Agora sim, temos um mecanismo eficiente para proibir a divulgação das tais fake news: prisão. Calma, não fiquem muito animados. As penas de 2 a 8 anos de reclusão para quem divulgar mentiras vale apenas no período eleitoral e para os conteúdos contra candidatos e candidatas. Que vitória né! Mas, como dizemos na nova linguagem da internet: #SQN (só que não).
Por Renata Mielli e Sergio Amadeu da Silveira*, na CartaCapital
Nesta quarta-feira 28 uma sessão do Congresso Nacional (reunião bicameral entre deputados e senadores) para apreciar os vetos que o Presidente da República impôs às leis aprovadas pelos parlamentares, restituiu o parágrafo 3º do artigo 2ª da Lei 13.834/2019, que atualiza o Código Eleitoral. Vamos explicar.
A Lei 13.834/2019 tipificou como crime a denunciação caluniosa com finalidade eleitoral, ou seja, a pessoa que: “Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral” será punido com prisão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e ainda poderá receber multa.
Aí, em seguida, o legislador incluiu a pérola: “§ 3º: Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.”
Ambos os dispositivos têm uma aparente salvaguarda – o denunciante ou processante e a pessoa que divulgar ou compartilhar a informação só serão punidas se souberem que o candidato ou candidata é inocente. Ufa!
Mas, espera aí, como afirmar incontestavelmente que a pessoa que divulgou ou compartilhou a informação sabia ou não da inocência do acusado? E mesmo que saiba, a pena de prisão é proporcional para este tipo de crime?
O caso do kit gay é um exemplo interessante para usarmos. Durante a eleição, o TSE afirmou que a notícia de que haveria um kit distribuído nas escolas pelos governos Lula e Dilma para ensinar as crianças a serem homossexuais era mentira. E determinou a retirada de conteúdos relacionados a essa informação. Ocorre, que mesmo com o desmentido, muita gente continuou acreditando que a informação era verdadeira e continuou compartilhando.
O que é desinformação
O processo de formação da opinião pública é complexo, envolve a construção de significados que se cristalizam em crenças. O mesmo se aplica ao processo da desinformação.
Quando emitimos uma opinião, ela não pode ser considerada desinformação. Quando um colunista diz que “a democracia fracassou” isso não é fake news. É uma opinião. Todavia, se alguém disser que a “terra é plana” isso não é opinião, é uma desinformação. Temos um consenso científico, imagens de satélites, mapas precisos que demonstram que a Terra não é plana. Aqui a desinformação pode ser definida como algo que não existe, que não possui comprovação empírica.
Afirmar que a Amazônia não aumentou os focos de queimada com a gestão de Bolsonaro é desinformação, uma vez que os dados mostram que as queimadas se ampliaram em relação aos períodos anteriores. O maior problema da desinformação é a descontextualização ou a criação de vínculos causais onde eles não podem ser comprovados.
Por exemplo, Bolsonaro diz que combate privilégios com a reforma da previdência e mostra que funcionários públicos se aposentam com mais rendimentos que os trabalhadores do setor privado. Isso é mentira? É fake news? Sim, mas nenhum juiz irá prender o disseminador dessa desinformação. Porque existe uma informação procedente e confirmável de que os servidores públicos se aposentam com maiores ganhos que os trabalhadores do setor privado. Mas essa informação é incompleta. Primeiro, os servidores públicos não possuem FGTS, optaram pela estabilidade em detrimento de outras vantagens. Segundo, tratar do mesmo modo todas as carreiras do serviço público é um equívoco. Terceiro, juízes, procuradores e militares têm privilégios. Os militares têm vantagens superiores a todas as demais carreiras do serviço público. Muitos magistrados estranhamente recebem acima do teto constitucional. Todavia, a reforma da previdência manteve intactas essas vantagens e grandes diferenças desses extratos do funcionalismo. Como podemos notar, o desmonte dessa desinformação é complexa.
