4 de julho de 2024

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Estudo revela os desafios dos movimentos LGBTQIAPN+ pelo Brasil

Organizações não-governamentais LGBTQIAPN+ lançam, nesta quarta-feira (29), o “Projeto Pajubá: Transformando a Gramática Política”, uma pesquisa que mapeia o atual cenário do ativismo da comunidade nas cinco regiões do Brasil. Com entrevistas feitas com lideranças selecionadas de agrupamentos de todas as regiões, o estudo busca contribuir para a elaboração de políticas públicas especificamente direcionadas à necessidade de cada região do país.

Por Júlia Motta/Revista Fórum

No total, 88 entrevistas foram feitas com pessoas LGBTQIAPN+, que relataram os principais desafios enfrentados pelas ONGs, projetos e movimentos em sua região de atuação. Além disso, também citaram caminhos possíveis para combater esses problemas e a violência contra a comunidade.

O relatório foi elaborado pela Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), e teve coordenação de Renan Quinalha, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Abaixo, confira alguns dos resultados da pesquisa de acordo com cada região.

Região Norte

A Região Norte se destaca pelos alarmantes dados relativos à detecção de Aids nos estados, que servem como um importante indicador da realidade enfrentada pelas pessoas LGBTQIAPN+ nortistas. A região abrange quatro dos cinco estados com as maiores taxas de detecção da doença, conforme o ranking de casos por 100 mil habitantes. Liderando a lista, estão os estados de Roraima, com uma taxa de 34,5, seguido pelo Amazonas (32,3), Pará (26,3) e Amapá (25,0).

“Esses números são preocupantes e refletem desafios significativos enfrentados pela população, especialmente considerando que os índices de escolaridade e acesso à educação na região geralmente ficam abaixo da média nacional”, ressalta um trecho da pesquisa.

Em relação à violência contra a comunidade LGBTQIAPN+, os estados de Manaus e Belém, importantes centros urbanos da região, estão entre os dez municípios com os maiores registros de mortes violentas.

“De manhã, é rezar para voltar viva. E quando a gente vai chegar em casa? Respirar, Agradecer a Deus, porque foi mais um dia”, relata uma das entrevistadas, uma mulher negra e trans que representa a ONG GRETTA no Pará.

“Esses dados revelam não apenas questões de saúde pública, mas também desafios sociais e de segurança que demandam uma abordagem integrada por parte das políticas públicas, especialmente adaptadas às especificidades da região”, ressalta outro trecho da pesquisa.

O relatório ressalta que os movimentos LGBTQIAPN+ do Norte passaram por um intenso processo de apagamento. Historicamente, a trajetória do movimento esteve predominantemente associada à criação do grupo Somos, estabelecido na região Sudeste do país. No entanto, é na região Norte que se registra a mais antiga manifestação cultural e associação de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, conhecida como “Festa da Chiquita”. Este evento, de caráter estético-político, faz parte do circuito de festividades em torno do Círio de Nazaré, realizado em Belém, no Estado do Pará. Inicialmente concebida entre 1975 e 1976 como um bloco de carnaval, as “Filhas de Chiquita” se transformaram ao longo dos anos em uma expressiva alegoria de manifestações culturais e artísticas LGBTQIA+

Desafios

A falta de financiamento foi o principal desafio citado por todas as onze organizações entrevistadas. As ONGs afirmam que a falta de um espaço físico dificulta a promoção de articulações, reuniões, planejamento, capacitação e eventos para a população LGBTQIAPN+ do Norte. Mas para além disso, o espaço serviria também como um local de acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+ que são expulsas de suas casas devido à discriminação familiar.

Outras demandas citadas foram a falta oportunidades no mercado de trabalho, orientação e capacitação para gestão de organizações coletivas, construção de espaços seguros para sociabilidade LGBTQIA+, atendimento ambulatorial para pessoas trans e serviços de apoio psicológico.

O nosso grande sonho no Amapá é ter um dia nossa sede própria, garantindo o atendimento psicossocial e jurídico às pessoas que precisam. O acolhimento dessas pessoas. Nos procuram pra saber se a gente pode acolher, recebê-los, recebê-las. A gente não tem estrutura, a gente não tem como receber essas pessoas. (Homem cis, gay, Amapá).

A questão burocrática também foi outro desafio citado pelas organizações. Alguns entrevistados relataram ter pouca experiência com as diretrizes formais das organizações da sociedade civil, o que dificulta o processo de formalização e administração dessas entidades. Um dos pontos críticos mencionados é a participação em editais e ações estatais.

Região Sul

Diferente da Região Norte, o ativismo LGBTQIAPN+ na região Sul é ativo e diversificado, refletindo a pluralidade e as lutas por direitos da comunidade. De acordo com o relatório, as ONGs, coletivos e ativistas desempenham um papel fundamental na promoção da igualdade e na conscientização sobre questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero.

