23 de novembro de 2024

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Narrativas em disputa: comunicação política em tempos de coronavírus

A correria de nossos dias não se vive unicamente nas intermináveis rotinas modernas, caracterizadas por jornadas mais prolongadas e deslocamentos cada vez mais longos até os lugares de trabalho. A comunicação, o transporte e, quem diria, o vírus, também têm se contagiado de esta azarada vertigem de nossa modernidade tão atarefada.

Por Felipe Pineda Ruiz* / Tradução por Renata Mielli e Felipe Bianchi

A síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), mais conhecida como coronavírus e covid-19, apareceu na cidade de Wuhan, na China, no fim do anos e 2019, sendo a primeira epidemia da história expandida em questão de poucos dias. Suas antecessoras, como a peste negra (século 18), a cólera (século 19) e a gripe espanhola (século 20) chegaram a outros continentes em longas e lentas viagens de barco. Já a covid-19 se expandiu em horas, por todas as latitudes do planeta, através de aeroportos.

O novo coronavírus é a primeira pandemia vivida pelos seres humanos a nível global na era digital, considerando que o Sars, o H1N1 e a gripe aviária não alcançaram a mesma magnitude.

Esta conjuntura da epidemia tem servido para confrontar duas narrativas antagônicas, desde o terreno da comunicação política: a do status quo, por um lado, e a dos partidos e movimentos anti-hegemônicos, por outro.

Tal disputa pela narrativa vem servindo ao poder global para assimilar a atual conjuntura à outra, mediada pela guerra, na qual as metáforas bélicas pululam e emergem como respostas discursivas por parte dos Estados, não só para prepará-los institucionalmente para a crise, mas também para blindar psicologicamente seus concidadãos. Palavras como “luta”, “batalha”, “combate” e termos novos como “achatar a curva”, “paciente zero” e “estado de alarme fazem parte do marco discursivo com o qual diferentes governos enfrentam um inimigo invisível, o que torna difícil atacá-lo. 

Este marco discursivo belicista vem acompanhado de uma narrativa estatista baseada, segundo o argentino Cristian Secul em estudos referentes ao caso de seu país, em quatro pilares: Estado, solidariedade, unidade e ética. Para o autor, esses quatro eixos estão configurados como um “embasamento transcendental (de cuidado, resguardo e contenção), no qual a função solidária opera desde a integralidade e é a pedra fundamental da ‘luta contra a fome na Argentina’; a unidade é a chave para alcançar o famigerado ‘pacto social’ ou o ‘contrato social’ que dê conta de tapas as frestas (ao menos, em termos de relatos de inimizade); e, por último, a ética é a passarela que permite alcançar a justiça e a capacidade fraterna nas ações” [1].

Apesar da atuação midiático e institucional, as limitações dos discursos militaristas e estatistas em torno da pandemia têm sido colocados em evidência diante da inadequada gestão da crise e ante à possibilidade de responder às perguntas: O o que fazer se a ‘guerra’ se prolongar? Que respostas estruturais podem ser oferecidas para além da questão ideológica-comunicativa? Como falar de luta e combate aos doentes se as unidades de cuidados intensivos são insuficientes e débeis?

É justamente aí onde ambos discursos para afrontar a pandemia – tanto o militarista quando o estatista – têm encontrado uma válvula de escape: recorrer aos Estados de sítio ou de exceção para derrotar o inimigo interno, neste caso, o covid-19. Cunhado em 2007 pela jornalista Naomi Klein, em livro homônimo, o termo “doutrina de choque” emerge como uma saída calculada e drástica para o poder econômico e político mundial para as guerras, crises e catástrofes emergentes. 

Provado nas ditaduras do Cone Sul, na luta contra o terrorismo contra a Al Qaeda, no furacão Katrina, na crise econômica norte-americana (2008) e europeia (2011-2015), e na luta contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), este mecanismo têm dotado o poder global de ferramentas para decretar medidas econômicas e sociais contra as maiorias em tempos de exceção, valendo-se do medo induzido nas populações desde os meios massivos de comunicação.

Nesta conjuntura, esta noção de “choque”, de comoção, se expressa mediante à limitação das liberdades individuais e econômicas das pessoas, traduzida em quarentenas prolongadas, pacotes de medidas econômicas excepcionais, transferência de multimilionários orçamentos estatais ao setor financeiro global, militarização das ruas, penas de morte induzidas nos cárceres e poderes plenipotenciários às forças armadas dos estados para cometer todo tipo de arbitrariedade.

