
A primeira edição do Encontro Nacional de Comunicadores, Ativistas Digitais e Juventudes (1°EJUV), organizado pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, aconteceu entre os dias 23 e 24 de agosto no Armazém do Campo, na capital paulista.
Cerca de 160 jovens participaram do evento que contou com apoio do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), através do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), e patrocínio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
Por Tatiana Carlotti, para o Barão de Itararé
O EJUV debateu vários temas do eixo comunicação, ativismo digital e juventude. Foram sete mesas de debate, oficinas, atos, atividades culturais e a inédita possibilidade de jovens comunicadores de 11 regiões brasileiras se conhecerem.
Fechando os trabalhos da tarde de sábado (23/08), a quarta mesa redonda do evento debateu como a interseccionalidade de classe, raça, gênero e as pessoas com deficiência se insere no centro do debate da Comunicação.
Com mediação de Sarah Almeida, estudante de Relações Internacionais da Unila, participaram do debate Arthur Ataíde Ferreira Garcia, vice-presidente da Autista Brasil; o poeta e ensaista Zé Mariano, comunicador de Embu das Artes de São Paulo; Marcelo Correia, presidente da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro) e Giovana Batista, diretora da União Juventude Socialista (UJS) de Osasco.
Acompanhe o debate:
‘Estudante autista não é paciente, escola é ambiente de convívio’
O vice-presidente da Autista Brasil, Arthur Ataíde Ferreira Garcia, referência nacional na defesa de direitos da comunidade autista, fez duras críticas às políticas de educação voltadas para pessoas com deficiência no Brasil. Ele destacou a necessidade de romper com modelos segregatórios e reafirmou a importância da escola regular como espaço de convivência e aprendizado.
“Eu sou autista, sou ativista nessa causa desde os meus 11 anos de idade e hoje sou vice-presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas, a maior entidade de representação formada por pessoas autistas no nosso país”, relatou. Arthur chamou atenção para a ausência de estudantes com deficiência em espaços políticos de juventude, lembrando que o direito à educação inclusiva só se consolidou em 2008, com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
O ativista denunciou práticas no Paraná que considera retrocessos. Segundo ele, o governador Ratinho Júnior tem redirecionado recursos da inclusão para escolas especiais e APAEs, modelo que resgata uma lógica da ditadura militar. “As pessoas com deficiência não eram vistas como sujeitos políticos, mas como um peso para a sociedade. Se era vista como peso, não precisava de política pública, mas de filantropia”, disse.
“A estimativa é de que quase 2 bilhões de reais já tenham sido desviados da educação do Paraná para as APAEs. Esse valor seria suficiente para contratar profissionais de atendimento especializado em todas as escolas estaduais e municipais e ainda sobraria mais de 1 bilhão. Trata-se de um sucateamento deliberado, um projeto político de segregação, que reforça práticas que podemos compreender como parte da necropolítica”, destacou.
Ele também citou denúncias recentes contra a Federação das APAEs e a figura pública de Deolane Bezerra, investigada por suposta lavagem de dinheiro que chegaria a mais de R$ 100 milhões. Casos como esse, avalia, revelam “um sucateamento deliberado, um projeto político de segregação, que reforça práticas que podemos compreender como parte da necropolítica”.
Ele ressaltou ainda a violência do método ABA (Análise do Comportamento Aplicada) das escolas segregacionistas. “No lugar de garantir ensino e convívio, o que se via era algo mais próximo de adestramento animal: manipulação física de crianças autistas para forçá-las a comportamentos considerados aceitáveis, como manter contato visual”, afirmou. A prática, muitas vezes judicializada, movimenta cifras entre R$ 35 mil e R$ 50 mil por mês por criança, apontou.
“O aluno autista, na escola comum, tem direito de conviver com todos, de aprender junto com todos, de ser reconhecido como aluno, não como transtorno. Nas escolas segregadas, o que impera é o viés médico que reduz pessoas com deficiência a ‘déficits ambulantes’ que precisam ser corrigidos”, destacou.

Arthur relaciona esse processo à lógica neoliberal que transforma a deficiência em mercadoria. “Na Alemanha nazista, pessoas com deficiência eram exterminadas em campos de concentração. Hoje, no capitalismo neoliberal, em vez de exterminar, se busca lucrar com elas”, comparou, ao advertir que a extrema direita vem se apropriando da pauta do autismo em espaços de segregação.
“Se queremos um Brasil inclusivo e soberano, precisamos acabar com qualquer projeto de silenciamento dos corpos de pessoas com deficiência e com a mercantilização dessas juventudes. Estudante autista não é paciente. Escola não é clínica. Escola é ambiente de convívio”, afirmou.
