17 de fevereiro de 2025

Search
Close this search box.

Deportações nos EUA: o novo capítulo do fascismo

Neste momento, milhões de pessoas estão com medo nos Estados Unidos. Pais não deixam seus filhos irem às escolas. Famílias permanecem em casa. Redes improvisadas de proteção surgem no desespero do momento. Qualquer vacilo – as crianças já sabem –, os agentes armados do departamento de Imigração e Alfândega dos EUA (US Immigration Customs Enforcement – ICE) baterão na porta. 

Tatiana Carlotti para o Barão de Itararé*

Não é exagero. Este é o clima na autointitulada “maior democracia do mundo” desde domingo (26), quando o presidente Donald Trump deu início a uma blitz nacional que encarcerou mais de mil pessoas em um só dia. Na mira, os imigrantes indocumentados, uma multidão de 11 milhões de pessoas transformada oficialmente em bode expiatório no país mais bélico do planeta. 

Com mais poder do que em seu primeiro mandato, Trump e seu séquito querem emplacar uma deportação em massa contida em seu governo anterior – foram 1,2 milhões de deportados, muito menos do que os 3,7 milhões discretamente chutados do país pelos democratas Joe Biden e Barack Obama.

Extraindo dos manuais fascistas a figura do “inimigo interno”, a campanha eleitoral de Trump lançou uma retórica agressiva contra os “bandidos”, “sujos” e “bárbaros comedores pets”, atacando a parcela da população que além de mais vulnerável, não pode votar. 

A covarde divisão entre os bons (documentados) e maus (indocumentados) ecoou nos demais imigrantes, inclusive nos que aguardavam o green card. “Trump vai acelerar esse processo de documentação”, “Biden não fez nada”, ouvi de um jovem taxista indiano em outubro. Nos balcões de serviços e barraquinhas de rua, encontrei vários imigrantes documentados garantindo que as deportações seriam boas sim, afinal, sobrariam mais empregos.

A eles, durante a posse, Trump passou o recado: “eu ouço vocês”. 

No mesmo dia, com uma canetada, restringiu as principais políticas que garantiam proteção aos imigrantes indocumentados, declarou emergência nacional na fronteira e extinguiu a cidadania por direito de nascença para os filhos de imigrantes ilegais nascidos no país. 

Ele também promulgou uma espécie de remoção acelerada, através de um aviso  online, que aumenta os poderes dos agentes de Imigração e Alfândega para remover rapidamente os imigrantes indocumentados, sem que eles passem por procedimentos judiciais.

Até então, explica o NYT, ao serem pegos pela agência, os imigrantes recebiam uma notificação para comparecer ao tribunal de imigração, onde poderiam discutir seus casos e a deportação propriamente dita só poderia ocorrer após a decisão de um juiz. 

Na última quinta-feira (23), o arremate: em mais um memorando, agora do Departamento de Segurança Interna, os agentes do ICE poderão expulsar os imigrantes indocumentados que estavam sob a proteção de dois programas federais de Biden, que beneficiaram 1,4 milhão de pessoas desde 2023.

Criminalização

No domingo (26), ordens de detenção foram expedidas nos estados de Washington, Califórnia, Arizona, Colorado, Texas, Illinois, Geórgia, Flórida, Nova Jersey e até mesmo em Porto Rico, território não-incorporado dos Estados Unidos. 

Para driblar a autonomia dos estados e a proteção dada aos imigrantes pelas cidades santuários, Trump ordenou ao Departamento de Justiça que investigasse as autoridades que impedissem os esforços de fiscalização; e mobilizou várias agências de segurança pública do Departamento de Justiça para auxiliar nas operações: o Federal Bureau of Investigation, a Drug Enforcement Administration, o Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives e os US Marshals. 

Uma visita às as redes sociais dessas agências e, em particular, as do ICE, dá a temperatura da campanha de criminalização em curso. O ICE vem publicando o nome de suspeitos presos e o país de origem, alimentando o clima de perseguição, de criminalização e a delação generalizada. 

Na terça-feira (26), Nova York foi palco de uma operação midiática no Bronx, com a presença da recém-empossada secretária de Segurança Interna de Trump, Kristi Noem. Policiais da Homeland Security Investigations (HSI) prenderam um imigrante suspeito de pertencer à gangue venezuelana Tren de Aragua. Nas redes, Noem postou um vídeo afirmando: “canalhas como este continuarão sendo removidos de nossas ruas”. 

