoje, segundo João Domingos, presidente da Confederação dos Serviços Públicos do Brasil (CSPB), são cerca de 11 milhões de trabalhadores nas três esferas de governo´. Conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) relativos a 2019 e disponíveis no Atlas do Estado Brasileiro, a maioria (6,51 milhões) junto às administrações municipais, cuja média salarial é de R$ 3 mil por mês. No âmbito estadual, encontram-se 3,45 milhões, que recebem em média R$ 5,24 mil. E, por fim, 938,71 mil no serviço federal. Entre os últimos, segundo o mesmo levantamento, estão aqueles que recebem as melhores remunerações – com média salarial de R$ 10,23 mil –, em atribuições que Domingos classifica como de alta complexidade.

Levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) demonstra que quase 40% de todos os servidores no Brasil atuam na saúde e na educação. Em nota técnica, o órgão aponta ainda que “as universidades públicas (federais ou estaduais) respondem por mais de 95% da produção científica no Brasil. São pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento, como medicina, agricultura, física e ciências do espaço, engenharias, ciências humanas e sociais, que buscam compreender e solucionar problemas cotidianos”.

Quanto à saúde, o Dieese observa que o atendimento alcança não apenas os que precisam de hospitais e postos públicos, mas inclusive os que têm convênios médicos: “Ações de vigilância sanitária e epidemiológica, saneamento básico, desenvolvimento científico e tecnológico na área e até mesmo fiscalização e inspeção de alimentos e de alguns medicamentos são atribuições do SUS [Sistema Único de Saúde].”

Em relação ao trabalho, continua, “há políticas públicas bastante conhecidas, como o seguro-desemprego, a intermediação de mão de obra e as políticas de qualificação profissional. Além dessas, o Estado, por meio do investimento público, atua como fomentador da atividade econômica, exercendo papel crucial na geração de empregos. Essas e tantas outras políticas públicas, para existirem concretamente, são operacionalizadas pelo Estado por meio de seus servidores”.

Não obstante, o Brasil, como pontua Toninho, situa-se “abaixo da média mundial” quando se trata de funcionalismo público. Em publicação intitulada “Reforma administrativa do governo federal: contornos, mitos e alternativas”, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público explicita essa realidade: “Os empregados no setor público brasileiro, novamente nos três níveis da Federação, somaram 12,1% da população ocupada contra uma média de 21,3% na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico].” Países como Dinamarca e Noruega chegam a mais de 34%.

Na contramão da falácia de Estado inchado, para a melhoria da qualidade do serviço público, Domingos avalia que seria preciso dobrar o índice atual. É o que vem defendendo o SEESP em relação aos engenheiros que atuam na Prefeitura de São Paulo. Para dar conta da complexidade da megalópole e atender adequadamente seus 12 milhões de habitantes, como indica reportagem no JE 540, a Capital contava em fevereiro último apenas 583 profissionais da categoria, entre os quais 129 agrônomos, de acordo com dados oficiais. Quadro que vem minguando ano a ano, sem a reposição adequada. No município, há, contudo, 568 profissionais da área tecnológica, entre os quais 352 engenheiros, aprovados em concurso público, mas somente em julho último o prefeito Ricardo Nunes autorizou a nomeação de 36.

Domingos pontua: “A PEC 32 tem o nome bonito de reforma administrativa, mas não o merece. É uma peça político-ideológica, mecanismo de ajuste fiscal que está praticamente acabando com o Estado em sua dimensão de serviço público, uma esperança de vida para milhões de brasileiros.”

O filé para o mercado

Um dos instrumentos nessa direção que a PEC 32/2020 institui é o princípio da subsidiariedade, que formaliza os chamados instrumentos de cooperação. A partir disso, como aponta Domingos, o setor privado prestaria os serviços “onde o grande capital tivesse interesse”, deixando as áreas não atendidas a cargo do Estado. “É um conjunto de erros técnicos crassos, falácias e mentiras grosseiras, em que se universalizam os prejuízos.”

