7 de dezembro de 2024

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Maria Inês Nassif: Precisamos conversar sobre eleições

Dificilmente os processos históricos são interrompidos por uma explosão. Para superar o momento traumático que vivemos, é preciso erigir solidamente um movimento que a ele se oponha, e com força para superá-lo.

É preciso construir uma contraposição dialética à destruição, a um momento movido pela irracionalidade do eleitor.

Esse movimento de oposição ao fascismo tem que se mostrar sólido em seus alicerces e capaz de oferecer segurança às multidões que aderiram ao individualismo como forma de proteção contra o caos e a insegurança.

Isso explica a impossibilidade de eliminar o bolsonarismo com uma simples banana de dinamite.

Vai ser preciso muito mais do que uma explosão, porque o bolsonarismo é uma construção histórica – e contra ele apenas vencerá a consolidação, no seu outro lado, de uma construção histórica democrática e antifascista.

A primeira lição desse segundo turno é a de que Lula é, de fato e de direito, o único político capaz não apenas de ganhar uma eleição contra as forças de extrema-direita, mas aquele com possibilidade de liderar a construção de um processo sólido, que jogue para longe de nossas vidas esse triste período para o país.

A segunda, a de que, hoje, Lula está longe de conseguir fazer isso sozinho. O resultado da eleição para os cargos legislativos mostra que a página não será simplesmente virada no dia 30 de outubro, mesmo que o ex-presidente vença as eleições.

A partir do segundo turno, os brasileiros que não adoeceram politicamente (sim, o fascismo é uma doença); que não passaram a odiar as minorias; que não falam o nome de Deus para justificar seus crimes; que não usam armas letais contra os adversários; que não odeiam os pobres – os brasileiros democratas terão que se debruçar na tarefa de extirpar as ervas daninhas que ocuparam o solo brasileiro.

Terão que restaurar uma democracia lesionada pelos constantes ataques às leis e à Constituição; interromper o alastramento do coronelismo urbano, que exige adesão política em troca de empregos mal remunerados; dar de comer aos milhões de famintos; humanizar suas relações com os menos favorecidos.

A tradição patriarcal brasileira está mais feia, mais cruel; não tem mais vergonha de exibir seus dentes e beber o sangue dos oprimidos.

Como o bolsonarismo foi construído

Não existe nenhuma contradição no fato de terem sido vitoriosas as bancadas bolsonaristas e lavajatistas.

Ambas são produto de uma cruenta luta de classes que começou nos primeiros dias do primeiro mandato de Lula, em 2003, e chegou ao seu ápice no processo de impeachment de Dilma, em 2016.

Não à toa, na democracia moderna, as classes dominantes, e principalmente os setores mais alinhados à direita extremada, têm no discurso anticorrupção sua maior estratégia política contra governos de esquerda, ou governos que ferem interesses econômicos sensíveis delas ou dos seus aliados no imperialismo.

No Brasil, essa foi a estratégia da UDN e de seu principal porta-voz, Carlos Lacerda, contra o governo democrático de Getúlio Vargas; contra Juscelino Kubitscheck (e seu projeto desenvolvimentista, que incluía manter e fortalecer o monopólio do petróleo); e contra João Goulart – governo interrompido por um golpe militar que durou 21 anos.

A história, hoje, desmonta essas narrativas mentirosas: Getúlio e JK morreram pobres; Jango era rico quando começou a vida pública e perdeu dinheiro na política.

Mas o reconhecimento de que eles foram vítimas das mentiras da direita brasileira veio tarde demais. Eles foram proscritos por suas gerações.

Não seria diferente com Lula, o maior líder brasileiro do século 21, talvez o mais completo estadista da história brasileira.

Não é coincidência o fato de que o ruidoso processo do chamado Mensalão – o ovo da serpente da destruição da classe política brasileira – tenha sido mantido artificialmente por longos 10 anos (de 2005 a 2015) por uma Justiça que apenas abriu os olhos para as consequências de seu flerte com as forças que se moviam contra o estado de direito democrático depois da ascensão do fascismo.

O STF presidiu um processo eivado de erros e condenou um partido inteiro com base na teoria do domínio do fato, com base em crimes construídos sobre provas altamente discutíveis.

Nesse período, houve um massacre midiático contra o PT. Foi a chamada “opinião pública”, incitada pelos meios de comunicação tradicionais, que colocou na cadeia quase toda a cúpula do PT. Não existiam fatos, nem provas para isso.

Naqueles longos 10 anos, o PT e Lula foram massacrados por manchetes quase diárias e por capas de revistas semanais sensacionalistas, com denúncias que nunca foram comprovadas. As denúncias vinham na forma publicitária forjada pela extrema-direita: acusações não confirmadas, mas fáceis, que usadas repetidamente viravam bordões.

Elas eram concluídas a partir de narrativas criadas de forma intrincada, que se tornavam complexas e difíceis de serem rebatidas. Bordões fáceis, respostas difíceis, essa foi a forma de “colar” a imagem de corrupção no partido.

Poucos meses depois do fim do processo do Mensalão, encerradas as últimas possibilidades de recursos, viria a Lava Jato – hoje, sabemos, com uma “força-tarefa” (termo tirado das operações do FBI) composta por procuradores do Ministério Público e um juiz de primeira instância do Paraná, Sérgio Moro, treinados pelos EUA para cumprir a missão de tirar o PT e Lula do mapa, desmontar a Petrobrás e eliminar as grandes empresas de construção que se especializaram em energia e concorriam fortemente com as empresas estadunidenses no exterior.

As classes dominantes, que tiveram interrompido um raro momento de hegemonia política e unidade de classes nos períodos tucanos, erraram redondamente ao achar que eliminar o PT do quadro político a qualquer custo traria de novo a base orgânica do poder econômico, o PSDB, para o centro do jogo político.

Não entenderam que o PT era o alicerce do quadro partidário pós-redemocratização: embora tenha perdido muito de sua organicidade ao longo dos ataques repetidos por uma aliança judicial-midiática, ainda é o único partido com solidez para liderar a resistência ao ataque que hoje sofrem as instituições democráticas.

O PSDB sumiu no mapa. O primeiro turno das eleições de 2022 reduz o partido à sua insignificância, inclusive em São Paulo, o berço do tucanato.

Os meios de comunicação, que atuaram como aparelhos ideológicos dessa aliança de classes, também erraram redondamente ao se tornarem o grande instrumento publicitário antipetista. Eles também estão sob ataque.

É forçoso reconhecer, todavia, que os agora aliados de Lula na guerra contra o fascismo produziram estragos sobre a imagem da grande liderança antifascista na batalha eleitoral.

Se de fato esses atores políticos têm interesse em ajudar a superar esse momento histórico, e assumir papel relevante no processo de redemocratização do país, devem limpar o lixo que deixaram pelo caminho.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a campanha para “colar” em Lula e no PT a imagem da corrupção – da qual os meios de comunicação, o Judiciário, os partidos de centro e as frações da classe dominante com verniz democrático foram militantes incansáveis – foi eficiente.

Hoje, dessa campanha difamatória se valem os fascistas e a força auxiliar do fascismo no primeiro turno, com Ciro Gomes na linha de frente.

Essa campanha difamatória coloca Lula numa posição inglória. Graças aos vazamentos das conversas dos integrantes da Lava Jato – Sérgio Moro incluído – pelo hacker Walter Delgatti, publicados pelo The Intercept, foram colocados a nu os esforços de juiz e procurador para incriminar Lula e o PT sem que eles tivessem culpa, destruir a Petrobrás e ainda botar no bolso o dinheiro “devolvido” pela estatal à justiça estadunidense.

Todos os processos que levaram à condenação de Lula foram anulados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu as fraudes cometidas pelas autoridades judiciárias na primeira instância – e na segunda instância também.

As organizações Globo, que assumiram a liderança na operação midiática destinada a pressionar o STF a referendar as decisões do juiz “fake” Sérgio Moro até junho de 2019, quando a Lava Jato foi desmascarada, jamais reconheceu a fraude.

Passou do discurso lavajatista à narrativa de que Lula não foi inocentado, mas apenas teve as condenações anuladas. O discurso mudou apenas na sabatina de Lula no primeiro turno, quando o apresentador William Bonner disse a ele: “O senhor não deve nada à Justiça”.

É muito pouco. A emissora, que adorava pedir uma autocrítica a Lula e ao PT, deve fazer, a sua própria.

É necessário reconhecer que a imagem da corrupção colada em Lula, e que agora atrapalha o projeto de um amplo leque de classes contra o bolsonarismo, foi produto de uma fraude da qual fez parte. A Globo e todos os meios de comunicação tradicionais, com raríssimas exceções.

O uso indiscriminado da narrativa lavajatista contra Lula por Ciro Gomes foi um ato de má-fé punido pelo eleitor do cearense que terminou o primeiro turno sem o apoio de sua própria família.

Se ele aderir a Lula no segundo, será apenas para limpar a sua imagem. É uma adesão que não deve interessar a Lula, a não ser que o candidato pelo PDT reconheça publicamente que mentiu, que atribuiu a ele crimes pelos quais o STF o inocentou. Como Bonner, deve dizer que Lula não deve nada à Justiça.

*Maria Inês Nassif é jornalista e cientista política. Publicado no Viomundo.