Operações, com a cobertura massiva da mídia, têm forte impacto. Elas legitimam a maldade de vizinhos nativos, de “colegas” de trabalho e desafetos criando um ambiente de estímulo às perseguições e à xenofobia. Na seção de cartas do neoliberal The Economist, um cidadão de Washington chegou a propor recompensas financeiras para os funcionários delatarem os empregadores que não preenchem corretamente o formulário 1-9, um documento obrigatório onde os patrões precisam inserir dados dos seus trabalhadores. 

Deputados locais e senadores republicanos já apresentaram propostas de financiamento “de caçadores de recompensa”. Duas estão sendo analisadas nos estados do Mississipi e do Missouri, prevendo US$ 1.000 em fundos estaduais para os delatores por cada pessoa deportada. “Não está claro se a legislação tem chance de ser aprovada, mas sua introdução ilustra bem o clima no país”, aponta o Washington Post.

Onda de pânico

“O pessoal está muito assustado. As pessoas se mantêm escondidas ou trancadas em casa. A polícia ICE tem feito bloqueios em ruas estratégicas perto de locais de trabalho como fábricas, granjas, serralherias, obras de construção. Também entram em lojas e supermercados”, conta uma amiga que vem acompanhando a onda de perseguições nos Estados Unidos.

Do norte do estado do Mississipi, onde reside, ela conta que a região é um polo moveleiro e agrícola e um lugar fácil de encontrar trabalho: “Nos últimos 10 anos o influxo de imigrantes tem sido grande. Aqui a ação da polícia de imigração começou na segunda-feira e parece que vai continuar por tempo indeterminado”. 

“O clima anda tenso até para as pessoas que tem o Green card, para estudantes estrangeiros de intercâmbio. Se você falar outra língua em público é perigoso ser levado, como a família de Porto Rico presa em um supermercado”, complementa. 

Ela se refere à mãe, avó e criança pequena levadas sob custódia pela agência depois de ser ouvida falando espanhol, em um supermercado, em Milwaukee, Wisconsin. O erro só foi reconhecido no centro de detenção. Este é apenas um dos vários exemplos que desmontam o discurso oficial de que apenas criminosos estão sendo presos e deportados.

O caso dos 88 brasileiros é emblemático. Presos, algemados e acorrentados, eles sofreram maus tratos durante o voo que os deixou em Manaus, após o avião militar dos Estados Unidos apresentar problemas para chegar em Belo Horizonte. 

Depoimentos de alguns ao G1, trazem históricas de vulnerabilidades e de dificuldades de se manterem no país, incluindo violências domésticas, privações de direitos e excesso de trabalho. Segundo o Instituto Pew Research Center, entre os mais de 2 milhões de brasileiros que residem nos Estados Unidos, pelo menos 230 mil não possuem Green Card. 

Nas redes sociais é possível acompanhar o drama. Um compilado de depoimentos, veiculado pela Mídia Ninja, mostra as ruas desertas, canteiros de obras sem funcionários, restaurantes e supermercados às moscas. Em dado momento, um rapaz questiona: “eu quero ver o que vai fazer o gringo quando toda frente de sua casa estiver coberta de neve”. 

Em outro vídeo, um brasileiro entregador de comidas afirma que “a discriminação vai começar, a perseguição, isso é sério”; e mais adiante: “as pessoas não entendendo por que acham que estão sendo deportados só bandidos, e não está. A polícia de imigração está fazendo batidas e levando quem não tem documentos e está ilegal no país. Eu não sou bandido. Bandido rouba, eu faço entregas”. 

Resistência

Entidades da sociedade civil estão se levantando contra as medidas de Trump. Um grupo de defesa no Arizona acaba de lançar uma linha direta ( 480-560-7437 ) para alertar os imigrantes sobre as ações do ICE, da Patrulha da Fronteira e combater a onda de fake news que vêm aumentando o pânico local. 

Organizações religiosas também se movimentam. O professor Felipe Filomeno, autor de “Christian Cosmopolitanism: Faith Communities Talk Immigration”, escreveu em suas redes sociais que “A Global Refuge (Luterana) pediu veementemente que ´a Casa Branca reconsidere essa ação executiva´. A World Relief (Evangélica) chamou a ordem executiva de ´injustiça trágica´. A Catholic Legal Immigration Network, Inc. (CLINIC) disse que as medidas são ´uma afronta direta aos valores de longa data de nossa nação e contrárias ao princípio cristão fundamental de acolher o estrangeiro´.