Murilo Pinheiro: Estado atuar como linha auxiliar vai na contramão do que País precisa. Foto: Beatriz Arruda/Acervo SEESPPara Murilo Pinheiro, presidente do SEESP, o fato de o Estado passar a atuar apenas como linha auxiliar subverte seu papel “e vai na contramão das evidências verificadas neste momento no País”. Segundo alerta ele, isso afetaria sobremaneira a qualidade do serviço público – absolutamente necessário, como a pandemia escancarou.

Implicaria ainda o enxugamento do já insuficiente quadro efetivo das administrações municipais, estaduais e federal, com impacto sobre a arrecadação da Previdência Social, principal mecanismo de distribuição de renda no País. “Recrudesceria esse modelo, obrigando a aprofundamento da reforma”, atesta Domingos.

Na prática, afirma Toninho, é a privatização dos serviços públicos, o que resultará na “volta do patrimonialismo”. Isso porque a PEC 32/2020 cria regra para a substituição de servidores públicos por pessoas de fora da estrutura do Estado que ocupem cargos de livre provimento, denominados na proposta como “liderança e assessoramento”. Alcança inclusive cargos estratégicos, gerenciais e técnicos.

“PEC da Rachadinha”

“Não haveria concursos públicos para esses segmentos. Todos os cargos seriam ocupados a partir de critérios políticos, por indicação. Isso não só não contribui para a melhoria do serviço público como abre espaço para rachadinhas”, salienta. Ou seja, repasse por um prestador de serviços contratado de parte de sua remuneração ao político ou assessor.

Em sua Nota Técnica 69/2021, a Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal atesta: “Nesse aspecto, a PEC 32/2020 pode ser vista como a constitucionalização do conceito de ‘ministério de porteira fechada’, no qual um grupo recebe poder absoluto para gerir determinado órgão, podendo tanto criar um ordenamento jurídico todo próprio quanto dispor dos recursos públicos sem prestação de contas ao Parlamento e à sociedade, constituindo assim um cenário extremo de privatização da coisa pública. […] Destaque-se que a própria PEC – para nosso espanto – reconhece que a ocupação desses cargos possui caráter político-partidário, vez que não os protege de desligamento por essa motivação (art. 41-A, parágrafo único).”

A nota acrescenta que a “PEC 32/2020, assim, permitirá um nível inédito de aparelhamento: não apenas os postos de comando e assessoramento, mas inclusive cargos de execução, poderão ser livremente indicados. Abre-se a porta, assim, para uma completa captura do Estado, envolvendo toda a estrutura hierárquica, até o nível operacional, com a substituição de servidores concursados por pessoas sem vínculo com a administração”.

Outra modificação trazida pela proposta do Executivo nesse sentido, de acordo ainda com o documento, “é a limitação do instituto da estabilidade no cargo público, ao qual somente terão direito os servidores ocupantes de ‘cargos típicos de Estado’ (conceito jurídico introduzido pela PEC, porém não definido). […]. Uma força de trabalho receosa da perda de seus empregos (que estará em situação próxima à dos atuais cargos em comissão sem vínculo) certamente estará em menor condição de opor resistência a comandos que visem a satisfação de interesses privados”. 

Diante de duas alterações centrais – novas possibilidades para os contratos de gestão, permitindo a criação de procedimentos próprios para contratação de bens e serviços; e eliminação das restrições atualmente existentes à ocupação de cargos em comissão e funções de confiança –, a consultoria do Senado aponta que o aumento da corrupção na administração pública seria o primeiro impacto fiscal com sua aprovação. Esse efeito é considerado na nota técnica como “extremamente preocupante”: “A título de exemplo, estudo da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] estimou o custo médio anual da corrupção no Brasil entre 1,38% e 2,3% do PIB. Considerando o PIB de 2019 (R$ 7,4 trilhões), esse custo anual ficaria entre R$ 102,1 bilhões e R$ 170,2 bilhões. Dada essa magnitude, mesmo incrementos percentualmente pequenos já teriam expressivo impacto fiscal.”

