Por Renata Mielli* (publicado originalmente na revista Princípios)
Depois de 12 anos de um governo de conciliação com a mídia, parece que finalmente ficou claro que não é saudável para a democracia continuar convivendo com uma comunicação monopolizada e partidarizada como temos no Brasil.
O objetivo da edição 2397 da revista Veja era garantir a derrota da candidata Dilma Rousseff. A divulgação antecipada de sua capa foi tratada como a bala de prata da elite brasileira contra a esquerda e os “petralhas”.
Riram antes, choraram depois. Ficaram atônicos e sem compreender como foi possível a reeleição mesmo com a guerra sem tréguas travada pelos principais veículos de comunicação contra o governo, contra o Partido dos Trabalhadores, e contra a própria Dilma.
Na verdade, a capa do semanário dos Civita teve uma consequência provavelmente não considerada pelos seus editores: a imediata resposta de Dilma Rousseff feita no seu programa eleitoral contra os ataques sofridos. O discurso de três minutos e quarenta e três segundos talvez tenha sido uma das críticas mais contundentes da história feita por um presidente da República contra um meio de comunicação. E mais, pode ter sido a gota d’água para finalmente firmar convicções de que não é mais possível para o governo ignorar a necessidade de se realizar um amplo debate sobre um novo marco legal para as comunicações no país.
Mídia ideológica
O episódio Veja coroou o comportamento beligerante que os principais veículos de comunicação no Brasil já vinham dispensando contra o governo, a presidenta e o PT. Se ainda havia uma pequena máscara de civilidade e um verniz de imparcialidade por parte da mídia, estes desapareceram completamente durante o processo eleitoral. Ficou explícito como a mídia brasileira atua de forma coordenada e alinhada aos interesses da elite e de um projeto político conservador e de cunho neoliberal. Ou, como diz Bernardo Kucinski analisando a mudança do papel dos jornais diante das novas tecnologias: “eles estão ampliando a função ideológica. E a gente interpreta como um aumento, um abuso. Na verdade, eles mudaram de papel. Isso também ajuda a entender melhor a uniformidade ideológica e política da grande mídia, que é muito surpreendente. Todos são contra as mesmas posições e a favor das mesmas posições. Por quê? Porque ideologicamente representam os mesmos interesses”1.
Por estar vinculada a interesses econômicos, políticos e religiosos, a grande mídia no Brasil tem se colocado como adversária do interesse público e da democracia. Invariavelmente, os temas abordados partem sempre de um mesmo ponto de vista, sem ouvir visões distintas, adotando um discurso único que se coloca para todos como verdade e que se ampara na falsa visão de que estão praticando jornalismo isento, independente e imparcial.
Estudo produzido por um grupo de pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, batizado de Manchetômetro2, traduziu em números o posicionamento da mídia hegemônica na cobertura eleitoral. Os dados endossam as análises que mostram a atuação partidária da mídia brasileira. Segundo o levantamento realizado durante o período eleitoral, os três maiores jornais em circulação no Brasil (Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo) deram 212 manchetes de capa negativas à candidata Dilma Rousseff, enquanto para Aécio Neves as citações negativas somaram 44 manchetes e contra Marina Silva 59.
O Manchetômetro analisou, também, a cobertura do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão. No período que compreendeu a campanha eleitoral, do total de 6 horas e 30 minutos do telejornal, foram dispensadas 2 horas e 20 minutos de cobertura negativa contra Dilma Rousseff e apenas 7 minutos contra Aécio Neves. Contra Marina Silva, pasmem, nenhum minuto de notícia desfavorável foi veiculada. A desproporção é abissal.
A privatização da censura
Estas eleições deram exemplos muito concretos de como a mídia tentou conduzir a opinião pública para garantir os seus interesses eleitorais. Soma-se à abordagem estritamente eleitoral os sucessivos escândalos midiáticos produzidos seletivamente para atingir o governo e o PT e o uníssono discurso do Brasil em crise, como vimos na cobertura pré-Copa do Mundo. A mídia, cujo papel deveria ser oferecer informação à sociedade, está semeando desinformação e cometendo verdadeiros crimes contra a democracia.