No entanto, diferente de outros períodos marcados por guerras, epidemias e fome, as sociedades mudaram, assim como a comunicação: o rígido verticalismo que dominava até a metade dos anos 1990, quando as cadeias nacionais, os canais de notícias a cabo e as publicações oficialistas predominavam sobre o grosso da comunicação, transmitindo mensagens governamentais, vem sendo superado por uma era digital regida pela Internet, na qual milhões de pessoas passaram de ser meros consumidores de informação a tornarem-se produtores e consumidores da mesma [3]. Este fenômeno explodiu principalmente com o “boom” do “.com” a fins da década de 1990 e princípios dos anos 2000 (web 1.0). Posteriormente, apareceram as redes sociais – Facebook, Twitter, Hi5, MySpace, fazendo com que tal interação torna-se ainda mais dinâmica e veloz.

O surgimento das redes sociais permitiu que o ativismo e a comunicação em rede se traduzissem na organização horizontal de protestos e manifestações políticas maciças em todo o planeta. Casos paradigmáticos como os da Primavera Árabe, Occupy Wall Street, e os Indignados na Espanha, converteram a comunicação digital em movimentos políticos em todo o mundo. A partir desse processo de ascensão das mobilizações e de reconstrução de sentidos, apareceram partidos com o 5 Estrellas (Itália), Syriza (Grécia), Podemos (Espanha) e os Socialistas Democráticos da América, uma ala ligada ao Partido Democrata liderada por Bernie Sanders.

E foram precisamente as redes sociais que mudaram a correlação de forças nessa situação atual, dominada pelo Covid-19. Nos epicentros das democracias ocidentais e em suas periferias, é cada vez mais difícil ocultar números, mortes, negligências e atos de corrupção. A velocidade flui mais rápido que a própria censura, as redes foram responsáveis por destacar as rachaduras nos estados de bem-estar social, bem como a fome e a pobreza estrutural, em dezenas de países.

A pobreza endêmica que a Covid-19 desnudou, revela o fracasso do modelo econômico hegemônico global, colocando em evidência os limites do neoliberalismo. A crise, por sua vez, serviu para colocar no centro do debate a desigualdade predominante e para converter em coletivo e massivo o sofrimento individual do “salve-se quem puder”, que fragmenta os laços de fraternidade e cooperação. Os panelaços em diferentes lugares do mundo, e a solidariedade entre vizinhos, restabelecem o tecido social  perdido por décadas no presente.

Mesmo assim, a dinâmica das redes e a multiplicidade de meios de comunicação contra-hegemônicos e alternativos moderados – The Guardian, Washington Post, Publico.es, The Telegraph, La Silla Vacía, para citar alguns exemplos – é o que tem permitido colocar em evidência a verborragia discursiva e a incapacidade do populismo de direita – Trump, Orban, Añez, Bolsonaro — e do populismo de esquerda — López Obrador, Ortega, Maduro – , e do neoliberalismo de centro – Macron, Duque, Merkel, Piñera – em dar soluções concretas às prioridades da epidemia – reduzir o número de infectados, aumentar a capacidade instalada dos hospitais e dotar as UTI’s de respiradores. 

No entanto, o populismo de direita tentou usar a conjuntura como um terreno fértil para exacerbar vários nacionalismos e colocar no centro a noção de inimigo interno e externo. Como Slavoj Zizek aponta em um artigo recente “A atual expansão da epidemia de coronavírus desencadeou as epidemias de vírus ideológicos latentes em nossas sociedades: notícias falsas, teorias da conspiração paranóicas e explosões de racismo”. [4]

Como resposta, a cidadania crítica em diferentes lugares do planeta tem conseguido viralizar em tempo real os desprezo de Trump e Bolsonaro pela ciência e pelos infectados com o Covid-19. Milhões de pessoas estão podendo ver, comentar e compartilhar nas redes o vídeo de Trump mudando seu tom com respeito à pandemia[5], e o de Bolsonaro referindo-se à ela desdenhosamente como uma “gripezinha”[6].

Da mesma forma, a comunicação digital, tão viral quanto o coronavírus, permitiu que a ação presencial dos observatórios, ONGs, coletivos, setores políticos de oposição e grupos de pressão passassem a atuar a partir das redes sociais. Como resultado, os organismos de controle estatais canalizaram parte das alegações de corrupção para acompanhar e fazer alertas precoces [7]. No caso colombiano, não teria sido possível evidenciar como diferentes governos locais no país acabaram por incorrer em custos altos custos para ajudar as populações vulneráveis, nem desvelar como estão realizando gastos suntuosos em campanhas de comunicação, análise de mídia, publicidade institucional, banners, cartilhas e outros itens distantes das prioridades exigidas pela pandemia. Muitos desses contratos só podem ser revertidos por conta da pressão cidadã.

