16 de agosto de 2025

Felca e o desnudamento da máquina de moer gente


Mais de 175 milhões de visualizações no Instagram e 31 milhões no YouTube em apenas três dias. Até o dia 10 de agosto, eu não fazia ideia de quem era Felca, até me deparar com um vídeo-denúncia que sacudiu as redes, expôs o que está banalizado no nosso dia a dia e somou força ao movimento de quem luta pela regulamentação das Big Techs.

Por Joanne Mota, para o Barão de Itararé 

Felca não apenas trouxe o tema para o centro da disputa política — de onde nem a extrema direita conseguirá escapar — como escancarou como vidas inteiras estão sendo trituradas para manter funcionando a engrenagem da máquina de moer gente em que a internet foi transformada.

Quando descobri a internet, no alto dos meus 25 anos, vi nela uma revolução: o mundo na palma da mão, a possibilidade de aprender sem sair de casa, de me formar, de construir sonhos e dividir alegrias. Mas, depois de assistir ao vídeo de Felca, ficou impossível não refletir com mais cuidado e responsabilidade sobre questões que para mim já estavam dadas, mas que a rotina tornou banais: até que ponto definimos nossas escolhas e até que ponto a plataforma molda nossas ações, nosso acesso à informação e até nossas relações pessoais? Quantas dessas escolhas já estavam previamente programadas por decisões políticas, econômicas e técnicas tomadas a milhares de quilômetros daqui, em empresas que nem respondem às nossas leis?

O pesquisador Sérgio Amadeu, professor da UFABC, ajuda a compreender esse cenário ao falar de modulação: o controle contínuo e adaptativo que as plataformas exercem sobre nossas vidas, direcionando comportamentos e filtrando o mundo que nos é apresentado. Mas essa é pauta para outra coluna.

Capitalismo de plataforma: quando o usuário é o produto

O vídeo de Felca escancara a face mais cruel do capitalismo de plataforma, um modelo de negócios forjado na cultura do Vale do Silício: uma mistura de autoajuda empreendedora, discurso de “mudar o mundo” e, na prática, um apetite insaciável por dados e atenção humana. Essas empresas não vendem só anúncios; vendem nosso tempo de vida — e com isso, tiram de nós nosso direito de viver plenamente, tiram nossas escolhas e, não raro, a própria vida.

No caso denunciado, a exploração e adultização de crianças — crime que deve ser combatido com rigor — virou isca para engajamento e lucro. Não é acidente de percurso: é resultado direto de algoritmos projetados para nos manter conectados o maior tempo possível. Pouco importa se o conteúdo é educativo ou destrutivo; importa se prende nossa atenção. Como mostrou Felca, o mesmo código que sugere vídeos de receitas pode, sem constrangimento, empurrar conteúdos que sexualizam menores ou normalizam a violência.

Há quem diga que “isso é liberdade”, que Felca exagerou ou que sua ação foi por autopromoção. Mas é preciso lembrar: para as plataformas, toda atenção é válida, porque toda atenção é monetizada. Ódio e amor, choque e riso valem o mesmo. Quanto mais extremo o conteúdo, mais tempo ficamos presos — e mais dinheiro circula para uma minoria que concentra poder e riqueza.

Não é sobre liberdade, é  sobre moer gente

A cultura do Vale do Silício vende a imagem da inovação libertadora, mas construiu impérios baseados em vigilância e manipulação comportamental. As Big Techs adoram se apresentar como “plataformas neutras” defensoras da “liberdade de expressão”, quando na prática decidem todos os dias o que veremos, a que preço e com que intenção. Violência e exploração estão no cardápio.

Isso molda opiniões políticas, influencia eleições, normaliza preconceitos, estimula atentados à vida e acoberta crimes — desde que o usuário permaneça engajado. Felca expôs o que a indústria tenta esconder: o funcionamento interno dessa máquina. A repercussão foi tamanha que 32 projetos de lei chegaram à Câmara para tentar frear a exploração de crianças nas redes, e já se fala em “Lei Felca” para proteção infantil no ambiente digital.

Mas por que isso demorou tanto?

O que está em jogo na regulamentação

A regulamentação das Big Techs não é cruzada contra tecnologia, mas contra um modelo predatório. A luta se conecta às batalhas do século passado contra a indústria do cigarro, que ocultou a relação entre nicotina e câncer, e contra mineradoras que poluem enquanto escondem danos ambientais. Em todos esses casos, enfrentamos corporações que colocam lucro acima da vida, manipulam informações e usam seu poder econômico para retardar mudanças.

Assim como foi preciso punir crimes ambientais e manipulações da ciência, hoje é urgente conter o poder das plataformas digitais, que moldam padrões de comportamento, influenciam governos e destroem vidas. Regular não é censurar; é estabelecer regras mínimas para que a lógica do lucro não destrua o tecido social.

Mas isso será apenas o começo. Precisamos repensar a engenharia das plataformas, limitar o alcance dos algoritmos e garantir que empresas transnacionais respondam ao interesse público. É uma disputa sobre o que cabe ou não na tela — e, mais profundamente, sobre o futuro que vamos construir fora dela.

Se queremos um projeto de sociedade em que ter e aparecer não sejam a tônica, como querem as plataformas digitais, será preciso disputar não só leis, mas também valores. E é aqui que a luta de parlamentares como Orlando Silva, e de movimentos que entendem que a comunicação é infraestrutura da democracia, se torna central. Sem essa disputa, corremos o risco de entregar o destino da nossa vida coletiva à próxima métrica de engajamento.

Joanne Mota é jornalista, membro do grupo de pesquisa Observa da Universidade Federal do ABC, diretora do Sindicato de Jornalistas de São Paulo (SJSP) e compõe a direção executiva do PCdoB na cidade de São Paulo.

Coluna do Barão é um espaço dedicado à publicação de análises e reflexões sobre a comunicação e questões como a política, a economia, a cultura e sociedade brasileira em geral. A coluna traz textos exclusivos de autores e autoras diversos, em sua ampla maioria, membros a Coordenação Executiva ou do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. O conteúdo dos artigos não expressam, necessariamente, a visão da organização.