Analisando os escândalos produzidos pela mídia, Kucinski desnuda o modus operandi destes veículos. “Em contraste com o jornalismo clássico, que trabalha com assertivas verazes para esclarecer fatos concretos, sua narrativa não tem o objetivo de esclarecer e, sim, o de convencer o leitor de determinada acusação, usando como fio condutores sequências de ilações. É ao mesmo tempo grosseira na omissão inescrupulosa de fatos que poderiam criar outras narrativas, e sofisticada na forma maliciosa como manipula falas, datas e números”3.
Ao omitir dados relevantes para esclarecer a sociedade, ao negar informação e obstruir o acesso de outros pontos de vista e análises sobre os temas que a mídia seleciona para noticiar, os donos dos veículos de comunicação estão praticando censura. A afirmação pode parecer dura, mas é o que de fato estamos enfrentando no Brasil: a censura privada dos meios de comunicação.
Ao fazer uma reflexão sobre a atuação da mídia privada no contexto da globalização, Venício Lima conclui que houve um deslocamento da prática da censura. “Dentro da realidade histórica globalizada do nosso tempo, a censura foi em parte privatizada e a origem do cerceamento da liberdade de expressão não pode mais ser atribuída somente ao Estado. Muitas vezes ela tem sua origem no poder econômico privado ou é autocensura”.4
Análise reafirmada por Pascual Serrano: “Um sistema de comunicação baseado na empresa e no mercado também não poderá garantir ao cidadão o direito de informar e ser informado. A interpretação distorcida do conceito de liberdade de expressão, apresentada como liberdade de imprensa, é o privilégio dos meios de comunicação privados. De fato, o que eles reivindicam é o direito à censura, a serem eles a escolher o que será divulgado ou não”.5
Regulação é regra mundial
A atuação política dos veículos de comunicação não é uma particularidade brasileira. Ela se intensifica em outros países seja para blindar governos neoliberais, seja para atacar projetos progressistas, como no caso das experiências na América Latina. O que distingue o cenário do Brasil é a ausência de regulação dos meios de comunicação, a inexistência de marcos legais que rejam a atuação econômica do setor e definam padrões mínimos de responsabilidade e proteção de direitos para a atuação da mídia. Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, França, Itália, Portugal, Alemanha, Espanha possuem leis e órgãos de regulação da comunicação. Portanto, a regulação dos meios de comunicação não se trata de nenhuma invenção “bolivariana” como a mídia brasileira está tentando cunhar.
O discurso blocado dos donos da mídia no Brasil contra a regulação não tem nada a ver com a defesa da liberdade de expressão. Muito pelo contrário. Ele objetiva única e exclusivamente a defesa dos interesses econômicos e políticos da mídia e da elite econômica.
Por isso, atacam toda e qualquer iniciativa de discutir o papel da mídia ou a regulação dos meios de comunicação e usam o seu poder para criminalizar e acusar de censores os que querem fazer essa discussão.
Omitem, no entanto, que mesmo a imprensa livre precisa atuar sob parâmetros rigorosos de ética e responsabilidade jornalísticas (que a maioria destes veículos não pratica). Manipulam a opinião pública dizendo que todo e qualquer mecanismo de proteção individual e coletivo – como o direito de resposta – é censura. Constroem falsos “consensos” afirmando que, em nome da liberdade de expressão, não pode haver regulação para a atividade da comunicação.
Nunca é demais ressaltar que são os indivíduos e não as corporações de comunicação os sujeitos de direitos humanos, e portanto, da liberdade de expressão. Em seu livro Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa, Venício Lima aprofunda o debate sobre o assunto mostrando como a mídia manipula estes conceitos para tentar impedir a discussão sobre a regulação. Ele cita uma reflexão do professor da Universidade de Tampere, Kaarle Nordenstreng sobre o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos no qual ele diz “a frase liberdade de imprensa é enganosa na medida em que ela inclui uma ideia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar a sua voz através da mídia”. Ele conclui “nada no artigo 19 sugere que a instituição a imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade”.6
Ilusão foi-se embora
Depois de 12 anos de um governo de conciliação com a mídia, parece que finalmente ficou claro que não é saudável para a democracia continuar convivendo com uma comunicação monopolizada e partidarizada como temos no Brasil.