A Região possui uma história de ativismo LGBTQIAPN+ significativa, contando com líderes e grupos que lutam há anos por avanços nos direitos da comunidade. Além disso, o relatório ressalta que essas lideranças não contribuem somente para o avanço do ativismo na região, mas também causam um impacto nacional, contribuindo para a conscientização e a promoção da igualdade em todo o país.

Sua atuação tem sido fundamental para impulsionar debates, influenciar políticas públicas e promover mudanças sociais que visam garantir direitos e dignidade para a comunidade LGBTQIA+ em âmbito nacional.

Desafios

Porém, apesar de maior incidência que na Região Norte, o ativismo LGBTQIA+ do Sul também enfrenta a falta de recursos financeiros para promoção de atividades e projetos. A dependência de doações e financiamentos muitas vezes instáveis é um fato que dificulta o planejamento de longo prazo e a continuidade das ações.

Assim, as ONGs dependem de doações individuais, de fundações e financiamento de organizações governamentais, mas que muitas vezes não dão conta de suprir as necessidades do movimento.

A principal necessidade é o recurso financeiro. Porque a gente tendo isso, a gente consegue avançar. Vou te dizer que durante muito tempo o recurso era do nosso bolso. Dos seus associados, de quem tava ali, vamos fazer um projeto, a gente levanta o dinheiro para aquilo. E aí acaba a gente doando muito tempo da nossa vida pra isso. A gente não 23 amplia nossos projetos, não amplia a nossa incidência, porque não dá pra ficar no voluntariado. (Homem, gay, Santa Catarina).

Além disso, a rotatividade de pessoas dentro das organizações é outro importante obstáculo, pois a constante entrada e saída de membros afeta a coesão, o acúmulo das discussões e a eficácia do trabalho em equipe.

O conservadorismo também é outro desafio enfrentado pelos movimentos LGBTQIAPN+ do Sul. Essa realidade tem se refletido em políticas públicas, na cultura local e até mesmo em questões legislativas, criando um ambiente desafiador para o avanço dos direitos e da inclusão da comunidade LGBTQIA+ na região.

Um dos entrevistados, um homem pansexual de Santa Catarina, destacou que o estado é o que tem a maior concentração proporcionalmente de células neonazistas do Brasil. “Parece que a gente está no núcleo mais de extrema-direita do país, isso acaba sendo um grande empecilho na nossa sociedade”, disse.

Nordeste

O Nordeste se destaca por dois fatores: a presença de importantes organizações já consolidadas, como o Grupo Gay da Bahia e a ONG Gestos de Pernambuco, mas também por ser o estado mais perigoso para pessoas LGBTQIAPN+, segundo diagnóstico do próprio Grupo Gay da Bahia de 2023. A Região concentrou, naquele ano, 43,36% das mortes violentas.

Segundo um recente levantamento feito pelo Grupo de Trabalho de Memória e Verdade LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, cerca 200 entidades foram mapeadas no Nordeste, sendo Bahia e Pernambuco os dois estados com maior presença de organizações LGBTQIA+.

“De certo modo, a efervescência da luta coletiva organizada nesses estados pode ter como indicador o contexto violento em que as pessoas LGBTQIA+ estão expostas, o que impele as pessoas a se organizarem, tendo como objetivo comum a luta contra a discriminação e a violência LGBTfóbicas”, destaca o relatório.

Desafios

Entre os desafios enfrentados por movimentos LGBTQIAPN+ da Região Norte, estão a falta de captação de recursos e o engajamento das pessoas nas atividades e projetos de forma voluntária. Aliado a esses desafios, há também a questão territorial: organizações que residem fora das capitais sofrem ainda mais com essa questão do acesso a recursos.

O conservadorismo também se coloca como um desafio para as comunidades, o que influencia o agravamento da violência e impede que as organizações atuem em contextos escolares.

Sudeste

A Região Sudeste se caracteriza como, historicamente, a região central no contexto de articulações de ONGs LGBTQIA+. O Sudeste abriga diversas organizações de abrangência nacional, incluindo tanto organizações que se originaram localmente e se expandiram, quanto organizações de outras regiões que acabam por centralizar ali suas atividades.

Um exemplo é o SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual, fundado em 1978 e conhecido como uma das primeiras organizações brasileiras (se não a primeira) nesse recorte. O grande número de organizações LGBTQIAPN+ está atrelado à concentração histórica de universidades na região, de acordo com o relatório.

Desafios

O relatório destaca, de acordo com o relato das lideranças locais entrevistadas, que um grande desafio da Região Sudeste está na questão das desigualdades entre as cidades grandes e capitais e as cidades do interior nos estados da região. Assim, há um fomento muito maior ao ativismo LGBTQIAPN+ no primeiro grupo, enquanto nos municípios menores, não chega recursos nem iniciativas.

Esses contatos estão chegando só na cidade grande e não chega no interior, tá ligado? A visibilidade é sempre para a capital. Tanto que se for qualquer job [bico] que você for fazer, é sempre na capital. (…) Quando rola esse apoio [financeiro], não chega na gente. (transmasculino, branco, personal trainer, fundador de coletivo periférico no interior paulista).

Para os pesquisadores do relatório, o cenário da Região Sudeste mostra uma dinâmica marcada, de modo bastante evidente, da vitalidade do coronelismo nas relações regionais, imbricados na política institucional e no acesso a recursos. Isso inclui navegar por famílias que detém o poder simbólico e econômico da região desde os princípios da colonização, e de configurações econômicas onde há maior centralidade do agronegócio – o que, vale pontuar, centra o poder regional majoritariamente em uma população branca, cisgênera e (ao menos publicamente) heterossexual.

A pesquisa resume que, como um todo, os relatos das organizações do Sudeste apontam para dois movimentos importantes: primeiro, um mito sobre o Sudeste como um lugar de acesso a muitos recursos para todas as siglas do movimento social LGBTQIA+. Quanto ao segundo, as falas apontam que, os homens gays, em geral cisgêneros e brancos, são os que conseguem captar mais recursos por conhecerem os caminhos burocráticos e políticos necessários para alcançar tais recursos, assim como são os que dispõem de conhecimentos suficientes para a devida prestação de contas. “Neste sentido, a estrutura patriarcal e racista da sociedade em geral aparece também reproduzida na estrutura da comunidade LGBTQIA+”, afirmam os pesquisadores.

Centro-Oeste

A Região Centro-Oeste traz um contraste entre Brasília e outros estados do interior. Enquanto a capital possui maior apoio e recurso para realizar ações de ativismo LGBTQIAPN+, até com apoio de políticos, as organizações do interior lutam para manter vivas as pessoas da comunidade, oferecendo serviços básicos e essenciais como cesta básica e um espaço de moradia, mesmo quando não têm recursos para manter a organização.

Desafios

Um dos principais desafios enfrentados pelas ONGs LGBTQIAPN+ da Região Centro-Oeste é a forte presença de valores conservadores, intimamente relacionados ao agronegócio na lógica de perpetuação de um padrão cultural heteronormativo. O estado de Mato Grosso se destaca dentro desse cenário.

“No Centro-Oeste, essa violência assume contornos específicos influenciados por fatores sociais, culturais e políticos regionais. Há forte presença de valores morais conservadores. Crimes de ódio, incluindo agressões físicas e assassinatos são reportados com certa frequência, especialmente em áreas menos urbanizadas. A falta de políticas públicas inclusivas e a resistência de setores da sociedade em reconhecer e combater a discriminação contribuem para a perpetuação da violência”, diz um trecho do relatório.

As ONGs também destacam a violência contra indígenas LGBTQIAPN+, que enfrentam desafios articulados entre as violências ambientais e contra os direitos de suas comunidades. O relatório afirma que a região parece ter uma dificuldade adicional porque as pautas sempre parecem chegar mais tarde em relação ao restante do país.

Devido a esse cenário, os movimentos LGBTQIAPN+ do Centro-Oeste também enfrentam o desafio da falta de financiamento devido à visibilidade e ao reconhecimento limitados em uma disputa por potenciais financiadores. O relatório afirma que essa é uma realidade ainda pior para organizações menores e aquelas localizadas fora dos grandes centros urbanos.

Não tem recurso pra tudo. Nós do interior sofremos ainda, né? Vivemos a migalhas, né? Então, as ONGs LGBT, elas precisam ter mais visibilidade pra crescer também no interior, atingir aquelas pessoas que realmente precisa. (homem, gay, negro, Goiás).

Lançamento do relatório

O evento de lançamento do Projeto Pajubá acontece nesta quarta-feira, 29 de maio, no Sesc 24 de Maio, centro de São Paulo. Na ocasião, serão apresentados os resultados da pesquisa inédita, além de outras programações como debates e shows. Confira abaixo:

16:00 – Solenidade de Abertura
16:30 – Apresentação dos Dados, por Renan Quinalha (Unifesp) e equipe de pesquisadoras
18:00 – Debate, com a presença de organizações, movimentos sociais, governo e lideranças políticas. A mesa contará com a participação especial da Exma. Secretária Nacional LGBTQIA+, Symmy Larrat.
19:30 – Show de encerramento com a cantora Majur
Serviço

Lançamento do Projeto Pajubá

Data e horário: 29 de maio, de 16h às 20h30

Local: Sesc 24 de Maio (rua 24 de Maio, 109 – República. São Paulo)