O filho de Bolsonaro, que ganhou uma embaixada do pai, afirmou que quem produz ciência e tecnologia no Brasil são as universidades privadas. Isso é fake news ou uma opinião? Não é “news” porque nenhum órgão de imprensa divulgou. Nem mesmo blogs como O Antagonista, pois a informação é inverídica. Não pode ser comprovada. Os dados indicam exatamente o oposto. Quem realiza pesquisas no país são as universidade públicas. Pergunto: um tipo de afirmação dessa, que forma o pensamento da extrema direita, gerará a prisão do seu disseminador? Os juízes prenderão o general que afirmou que quem pôs fogo na mata foram as ONGs?
Um deputado da direita subirá na tribuna e proferirá um discurso repleto de afirmações que são facilmente desmentidas pelos fatos. Ele será punido? Não, pois isso requer mudar o Artigo 53 da Constituição que diz “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. O seu eleitor, que divulgar nas redes sociais a desinformação proferida pelo deputado no parlamento, será punido? Será preso? Qual a fonte da desinformação?
Quando um famoso advogado de banqueiros afirmar nas redes sociais que Lula é criminoso, pergunto se ele será enquadrado na lei que considera fake news um crime? Os juízes irão condená-lo? Não, porque Lula foi condenado e está preso. Isso é um fato. Está preso porque Moro o condenou por um crime. Quando eu falar no meu Twitter que Moro e Dallagnol corromperam as funções essenciais da Justiça, o que ocorrerá? Poderei ser enquadrado na lei de combate? A chamada denunciação caluniosa não atinge a afirmação anterior, exceto se Moro ou Dallagnol forem candidatos?
Não se trata, de forma nenhuma, de ser condescendente com a desinformação e a mentira. Mas de compreender que o fenômeno da desinformação não é algo local, está diretamente relacionado com o modelo de negócios das grandes plataformas privadas na internet (Facebook, Google) e com o uso indiscriminado de dados pessoais, que alimentam fórmulas matemáticas (algoritmos) que direcionam conteúdos individualizados para potencializar seus efeitos.
Portanto, prender quem compartilha e divulga não é solução para este novo problema contemporâneo. Não estamos diante de um boato que circula no bairro, mas diante de um esquema que envolve muito recurso econômico com objetivos políticos.
Por isso, prender quem divulga fake news não vai impedir a circulação da fake news. É preciso “seguir o dinheiro” e desbaratar as fábricas de mentiras e enfrentar a discussão sobre o impacto negativo que esses novos monopólios digitais têm para a democracia. Monopólios que funcionam sem qualquer tipo de transparência e regulação de sua atividade.
Além disso, num momento em que o Estado está tomado por um grupo político de ultra-direita, que tem como agenda principal o enfrentamento ao “marxismo cultural” para “varrer os vermelhos do Brasil”, essa lei pode ser usada para reforçar a perseguição política contra comunicadores populares, blogueiros, ativistas digitais, movimentos sociais e contra a própria imprensa hegemônica. Ou esquecemos por um minuto que temos um presidente que quer calar toda e qualquer manifestação crítica e divergente?
Infelizmente, parte dos setores democráticos da sociedade endossou a ideia de que é preciso criminalizar as fake news. É compreensível, já que deputados, senadores, lideranças políticas, governadores, prefeitos têm sido alvo dessa indústria da mentira.
Mas a saída não está em sair prendendo as pessoas por divulgação de fake news. Já temos um problema grave com a superpopulação nos presídios.
Transformamos o correto combate à desinformação – que precisa ser feito com mecanismos de formação, de promoção de diversidade e pluralidade, de discussão sobre o funcionamento das plataformas – numa cruzada. Mentiroso bom é mentiroso preso virou o nosso bandido bom é bandido morto. Nem a morte é punição proporcional para um infrator, nem a prisão é punição proporcional para quem divulga desinformação.
Todo combate à desinformação precisa ser realizado com cautela. O Judiciário e o Ministério Público estão repletos de defensores da extrema direita. A chamada direita neorreacionária, a direita alternativa, os neo-populistas europeus utilizam a desinformação como estratégia política. Eles poderão utilizar a legislação de combate ao fake news para atacar quem está distribuindo informações verídicas e opiniões contra o neoliberalismo. Sem definir com precisão o que é fake, o apoio a medidas punitivas poderá ser apenas um grande tiro no pé.
*Renata Mielli é Secretária-Geral do Barão de Itararé e Sergio Amadeu da Silveira é integrante do Conselho Consultivo da entidade