Ao que tudo indica, caiu por terra a ilusão de que seria possível conduzir políticas de defesa da soberania, de integração regional, de desenvolvimento nacional com redução de desigualdades, inclusão e protagonismo social sem enfrentar a necessária democratização da comunicação no país.
Pelo menos, até o momento que finalizo este artigo, a presidenta Dilma aposentou o argumento do controle remoto, que marcou o seu posicionamento desde o início do seu primeiro mandato.
No período pré-campanha, enquanto preparava o seu programa de governo, Dilma já tinha sinalizado que iria incluir na proposta a “regulação econômica dos meios de comunicação”. Imediatamente veio em coro a reação da mídia, argumentando que a presidenta se curvava aos desejos de seu partido de censurar a imprensa. Pressão que resultou na retirada de qualquer menção ao tema no programa de governo que foi divulgado. Mas, mesmo sem aparecer formalmente, o assunto permaneceu vivo, e sempre que foi questionada sobre ele a presidenta era assertiva e reafirmava que fazer a regulação econômica da mídia seria um dos temas prioritários do seu segundo mandato.
A constatação de que não é mais possível adiar um amplo debate nacional sobre a regulação da mídia no Brasil vai ganhando cada vez mais corpo. Regulação esta que tem, claro, diferentes dimensões quando se trata de veículos que são concessionários de canais de rádio e televisão – e que nesta condição têm responsabilidades e obrigações muito mais explícitas a serem cumpridas – e quando se trata de jornais e revistas, que são uma atividade privada livre de licença prévia.
Contudo, ambas como atividade econômica e de comunicação precisam estar sujeitas ao que preconiza a Constituição e pautadas pelo respeito público. Não é mais possível que não haja um arcabouço legal atualizado para orientar estas atividades, garantindo de fato a liberdade de expressão para todos e todas, com espaços para a diversidade cultural e regional e pluralidade de ideias.
Combater o monopólio e garantir diversidade
Apesar de não ter explicitado sua proposta para a “regulação econômica dos meios de comunicação” algumas afirmações da presidenta Dilma, em particular criticando a existência do monopólio privado e da propriedade cruzada, nos dão pistas de por onde o governo deverá enfrentar a questão: pela regulamentação do parágrafo 5º do artigo 220 da Constituição Federal: “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”.7
Propor uma legislação infra-constitucional para garantir a aplicabilidade deste artigo já significará uma verdadeira revolução no cenário monopolizado da comunicação brasileira, no qual 10 “famiglias” dominam toda a cadeia produtiva de comunicação – da distribuição à produção de conteúdo.
Mas se for só até ai, a medida – apesar de importante – será muito insuficiente para promover a democratização dos meios de comunicação.
Para enfrentar a concentração da propriedade é indispensável regulamentar o artigo 223 da CF que prevê a distribuição do espectro para o sistema público, privado e estatal. Também é necessário aprovar leis que respeitem a diretriz constitucional do artigo 220, definindo a necessidade de fomentar a produção regional e independente.
Não se combate o monopólio, no Brasil, sem operar uma mudança nos critérios de distribuição das verbas de publicidade oficial, que alimentam a concentração e perpetuam os grandes veículos. Com base na “mídia técnica”, a distribuição das verbas se baseia na equivocada aferição do Ibope para os veículos da radiodifusão e nos números de circulação dos veículos impressos para justificar os volumes bilionários de recursos públicos injetados em empresas privadas para financiar a baixaria da mídia. Enquanto isso, a mídia alternativa, os pequenos e médios veículos de comunicação espalhados pelo Brasil minguam sem recurso, porque o governo se nega a reconhecer que é papel do Estado promover a diversidade e a pluralidade da mídia inclusive com financiamento.
Também não se pode construir pluralidade e diversidade com uma comunicação dominada pelo setor privado. É preciso fortalecer o campo público de comunicação (rádios e TVs comunitárias, educativas, públicas, universitárias, legislativas) para dar vazão a narrativas que se coloquem como alternativa ao que está estratificado pelo mídia comercial.
Sociedade já tem uma proposta
As organizações da sociedade que lutam pela democratização da comunicação, diante da recusa do governo – no primeiro mandato de Dilma – em liderar esta discussão de forma pública e ampla, tomou a iniciativa e elaborou o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática8 que propõem uma marco regulatório para a Comunicação Social Eletrônica.
