21 de novembro de 2024

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“Ditadura perfeita” e “romance distópico”: para rapper argentino, Milei coloca a liberdade em risco no país

Daniel Devita relembra artistas históricos que pediram para Milei parar de utilizar suas músicas, crítica o papel jogado pela mídia dominante no país e alerta: “Liberdade de expressão corre sério risco na eleição do domingo (19)”

Por Felipe Bianchi, de Buenos Aires-Argentina, para a ComunicaSul*
Imagens: Caio Teixeira, Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo

Romances distópicos nos quais se instalam ditaduras perfeitas, por meio da distorção da realidade e convencendo as pessoas de que servir é ser livre e de que o mal é o que as salvará. Este é o cenário desenhado pelo escritor e cantor Daniel Devita para explicar a Argentina sob a ótica de Javier Milei, que concorre à presidência no segundo turno da eleição agendada para o domingo (19).

“Apesar de eles dizerem que defendem a liberdade, é justamente a liberdade que está em xeque nesta eleição”, afirma Devita. Se vencer, projeta o rapper também conhecido como “Doble D”, “eles virão por nossos direitos e por nossas liberdades”.

A disputa nas urnas colocará frente a frente dois projetos antagônicos. De um lado, o candidato Sergio Massa propõe a centralidade do Estado para garantir direitos e recuperar o país com desenvolvimento, gerando emprego e renda. De outro, Javier Milei e seu “Plano Motosserra”, que defende medidas como a extinção do Banco Central, a adoção do dólar estadunidense como moeda oficial e a ruptura das relações do Estado com os principais parceiros econômicos da Argentina – China e Brasil – por divergências ideológicas.

Conhecido por suas letras de forte conteúdo político e que abordam as lutas populares não apenas em seu país, mas em toda a América Latina, o artista de 32 anos, residente na cidade de Ituzaingó, zona oeste da região metropolitana de Buenos Aires, concedeu uma entrevista exclusiva aos jornalistas da ComunicaSul na quarta-feira (15).

Na conversa, Devita reflete sobre o ódio contra a arte e a cultura promovido por figuras como Milei, além de analisar o papel das mídias alternativas em contraponto ao “pensamento único” das grandes corporações da mídia privada na região.

“Se Milei definiu um inimigo número um, são justamente os artistas”, dispara. “É muito significativo que ele tenha usado, em alguns de seus atos, canções da La Renga, uma banda de rock muito importante na Argentina. Quando La Renga divulga um comunicado pedindo que deixe de usar suas músicas porque suas ideias não representam em nada o espírito do rock argentino, passa a utilizar músicas de La Bersuit Vergarabat, outro grupo lendário. E esse grupo também divulga comunicado dizendo a Milei para parar de usar as músicas. Tudo o que ele queria se apropriar foi repudiado”.

Além do histórico de luta do rock no país, cujo cenário sofreu dura perseguição durante a ditadura que sangrou a nação entre 1976 e 1983, a rejeição à tentativa de Milei se apropriar da música fez com que quase todo o mundo artístico virasse alvo permanente por parte de seus seguidores.

“Todos os artistas que são contra as suas ideias são tachados como ‘mamateiros’, que dependem do Estado para financiar suas carreiras”, explica, descrevendo um cenário de inevitável comparação com o discurso bolsonarista no Brasil.

“Quando demonizam expressões artísticas, eles revelam quais são seus pontos fracos”, opina Devita. “Temos muitos exemplos de experiências, na humanidade, daqueles que são contra os livros, contra a música, contra o cinema. E sempre acabou do mesmo jeito”, sugere.

Qual a relação desse tipo de comportamento com a política? Para o rapper, o cenário caótico da crise econômica oriunda de uma política de submissão ao Fundo Monetário Internacional (FMI) gera esse tipo de reação. “Nesse contexto, os artistas estão desempenhand um papel muito importante”, pontua. “Mesmo artistas que não costumam se expressar tanto têm compreendido o que está em jogo e passaram a levantar suas vozes para denunciar o que está acontecendo”.

Confira o vídeo de Daniel Devita cantando a faixa “Tu ley” durante a entrevista. A letra é uma crítica a Javier Milei e sua estratégia comunicacional que seduz parcelas da juventude desencantadas com a política.

O papel das mídias alternativas

Além de seu trabalho musical, Daniel Devita produz lives várias vezes na semana em seu canal no YouTube. Ele utiliza o espaço para debater o noticiário político nacional e internacional. O trabalho complementar aponta para a sua convicção de que a arte e a comunicação popular funcionam como antídotos contra o discurso obscurantista de figuras como Milei.

