
Familiares de vítimas de assassinados e desaparecidos pelo terrorismo de Estado protestaram no Museu Casa da Memória, em Medelin, com performance artística, pintura e colagem. Como fazem há anos, voltaram a exigir a responsabilidade não só dos militares, mas de ministros e ex-presidentes como Álvaro Uribe Vélez (2002-2010)
Leonardo Wexell Severo, de Medelin, Colômbia, para a ComunicaSul
Chegamos cedo para o ato artístico-cultural convocado em frente ao Museu Casa da Memória, em Medelin, pelas chucas – as mães das vítimas de assassinados e desaparecidos – e seus aliados dos movimentos que têm colorido a Colômbia, nos últimos meses, defendendo a memória coletiva como resistência, justiça e reconstrução democrática.
Aos poucos foram se aproximando no último domingo (16), como há décadas, vestindo camisetas com imagens de filhos, sobrinhos e familiares jovens. A fotografia de crianças elevou a indignação, compôs o cenário da tragédia. Nos cartazes os dizeres “Onde estão os desaparecidos? Vivos os levaram, vivos os queremos”.
A resposta veio de vítimas da opressão, após a eleição de Gustavo Petro, superados anos de desgovernos de extrema-direita que privatizaram a vida pública e contaminaram o país com bases estadunidenses. Com a palavra de ordem “Las chucas tenían razón”, a paixão superou o medo e as ameaças dos paramilitares, conseguiu furar o apodrecido cerco midiático da oligarquia e entusiasmou expressivos segmentos da população. Sim, a desaparição forçada, os cemitérios clandestinos e a impunidade não apenas foram, como são uma realidade. “Colômbia é o país mais perigoso para defender os direitos humanos”, apontou a Procuradoria-geral, esclarecendo que entre 2016 e 2024 foram assassinados 1.372, uma média de um a cada três dias.
“Temos claro que os meios de comunicação colombianos são financiados por grandes anunciantes e que, portanto, nas poucas vezes que nos ouvem, sempre nos cortam, editam nossa fala. Como são negacionistas, decidimos recorrer aos murais para dizer ao mundo inteiro o que está ocorrendo no país”, afirmou Luz Amparo Mejia Garcia, da Mãe Candelária – Linha Fundadora, “entidade que há 26 anos está resistindo, persistindo e não desistindo na busca dos nossos desaparecidos”.
Na tentativa de vencer o inimigo a qualquer custo, o Exército utilizou uma armadilha descoberta e condenada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Inventou que a guerra estava sendo ganha exibindo cada guerrilheiro morto como medalha, um “positivo”, jovens civis inocentes aniquilados em combates que jamais ocorreram. Daí o termo “falsos positivos” que os números oficiais apontam em mais de 6.402 e especialistas projetam em até 15 mil. Uma prática sistemática de militares que, na tentativa de fazer verossímeis, camuflavam cadáveres, falsificavam cenas e documentos
“Coronel recebeu medalha pela morte de 53 civis que fez se passarem por guerrilheiros”
“Em 2023 o coronel Jaime Pinzón Amézquita entregou a estas vítimas, parentes de execuções extrajudiciais ou falsos positivos, uma condecoração chamada Medalha de Ordem Pública, dada aos oficiais que apresentaram mortes em combate. O oficial neste momento reconheceu que havia obtido a medalha com a execução de 53 civis que fez se passarem por guerrilheiros”, declarou o advogado Sérgio Arboleda, que acompanhou os manifestantes ao Museu Casa da Memória.
Arboleda lembrou que o coronel Pinzana Mesquita se reuniu com essas vítimas e “como mostra de dignificação da memória colocou o museu como fiador e guardião da condecoração”, deixando como contrapartida as organizações humanitárias como responsáveis pelo mural.
“Este ano, a partir de todo movimento de murais e grafites a nível nacional, as vítimas decidiram refazer o mural, desta vez com a mensagem ‘Todos sabemos quem deu a ordem’”, informou o advogado. Então veio de parte da administração municipal a instrução para que a direção do museu barrasse a iniciativa.

Antióquia, que tem Medelin como capital, concentra 25% dos desaparecidos do país
“O problema é que o departamento [Estado] de Antióquia, do qual Medelin é a capital, concentra 25% dos casos de desaparecimentos a nível nacional. Ou seja, a cada quatro vítimas uma é daqui”, frisou o advogado, apontando haver uma nítida tentativa de ocultar a gravidade da situação.
Sendo assim, relatou Arboleda, “as vítimas se negaram a que a memória se perdesse e, com muita dignidade, pegaram os pincéis e voltaram a recuperar o mural que havia sido censurado”. “A compreensão é da necessidade de ir além da responsabilização das tropas, das forças estatais armadas, mas chegar a ministros e ex-presidentes. Porque há sido feita uma exclusão de competências para estabelecer a responsabilidade de ex-presidentes. E isso tem nome próprio: Álvaro Uribe Vélez”, enfatizou.
Artista do Taller La Parresia, Javier Sanchez, comemora o fato que “desde o final de 2023, termos conseguido como coletivo artístico e de vítimas da cidade fazer com que esse mural seja gerenciado pela Casa da Memória, a fim de recordar as execuções extrajudiciais”. “Não houve qualquer manutenção e o mural caiu no abandono. Agora com o movimento de pinturas das cuchas ele foi recuperado e colocamos a palavra ‘Quem deu a ordem’. Aí em menos de 16 horas foi censurado e negado o processo coletivo de memória”, assinalou.