‘Comunicação é o modo como as mobilizações acontecem’
O poeta, ensaísta e comunicador Zé Mariano, de Embu das Artes (SP), destacou em palestra recente a centralidade da comunicação para a mobilização popular e para a construção de um projeto democrático. Ele defendeu a interseccionalidade como chave para compreender as desigualdades e transformar a comunicação em ferramenta de emancipação coletiva.
“Minha trajetória passa pela organização política e pela comunicação, que sempre caminharam juntas no meu trabalho”, afirmou Mariano. Ele lembrou que começou sua atuação em 2018 e 2019, em campanhas políticas e movimentos sociais, e que mais tarde passou pela assessoria do deputado federal Alexandre Padilha, atual ministro da Saúde, e pela Secretaria de Relações Institucionais do presidente Lula.
“Falo disso com orgulho. O campo de onde eu vim é muito difícil para conquistar coisas, e essa caminhada é significativa não só para mim, mas para todos que compartilham dessa origem”, destacou.
Para Mariano, a comunicação vai além das redes sociais e das mídias digitais. “Ela não é apenas um instrumento ou ferramenta que usamos para determinado fim. A comunicação é a própria forma pela qual territórios se organizam e se estruturam. É o modo como as mobilizações populares acontecem”, disse.
“Quando trazemos a perspectiva da interseccionalidade — gênero, raça e classe — vemos outra potência”, afirmou, ao destacar o papel histórico do movimento negro na construção dessa perspectiva. Ele lembrou a atuação da Frente Negra Brasileira, nos anos 1920 e 1930, que reuniu intelectuais, ativistas e militantes de diferentes espectros políticos, organizando imprensa própria e criando um campo simbólico e cultural de resistência.
Ele citou os trabalhos da teórica Kimberlé Crenshaw que criou nos anos 1980 o conceito de interseccionalidade “para mostrar como os marcadores de diferença — raça, gênero, classe — não se somam de forma linear, mas se cruzam em encruzilhadas que produzem desigualdades. A interseccionalidade revela esse ponto de encontro entre opressões”, explicou.
“Quando olhamos para a Frente Negra, vemos como ela reunia sujeitos muito diferentes — comunistas, integralistas, pessoas de espectros políticos distintos — unidos em torno da organização do povo negro. Essa intersecção produziu potência política e territorial”, exemplificou.
Segundo Mariano, a compreensão da comunicação a partir da interseccionalidade abre a possibilidade de “disputarmos o simbólico” e “o imaginário da população brasileira”. Ele também citou exemplos da eficácia dessa disputa, como na campanha “Tem Gente com Fome”, organizada pela Coalizão Negra por Direitos durante a pandemia; na atuação das mídias independentes e negras contra a violência policial; na Marcha das Mulheres Negras, realizada em 25 de julho.
“Esses três exemplos mostram como a interseccionalidade, aplicada à comunicação e à organização popular, fortalece territórios e movimentos”, destacou.
Zé Mariano também frisou que a Comunicação precisa ser compreendida em sua dimensão política e coletiva. “Comunicação não é só ferramenta, é forma de organização; e a interseccionalidade é a chave para construir movimentos coletivos, emancipar sujeitos e mobilizar a sociedade rumo a um projeto popular e democrático”, destacou.
Nossas lutas não são ‘identitárias’
Na sequência Marcelo Correia, presidente da União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro), abordou os desafios da comunicação política no Brasil contemporâneo, criticou o behaviorismo nas escolas e defendeu uma perspectiva de comunicação voltada para o resgate histórico e a disputa simbólica contra narrativas hegemônicas.
“Eu detesto behaviorismo, principalmente dentro das escolas, porque carrega essa lógica de doutrinação no ambiente escolar. Essa doutrinação impõe uma narrativa hegemônica que nega a nossa história: apaga a história negra, a história das pessoas com deficiência, as resistências negras e femininas — que são a própria história do país”, afirmou.
Ele destacou que a violência também se manifesta nesse apagamento das resistências brasileiras, que são apresentadas como marginais quando sempre estiveram no centro da luta contra a subalternização. Marcelo destacou a necessidade de encarar a comunicação como um processo de construção coletiva de conhecimento e de resgate histórico.
“O que proponho — e proponho coletivamente — é uma ideia de comunicação que seja também um resgate histórico, epistemológico, de construção de conhecimento e das resistências que se fizeram no Brasil.” Ele também abordou os limites das redes sociais controladas por grandes plataformas. “Quando falamos de redes sociais, esbarramos no problema de elas pertencerem às big techs. Como contrapor isso? Sou estudante de filosofia; não trago respostas fechadas, trago perguntas para pensarmos juntos”, apontou.
Marcelo também lançou boas provocações ao campo progressista. “Como romper com setores da própria esquerda que vão chamar nossas lutas de ‘pautas identitárias’? Existe identitarismo neoliberal — é fato —, mas não dá para jogar ali todas as nossas lutas históricas de contra hegemonia e de enfrentamento ao capitalismo. A resistência negra é a história da luta contra o capitalismo no Brasil; o mesmo vale para a luta indígena”, afirmou.