Grupos ativistas como o  “Witness at the Border”  vêm rastreando as ações do ICE. Reportagem da CNN, com base em seus relatórios, aponta que, no mês de janeiro, partiram dos Estados Unidos 109 voos de deportações para a Guatemala (31 voos), Honduras (24), México (14), Colômbia (12), Equador (9), El Salvador (8), Peru, República Dominicana, Nicarágua, Brasil (2 voos cada) e Jamaica, Cuba e China (1 voo cada). 

A maior parte desses voos (65) foram sob o governo Biden e 44 sob Trump. A diferença, porém, é o autoritarismo e a humilhação que envolvem as deportações. Indignados com o tratamento dado aos seus cidadãos, lideranças políticas da América Latina responderam a bravata de Trump. 

“Se os países não aceitarem seus migrantes rapidamente, eles pagarão um preço econômico muito alto, e nós iremos instalar imediatamente tarifas massivas”, afirmou o bilionário diante da recusa da Colômbia e do México em receber os aviões em seus territórios.

Mesmo ameaçado de sanções, o presidente Gustavo Petro, da Colômbia, bateu o pé e exigiu que os deportados fossem tratados com civilidade, ao que foi atendido. “Esta disposição: dignidade para os deportados, será aplicada a todos os países que nos enviarem deportações”, afirmou. Em seu país, os deportados foram recebidos como convidados de honra e chegaram em aeronaves colombianas, incluindo o avião oficial da presidência. 

Petro os recebeu pessoalmente. 

O presidente Lula também manifestação indignação ao saber as condições que os imigrantes estavam sendo deportados. Na sexta-feira (24), o ministro Mauro Vieira (Relações Exteriores) pediu explicações à embaixada americana. No sábado (25), a ministra Macaé Evaristo (Direitos Humanos e Cidadania) recebeu pessoalmente os passageiros do primeiro voo, em Belo Horizonte. No domingo (26), o Itamaraty publicou uma nota afirmando que os EUA violaram os termos de um acordo que “prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados”. 

Na segunda (27), o ministro Ricardo Lewandowski (Justiça) salientou que “não queremos provocar o governo americano”, mas “a deportação tem que ser feita com respeito aos direitos fundamentais das pessoas, sobretudo daquelas que não são criminosas”. 

Também foi anunciado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania a instalação de um posto de acolhimento dos imigrantes no Aeroporto de Confins e criado pelo Itamaraty um grupo de trabalho junto à Embaixada dos EUA para acompanhar, em tempo real, os próximos voos de repatriação. Na última sexta (31), eles propuseram uma rota direta para o transporte dos brasileiros deportados. 

O nosso capítulo…

A violação de acordos e direitos se somam a um conjunto de ameaças do governo estadunidense, inclusive a de uma guerra comercial já anunciada contra o México, o Canadá e a China; e a um conjunto de propostas estapafúrdias como a de retomar o Canal do Panamá, reativar Guantánamo para receber até 30 mil imigrantes e renomear o Golfo do México para Golfo da América.

Na semana da posse de Trump, dez dias antes do início das deportações, representantes do México, Brasil, Colômbia, Cuba, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Venezuela e Belize se reuniram na Cidade do México para assinar uma declaração conjunta em defesa dos imigrantes

O documento sugere a reativação das reuniões sobre migração da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A expectativa geral é de que a CELAC se torne o palco de um movimento regional em defesa da soberania latino-americana. Uma reunião havia sido marcada na semana passada, mas foi cancelada. 

A boa nova, no entanto, é que a próxima presidência rotativa do bloco será comandada por Petro, da Colômbia. Dias atrás, ele publicou uma Carta Aberta a Trump. O texto surge como um dos mais potentes libelos anti-imperialistas destes tempos. Um acalento no coração de tantos que estão vivendo o pesadelo americano. 

A carta de Petro

“Trump, eu não gosto de viajar aos EUA. É entediante, mas confesso que há coisas admiráveis. Gosto de ir aos bairros negros de Washington. Lá vi uma luta inteira na capital dos EUA entre negros e latinos com barricadas, o que me pareceu uma idiotice, pois eles deveriam se unir. Confesso que gosto de Walt Whitman, Paul Simon, Noam Chomsky e Miller.