Infelizmente, no parque ao redor do Museu – que tende a reconstruir uma verdade que oculta os vínculos de governos como os de Uribe com os paramilitares e os Estados Unidos, e muitas outras agressões à soberania nacional – há inúmeras provas de desleixo e abandono, como o de fazer da área um recanto para os usuários de drogas, afrontando as famílias.
Entre vários objetos preciosos largados ao relento, está uma lembrança de 30 de agosto de 2023, em metal, que expressa: “Esta placa comemorativa permaneceu por mais de dez anos no setor conhecido como La Escombrera, na Comuna 13 – San Javier de Medelin. Ali foi violada em várias ocasiões por grupos paramilitares. É reposicionada no Museu Casa da Memória para ser cuidada e dignificada em memória das vítimas e em reconhecimento às famílias que procuram”.
“Luta é para reconhecer a memória como direito”
Maria Alejandra Arenas, diretora da Rede de Vítimas de Sobreviventes de Deslocamento e Desaparição Forçada, sente na própria carne há três décadas as mazelas do conflito armado. “Sofri com o homicídio de meus dois sobrinhos e meu cunhado, e a desaparição forçada de meu irmão. Eu mesma precisei partir. Necessitamos saber o que passou com nossas famílias, o que fizeram eles para merecer isso? E o que fizemos nós, como população vítima, para sofrer com todos esses abusos?”, questionou.
Nossa luta, defende Maria Alejandra, “é para que nossa memória seja reconhecida como um direito, pois o maior flagelo para uma família é vê-la terminar. Uma mãe saudável como a minha prostrada numa cadeira de rodas, conosco buscando por entes queridos em clínicas, hospitais e cemitérios”.
Vestindo a camiseta da filha Vanessa González Quintero, dom Álvaro Serna “busca desesperadamente por céu, mar e terra por nossos seres humanos desaparecidos”. Sua filha foi sequestrada com somente oito anos e recebeu apenas em 2024 a informação de que se encontra presa a redes de prostituição nos Estados Unidos. A barbárie do abuso sexual é conhecida e reconhecida, assim como o envolvimento de gente graúda, tendo sido inclusive tema de vários filmes.
Em dezembro de 2011, informe da Fundação Novo Arco Íris – conceituada ONG que trabalha pelo fortalecimento da democracia participativa e a construção de alternativas de equidade social – apontava que 98 congressistas faziam parte das investigações feitas pela Promotoria por seus “vínculos com o paramilitarismo”.
“Nos reunimos na Igreja da Candelária e estamos buscando constantemente, pintando murais, porque crimes como esses não podem ser ocultados. Quanto aos falsos positivos, evidentemente os 6.400 não são os únicos, são muitos mais. Um único general disse que somente ele assassinou 15 mil pessoas por ordem de Álvaro Uribe”, lamentou dom Álvaro.

“Encontro a força no coletivo”
Ana Leonilde Aria de Morales perdeu a filha, Luz Esteli, no dia 17 de setembro de 2003 com apenas 16 anos, mas encontra “a energia necessária no coletivo”. “Juntas e com fé em Deus tenho a fortaleza necessária para suportar a dor da lembrança da menina que estava sempre ao meu lado”, recordou.
Luz Amparo Mejia Garcia reiterou que “quem não conhece a história está condenado a repeti-la, e este é o caso da Comuna 13, na Escombrera, em que ocorreram 34 operações militares”. “A mais complicada foi a Orion porque foi uma conivência entre o Estado e as Forças Armadas, em que desafortunadamente quem saiu perdendo foi novamente a população civil”, explicou.
De acordo com informações colhidas junto ao próprio museu, com a “implementação da política de Segurança Democrática” (sic!) de Álvaro Uribe, somente em 2002, seis operações militares tiveram lugar na Comuna 13, com o abuso de torturas e todo tipo de atrocidades. Viviam então nesta favela de Medelin 150 mil pessoas, hoje são cerca de 250 mil.
“O uso de forças por parte do Estado com mais de 1.500 homens que chegaram aos bairros com helicópteros [Black Hawk] e tanques, a invasão de moradias, a captura e a detenção de moradores”, descrevem os jornais da época, foram as marcas da Operação Orion (16 e 17 de outubro) executada numa zona urbana, quando foi denunciada a desaparição de 77 pessoas que seriam sepultadas na Escombrera em meio ao lixo, destroços e areia.
Por ironia do destino, Luz Amparo iniciou sua militância procurando o irmão, soldado que enfrentava as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), organização guerrilheira que na época encarnava os interesses nacionais e populares contra o imperialismo e os vende-pátria.
Com as informações que tínhamos à disposição, apurou Luz Amparo, “fizemos petições para que a Procuradoria fizesse com que se parasse de jogar dejetos na Escombrera, sabendo que ali haviam sido jogados corpos de seres humanos”. “Nos chamavam de loucas – como as Mães da Praça de Maio, na Argentina – mas sempre tivemos a convicção de que tínhamos razão, sabíamos que nossos seres queridos se encontravam ali, junto a restos de pessoas dos demais 125 municípios de Antióquia”.
“O tempo passou e hoje visto a camisa de uma jovem psicóloga que a guerra ceifou seu projeto de vida. É assim que sigo em frente, lutando por melhores dias, para que nunca mais aconteça”, concluiu a mulher cujo nome ilumina e dá sustentação a uma causa.
Reportagem da Agência ComunicaSul de Comunicação Colaborativa com o apoio do jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul Global, Barão de Itararé, Vermelho, Agência Sindical, Correio da Cidadania e gabinete do vereador Gilmar Lima Martins (Alegrete-RS)