Por outro lado, esta conjuntura também tem servido para que a biopolítica, ou seja, a relação entre a vida biológica e a intervenção política, ganhe protagonismo. Na obra “Biopolítica e Coronavírus”, o filósofo italiano Roberto Esposito assinala como este processo duplo de medicalização da política e politização da medicina é trazido à tona de forma radical na questão da covid-19 quando afirma que “a política, desvanecendo suas coordenadas ideológicas, tem acentuado cada vez mais um caráter protetor contra riscos reais e imaginários, perseguindo temores que, à risca, ela produz a si própria. Por outro lado, a prática médica, apesar de sua autonomia científica, não pode deixar de ter em conta as condições de contexto dentro das quais opera. Por exemplo, as consequências econômicas e políticas que determinam as medidas sugeridas” [8].

Este processo duplo também afetou a comunicação. Assim como os tecnocratas, políticos intelectuais e economistas tiveram que aprender sobre a pandemia, os médicos se depararam com a necessidade de adaptar a sua forma de comunicar os tecnicismos de sua área para torná-los legíveis e inteligíveis para a população. A comunicação científica também foi contagiada pela imediatez viral das redes ao se deparar com documentos não revisados em repositório. Esta rapidez tem trazido, como consequência, a proliferação de correntes de whatsapp com estudos falsos sobre a pandemia ou prints difundidos sem nenhuma comprovação.

Em suma, a pandemia do coronavírus tem servido para que a comunicação política alternativa consolide uma plataforma de reflexão e ação que combate o imobilismo e permite que perspectivas teóricas contra-hegemônicas emerjam para disputar o sentido comum ao modelo cultural e econômico dominante mediante formação política em redes sociais. Esta pedagogia tem como objetivos: 1) re-instalar noções de solidariedade e coletividade, destruídas por 40 anos de neoliberalismo; 2) assinalar os perigos do livre mercado e seu papel de minar os estados de bem estar social e o Estado social de Direito nas democracias ocidentais; e 3), exigir modelos e organismos de cooperação que transcendam as fronteiras nacionais.

[1] Felipe Pineda Ruiz, Investigador social de la Fundación Democracia Hoy y el Centro de Estudios Sindicales y Populares (Cesipor), publicista, director del Laboratorio de Innovación Política Somos Ciudadanos.

[2] Secul Giusti, Cristian Eduardo. Un escenario en suspenso. Repositorio institucional de la Universidad Nacional de La Plata, facultad de periodismo y comunicación social, marzo 27 de 2020. Fuente: http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/92258

[3] Solis, Marie. Coronavirus Is the Perfect Disaster for “Disaster Capitalism”. Vice Magazine, marzo 13 de 2020.

[4] El término Prosumidor fue acuñado por el norteamericano Alvin Toffler en 1981, quien lo incorporó a su libro “la tercera ola”. Este concepto designa a un individuo que siendo consumidor realiza actividades de productor. En el caso actual un usuario de redes sociales se convierte en prosumidor cuando crea contenidos y luego los comparte en alguna plataforma digital.

[5] Zizek, Slavoj. Coronavirus is ‘Kill Bill’-esque blow to capitalism and could lead to reinvention of communism. Website Russia Today, febrero 27 de 2020. Fuente: https://www.rt.com/op-ed/481831-coronavirus-kill-bill-capitalism-communism/

[6] Archivo de video]. Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=NezEbDx4B9A

[7] El Mundo. (2020, marzo 25). Bolsonaro compara el coronavirus con un ’costipadillo’ y llama a volver a la normalidad. [Archivo de video]. Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=3eilC0rjgns

[8] Contraloría General de la Nación. Boletines de prensa del año 2020.

[9] Esposito, Roberto. I partiti e il virus: la biopolitica al potere. Website La Reppublica, febrero 28 de 2020. Fuente: https://www.filco.es/biopolitica-y-coronavirus/

*Felipe Pineda Ruiz é pesquisador social da Fundação Democracia Hoy e do Centro de Estudos Sindicais Populares (Cesipor), publicitário e diretor do Laboratório de Inovação Política Somos Ciudadanos

Publicado originalmente na ALAI