Confesso que Sacco e Vanzetti, que possuem o mesmo sangue que eu, são memoráveis na história dos EUA. Eles foram assassinados na cadeira elétrica por serem líderes operários, pelos fascistas que estão tanto dentro dos EUA quanto no meu país.

Não gosto do seu petróleo, Trump. Ele vai acabar com a espécie humana por causa da sua ganância. Talvez, em algum dia, com um copo de Whisky, apesar da minha gastrite, possamos falar sobre o tema. Mas é difícil, porque você me considera de uma raça inferior. Não sou. E nenhum colombiano é. Se você conhece alguém teimoso, sou eu. Pode, com sua força econômica e soberba, tentar dar um golpe de Estado, como fizeram em Allende. Mas eu morro na minha lei. Resistirei à tortura e resistirei a você.

Não quero escravistas na Colômbia, já tivemos muito e nos libertamos. O que eu quero ao lado da Colômbia são amantes da liberdade. Se você não pode nos acompanhar, buscarei outros caminhos. A Colômbia é o coração do mundo, e você não entende isso. Esta é a terra das borboletas amarelas, da beleza de Remedios, mas também dos coronéis Aurelianos Buendía, dos quais sou um – e talvez o último.

Você pode me matar, mas eu sobreviverei na minha cidade que é anterior à sua, nas Américas. Somos pessoas dos ventos, das montanhas, do Mar do Caribe e da liberdade.

Você não gosta da nossa liberdade, ok. Eu não aperto a mão de escravocratas brancos. Aperto a mão dos herdeiros libertários brancos, de Lincoln e dos meninos camponeses negros e brancos dos Estados Unidos, em cujos túmulos chorei e rezei num campo de batalha, ao qual cheguei, depois de caminhar pelas montanhas da Toscana italiana e sobreviver à Covid-19.

Eles são os Estados Unidos e diante deles eu me ajoelho, diante de mais ninguém.

Derrube-me, presidente, e as Américas e a humanidade responderão.

A Colômbia agora deixa de olhar para o norte, olha para o mundo, o nosso sangue vem do sangue do Califado de Córdoba, da civilização daquela época, dos romanos latinos do Mediterrâneo, da civilização daquela época, que fundou a república e a democracia em Atenas. Nosso sangue tem os negros resistentes transformados em escravos por você. Na Colômbia está o primeiro território livre da América, antes de Washington, em toda a América, lá me refúgio nas suas canções africanas.

A minha terra é da ourivesaria existente na época dos faraós egípcios, e dos primeiros artistas do mundo em Chiribiquete. Você nunca nos dominará. O guerreiro que cavalgou nossas terras, gritando liberdade e cujo nome é Bolívar, se opõe.

Nosso povo é temeroso, um tanto tímido, é ingênuo e gentil, amoroso, mas saberá conquistar o Canal do Panamá, que você nos tirou com violência. Duzentos heróis de toda a América Latina jazem em Bocas del Toro, atual Panamá, antiga Colômbia, que você assassinou.

Eu levanto uma bandeira e como disse Gaitán, “mesmo que fique sozinho, ela continuará a ser hasteada com a dignidade latino-americana que é a dignidade da América”, que o seu bisavô não conhecia, e o meu sim, Senhor Presidente, um imigrante nos Estados Unidos.

Seu bloqueio não me assusta; porque a Colômbia, além de ser o país da beleza, é o coração do mundo. Eu sei que você ama a beleza como eu, não a desrespeite e ela lhe dará sua doçura.

A Colômbia está aberta ao mundo todo a partir de hoje, de braços abertos somos construtores de liberdade, vida e humanidade.

Me informaram que vocês colocaram uma tarifa de 50% sobre o fruto do nosso trabalho humano para entrar nos EUA, e eu faço o mesmo. Que nosso povo plante o milho que foi descoberto na Colômbia e alimente o mundo.”

*Tatiana Carlotti é repórter no Fórum 21 e tem publicações em várias mídias progressistas. Confira seus textos em tcarlotti.blog

Somos América é uma coluna periódica do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé dedicada à publicação de análises sobre comunicação, política e integração regional. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos que estão conectados à rede do Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.