“A partir das últimas experiências que tivemos na América Latina, com perseguição judicial e demonização de líderes populares, com bloqueios econômicos, está claro que é insuficiente confiar em projetos midiáticos de conjuntura. Quando a direita volta ao poder, não sobra nada dessas iniciativas”, argumenta. “O que sobra são justamente os telefones, as câmeras, os espaços alternativos que foram fundamentais para que muita gente pudesse descobrir as mentiras, a campanha de manipulação, as prisões, as perseguições que escondiam”.

“Estou surpreso com a gratidão de muita gente quando dizem ‘eu entendia tudo ao contrário, eu engoli todo o discurso que me foi imposto pela mídia tradicional e graças à comunicação alternativa, graças à possibilidade de escolher e optar por outros espaços comunicacionais, posso compreender melhor onde estou’”, compartilha.

A tarefa, define Devita, é aprofundar este processo: “Vimos tentativas, a nível regional, de enfrentar o poder dos meios de comunicação hegemônicos e combater a concentração midiática, mas ainda não tivemos sucesso”. O que está dando resultados, na visão do artista argentino, é “multiplicar e dar força a essas ferramentas alternativas que podem fazer o contraponto”.

Em condições normais de temperatura e democracia, Devita avalia que já é difícil romper esse bloqueio. “Mesmo assim, há muitas pessoas que nos escolhem. Não temos tantos refletores, nem um estúdio tão grande, nem 14 câmeras, mas com os poucos recursos que temos, as pessoas às vezes se encontram representadas com o que fazemos. Encontram um lugar para expressar suas preocupações, para obter informações desde outro ponto de vista e entender o lugar em que estamos localizados no mundo”.

Democracia ou barbárie medieval

De volta ao debate eleitoral, Devita é contundente: “A liberdade está em jogo”. “Há um candidato presidencial que propõe um alinhamento geopolítico com os inimigos históricos da República Argentina e que promete exterminar os ‘esquerdistas de merda’ [Milei repete à exaustão a expressão zurdos de mierda], que parece mais uma narrativa de filmes datados, algo totalmente anacrônico”, pontua.

“Quando vemos quem são os tais ‘esquerdistas de merda’, nos damos conta de que serve para qualquer um que pensa diferente deles naquele momento, e à medida em que mudam de opinião, ser um ‘esquerdista de merda’ pode mudar de significado”, diz. “Se já praticam ameaças e violência sem o poder, imaginem como seria caso chegassem à presidência. Um pesadelo. Nunca estivemos tão perto de um retorno a essas expressões autoritárias. E é por isso que neste domingo, defender a democracia, que foi restaurada há exatos 40 anos, é o principal dever dos argentinos que vão às urnas”

Confira o videoclipe da faixa “Tu ley”:

* A reprodução deste conteúdo é livre e gratuita, desde que citadas a fonte, a publicação original no Opera Mundi e a lista de entidades apoiadoras da cobertura.

A Agência ComunicaSul está cobrindo as eleições de 2023 na Argentina graças ao apoio das seguintes entidades: jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul, Barão de Itararé, Portal Vermelho, Correio da Cidadania, Agência Saiba Mais, Agência Sindical, Viomundo, Fórum 21, Instituto Cultiva, Asociación Judicial Bonaerense, Unión de Personal Superior y Profesional de Empresas Aerocomerciales (UPSA), Sol y Sombra Bar, Federação dos Trabalhadores em Instituições Financeiras do RS (Fetrafi-RS); Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe-RS); Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos; Federação dos Comerciários de Santa Catarina; Confederação Equatoriana de Organizações Sindicais Livres (CEOSL); Sindicato dos Comerciários do Espírito Santo; Sindicato dos Hoteleiros do Amazonas; Sindicato dos Trabalhadores das Áreas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisa, e de Fundações Públicas do Rio Grande do Sul (Semapi-RS); Federação dos Empregados e Empregadas no Comércio e Serviços do Estado do Ceará (Fetrace); Federação dos Trabalhadores no Comércio e Serviços da CUT Rio Grande do Sul (Fetracs-RS); Intersindical, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Central Única dos Trabalhadores do Paraná (CUT-PR); Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP), Federação dos/as Trabalhadores/as em Empresas de Crédito do Paraná (FETEC-PR), Sindicato dos Trabalhadores em Água, Resíduos e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema-SP); Sindicato dos Trabalhadores em Água, Resíduos e Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina  (Sintaema-SC), Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada no Estado do Paraná (Sintrapav-PR), Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp Sudeste-Centro), Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo, Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal de Santa Catarina (Sintrajusc-SC); Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina (Sinjusc-SC), Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário Federal em Pernambuco (Sintrajuf-PE), mandatos populares do vereador Werner Rempel (PCdoB/Santa Maria-RS) e da deputada federal Juliana Cardoso (PT-SP) e dezenas de contribuições individuais.