Em sua avalição, é preciso diferenciar as lutas históricas da captura neoliberal. “A extrema direita é identitária; o nazifascismo é identitário, com sua ideia de arianismo. Nossas lutas não são ‘identitárias’ nesse sentido.”
Ele apontou vícios normativos e a interpretação distorcida de conceitos como “lugar de fala”. “Já entrei em debates criticando sem conhecer. Isso é um vício normativo que às vezes reproduzimos. Também precisamos situar uma parte da militância de internet quando transforma ‘lugar de fala’ em proibição de fala. ‘Lugar de fala’ quer dizer que narrativas historicamente negadas têm espaço para serem discutidas. Isso não impede que alguém de fora do grupo fale, mas exige responsabilidade”, pontuou.
E defendeu o uso criativo e didático das redes sociais para enfrentar a hegemonia. “Os memes, por exemplo, são forma de disputa de narrativa, e estão aí, sendo usados. O governo federal, por exemplo, fez um sobre taxação de grandes fortunas usando gatinhos — eu gostei. A disputa tem que ser didática quando falamos de redes sociais. Precisamos ser diretos, objetivos, sem margem para ambiguidade.”
Marcelo também exemplificou como vídeos de violência policial podem ser apropriados por discursos opostos. “Um mesmo vídeo pode ser usado tanto para denunciar a violência nazifascista quanto pela extrema direita para dizer ‘tem que matar bandido’. É a narrativa hegemônica operando. Como vamos contrapor isso, se não for de maneira didática nas redes?”, questionou.
Contra o apagamento do saber negro
A presidenta da União da Juventude Socialista de Osasco, Giovana, destacou em sua fala a importância de enfrentar o apagamento histórico da população negra e de compreender a comunicação como campo estratégico de disputa política.
Estudante de marketing e social mídia com mais de cinco anos de experiência, ela também preside o Diretório Central dos Estudantes da Anhanguera, instituição que, segundo afirmou, “é uma faculdade historicamente sucateada pelo capitalismo”.
Giovana destacou que a ausência de registro sobre as violências sofridas pela população negra revela como o epistemicídio e o apagamento histórico “resultaram na morte da consciência e do saber negro”. Ela lembrou que o Brasil é o país com maior população preta fora da África e citou iniciativas do pós-abolição que buscaram construir novas narrativas, como o jornal Homem de Cor, veículo pioneiro que apresentou a perspectiva da comunidade negra.
“Desde os primórdios, a disputa sempre foi pela narrativa. Hoje, nas mídias sociais, na TV, na rádio, o racismo estrutural ainda guia a comunicação, apagando e matando o conhecimento negro”, criticou.
Ela também denunciou o modo eurocêntrico como protagonistas históricos são apresentados. “Zumbi e Dandara são reduzidos a heróis individuais, enquanto o quilombo dos Palmares e toda a coletividade são minimizados. Isso desfaz a riqueza do conhecimento que herdamos.” Para ela, esse processo revela o epistemicídio e a tentativa de invisibilizar o saber negro.
Outro ponto ressaltado foi a resistência das religiões de matriz africana, que preservam a oralidade como forma de comunicação milenar. “Elas transmitem conhecimento pela oralidade — uma geração ensina à outra. Essa é uma forma de comunicação milenar, que transmite cultura, hierarquia e regras. É um saber essencial que o capitalismo tenta apagar, mas que resiste”, afirmou.
Ao analisar a comunicação política contemporânea, Giovana apontou como prefeitos como Rogério Lins, de Osasco, e João Campos, do Recife, exploraram formatos populares nas redes. “Rogério se elegeu duas vezes como ‘tiktoker’, sem propostas reais, esvaziando cofres públicos. João Campos inovou no marketing com um álbum de figurinhas de campanha. Esse é o tamanho do desafio que enfrentamos: compreender a comunicação política não só como propaganda, mas como disputa de território, opinião e mobilização”, avaliou.
Ela também fez uma crítica direta à esquerda que “não sabe comunicar com o povo”. “Nós nos fechamos numa bolha e esquecemos de traduzir conceitos como interseccionalidade para quem não tem nem o primeiro ano do ensino médio”, salientou. Em sua visão, é preciso “devolver a linguagem do povo para a comunicação da esquerda. Essa é minha motivação ao estudar marketing: fazer com que as pessoas entendam quem realmente luta por elas.”
Ao encerrar, Giovana questionou às mulheres negras presentes no encontro. “Vocês se sentem representadas hoje nas mídias e redes? Até quando vamos continuar perdendo essa disputa de narrativa? Nós precisamos vencê-la — e as redes sociais são uma ferramenta estratégica para isso”, apontou.