Segundo a nota técnica, com a PEC, “a expansão mínima prevista é de em torno de 207,3 mil postos (156.028 funções de confiança + 51,3 mil cargos em comissão hoje ocupados por servidores de carreira)”. O que equivaleria a um aumento de “pelo menos 29% no montante de postos que podem ser ocupados por pessoas sem vínculo”.

Carlos Eduardo de Lacerda e Silva, em obra: “Ter estabilidade nos permite discordar de determinação incorreta.” Foto: Acervo pessoalO diretor do SEESP junto à Prefeitura de São Paulo e engenheiro na Supervisão Técnica de Manutenção da Subprefeitura Mooca, Carlos Eduardo de Lacerda e Silva, lembra que “tomamos decisões quase todos os dias. Ser engenheiro estatutário e ter estabilidade nos permite discordar de uma determinação incorreta da administração”. E corrobora: “A pessoa que entra indicada por um político cede a todo tipo de pressão, irregularidade, porque precisa do emprego. Isso já tem sido cada vez mais rotineiro, com vários cargos de chefia de livre provimento. A PEC agrava muitíssimo essa situação. O serviço público será gravemente prejudicado. A população vai sofrer com serviços irregulares, feitos de forma indevida, mal realizados.”

Segundo ele, ainda, a estabilidade – ameaçada pela proposta do Executivo – garante que o profissional não apenas possa decidir pela melhor técnica como tenha conhecimento da legislação, dos problemas e necessidades da cidade. “Quem não faz carreira não conhece isso.” Lacerda completa: “Quando um servidor público comete um erro, tem muito mais a perder. Responde com seu cargo e vida profissional.”

Domingos ilustra: “Crime ambiental foi evitado porque um funcionário de carreira denunciou. E talvez o desvio na compra de vacinas, porque um servidor fez o mesmo.” Ele enfatiza ainda que a Lei 8.112/1990 já apresenta mecanismos para garantir eficiência e coibir eventuais irregularidades no serviço público. Portanto, sublinha, os argumentos contidos na PEC “não resistem a um debate minimamente qualificado”.

 

Mobilização

Parte da mobilização que vem sendo feita pelas organizações sindicais e da sociedade civil como um todo visa conscientizar a população brasileira em relação à importância do serviço público e, consequentemente, os impactos nefastos da PEC 32.

João Domingos: luta por mais e melhores serviços públicos no Brasil. Foto: Divulgação CSPBÉ o que vem sendo feito, por exemplo, pelo movimento “Basta!”, chamado pela CSPB e que reúne 18 confederações de trabalhadores, entre as quais quatro do setor público, as três frentes parlamentares sobre o tema, conselhos profissionais, todas as centrais, além de centenas de federações e milhares de sindicatos. Agora seu foco é a realização de audiências públicas nas Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas.

Em 29 e 30 de julho aconteceu o Encontro Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadores do Serviço Público, antecedido por plenárias e lives. No dia 3 de agosto, haverá, ainda como parte dessa mobilização, um ato público em Brasília (DF) contra a PEC 32.

“O momento é de auxílio emergencial, vacina, luta por emprego. Muitos congressistas entendem isso. Os Estados Unidos e a Inglaterra ampliaram a participação do Estado e estão valorizando seus funcionários”, observa, indicando que a proposta do Executivo vai na contramão do que vem sendo feito mundo afora.

Para Toninho, positivo é que o setor está melhor organizado desta vez. Assim, acredita que “a tendência é que a PEC não conclua seu ciclo. Será de tal modo alterada na Câmara que não vai cumprir o objetivo de entrega ao setor privado e se tornará desinteressante para o governo. Daí, o Senado vai sentar em cima”.

Imagens do destaque – Serviços públicos, da esquerda para a direita: Saúde: Rovena Rosa-Agência Brasil / Educação: Jonas Pereira-Prefeitura Municipal de Anchieta (ES) / Engenharia: Acervo pessoal Carlos Eduardo de Lacerda e Silva, responsável pela obra na capital paulista. / Arte: Eliel Almeida