Conduzido pela campanha Para Expressar a Liberdade, com a coordenação do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação – FNDC, o projeto com 33 artigos condensa propostas para regulamentar os artigos da Constituição que tratam da Comunicação Social Eletrônica.
Nele, ficam estabelecidos os percentuais para a divisão do espectro entre os três sistemas previstos pela Constituição em 1/3 para cada e definem instrumentos para financiar o sistema público de comunicação. São detalhados os critérios para a concessão da exploração do serviço de radiodifusão, com mecanismos transparentes e que garantam a participação social nos processos de outorgae proíbe que políticos sejam concessionários.
Entre as medidas para impedir a formação de monopólios e a concentração o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) propõe que o mesmo grupo econômico não possa controlar diretamente mais do que cinco emissoras no território nacional; que o mesmo grupo econômico não possa ser contemplado com outorgas do mesmo tipo de serviço de comunicação social eletrônica que ocupem mais de 3% do espectro reservado àquele serviço na mesma localidade.
No que diz respeito ao combate à propriedade cruzada, o PLIP propõe que uma prestadora não possa obter outorga para explorar serviços de comunicação social eletrônica se já explorar outro serviço de comunicação social eletrônica na mesma localidade, se for empresa jornalística que publique jornal diário ou ainda se mantiver relações de controle com empresas nestas condições. E, no caso das cidades com 100 mil habitantes ou menos, um mesmo grupo poderá explorar mais de um serviço de comunicação social eletrônica ou manter o serviço e a publicação de jornal diário desde que um dos veículos de comunicação não esteja entre os três de maior audiência ou tiragem.
O projeto também apresenta propostas para garantir a veiculação da produção regional e independente nas emissoras de radiodifusão, assegura o direito de antena para os movimentos sociais, define critérios para o exercício do direito de resposta e aponta diretrizes que precisam ser observadas para que a programação das emissoras observe o que preconiza a Constituição.
O Projeto de Lei de Iniciativa Popular para uma Mídia Democrática é, sem dúvida nenhuma, um importante aporte que o movimento social dá ao debate de propostas concretas de como regulamentar os artigos da Constituição Federal. Nenhuma das medidas contidas no PLIP pode ser enquadrada em censura. Pelo contrário, no seu artigo 24, parágrafo 1º é taxativo: “É vedada qualquer tipo de censura prévia, seja ela do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário ou de parte privada, observado o disposto no artigo 220 da Constituição”.
O déficit regulatório do Brasil no campo da comunicação é gigantesco e não pode ser enfrentado de forma meeira. O país precisa de um marco legal que leve em consideração um cenário de convergência de mídia, do fim da era analógica, aonde havia uma carência restritiva do espectro eletromagnético. Estamos na era digital, no mundo interconectado por redes de alta-velocidade. Vivemos o fim do paradigma que marcou a comunicação nos séculos passados – o da comunicação unidirecional, no qual havia um emissor que produzia e distribuía uma mensagem para um receptor passivo.
Se quisermos dar conta das tarefas imensas que o Brasil ainda tem pela frente para se consolidar como uma nação soberana, desenvolvida, moderna, inclusiva é vital que a sociedade brasileira possa falar, possa ver e ser vista, possa ouvir e falar. Para tanto é premente acabar com o monopólio midiático que adoece a nossa democracia.
Referências Bibliográficas
1 – KUCINSKI, Bernardo & LIMA, Venício A. Diálogos da Perplexidade, reflexões críticas sobre a mídia. Fundação Perseu Abramo, 2009, p 81.
2 – www.manchetometro.com.br
3 – Idem, página 121.
4 – Idem, página 43
5 – MORAES, Dênis & RAMONET, Ignácio & SERRANO, Pascual. Mídia, poder e contrapoder. Da concentração monopolítica à democratização da informação. Boitempo Editorial, 2013. p 81.
6 – LIMA, Venício A. Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa. Publisher Brasil, 2010, p 25.
7 – Constituição Federal http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.08.2014/art_220_.shtm
8 – Projeto de Iniciativa Popular da Mídia Democrática – http://www.paraexpressaraliberdade.org.br
*Renata Vicentini Mielli, jornalista, secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação