As recentes alterações nas Diretrizes da Comunidade anunciadas pela Meta, empresa de Mark Zuckerberg que controla Facebook, Instagram e Threads, suscitam preocupações éticas e sociais profundas. A decisão de encerrar os programas de checagem de fatos, além de flexibilizar regras sobre conteúdo considerado ofensivo, cria um ambiente digital que não apenas tolera, mas potencialmente incentiva a disseminação de desinformação e discursos de ódio.
Arthur Ataide Ferreira Garcia, Guilherme de Almeida e Ergon Cugler*
O fim da checagem de fatos, substituída pelas chamadas “Notas da Comunidade”, transfere a responsabilidade pela moderação de conteúdo para os usuários, em um modelo similar ao adotado pelo X (antigo Twitter), de Elon Musk. Tal modelo cria uma ilusão de democracia, mas, na prática, favorece a validação de crenças pessoais e narrativas populares em detrimento dos fatos.
Ao validar informações baseadas na opinião da maioria, essa dinâmica reflete o conceito de pós-verdade, no qual emoções e crenças individuais se sobrepõem à evidência científica, criando um terreno fértil para manipulação e polarização. A pseudodemocratização também desresponsabiliza as plataformas, que se isentam de sua obrigação ética e legal de combater a desinformação, deixando os usuários vulneráveis a um ambiente digital hostil, com isso, a “tirania da maioria” nas Notas da Comunidade, reforçadas por algoritmos, podem moldar o que é considerado “verdadeiro”, independentemente da realidade objetiva.
A desinformação como ameaça à comunidade autista
Entre os exemplos mais nocivos estão os mitos de que vacinas causariam autismo, um argumento refutado por diversos estudos científicos e pelo Ministério da Saúde. Esses mitos, porém, continuam a circular e a influenciar opiniões em nichos que utilizam as redes sociais para disseminar informações falsas, perpetuando medos infundados sobre imunização e desviando o foco das reais necessidades de pessoas autistas. A mudança nas Diretrizes da Comunidade da Meta, alinhada ao governo Trump e suas interpretações da realidade, cria um terreno fértil para o avanço do discurso antivacina, especialmente por permitir a propagação de desinformação sob o pretexto de liberdade de expressão. Com as Notas da Comunidade, as agências de checagem de fatos são asfixiadas de seu papel e resta o senso comum em uma enquete da plataforma para julgar se as vacinas causariam ou não autismo, por exemplo.
Enquanto isso, muitas crianças autistas são submetidas a tratamentos baseados em pseudociência, resultando em danos graves à saúde, que vão desde intoxicação até traumas emocionais. As alterações também podem aumentar a desinformação sobre o próprio autismo, reforçando estigmas como a ideia de que é uma condição “curável” ou que pessoas autistas não são capazes de levar uma vida plena e autônoma. Exemplo disso é a circulação recorrente de desinformações sobre o uso de dióxido de cloro (ClO2) para supostamente “prevenir o autismo” ou “curar o autismo” de crianças e adolescentes. Essa mesma mentira, por exemplo, poderia receber um selo de “verdadeira” a partir de uma Nota da Comunidade que contasse com votos suficientes de usuários que fizessem parte do grupo de venda clandestina de dióxido de cloro.
Outro aspecto alarmante dessa mudança é o fortalecimento da indústria do autismo, um mercado lucrativo que se baseia na venda de soluções para o que nem sempre é um problema. Terapias que prometem “curar” o autismo, medicamentos “milagrosos” e estratégias de repressão de comportamentos naturais são apenas alguns dos exemplos desse mercado, que prospera alimentando estigmas e medos em torno da neurodiversidade. Com a flexibilização das diretrizes da Meta, esses atores agora têm um ambiente propício para expandir suas atividades sem nenhuma restrição.
Isso abre as portas para uma exploração ainda maior das famílias e indivíduos que, por falta de informações confiáveis, se tornam alvos fáceis de produtos e terapias ineficazes, muitas vezes abusivas e perigosas. Pior ainda, essa narrativa também mina os avanços conquistados pela luta das pessoas com deficiência. Promover a ideia de que autistas, e pessoas com deficiência em geral precisam ser consertadas legitima práticas que priorizam a aparência de normalidade em detrimento da saúde, autonomia e bem-estar das pessoas autistas. Reforçam a violência do regime de tutela que exerce controle sobre os corpos de pessoas com deficiência, perspectiva responsável por décadas de tortura psiquiátrica e manicomial. Esse cenário fortalece não só o capacitismo, mas também a desumanização dos indivíduos que não se enquadram nos padrões de funcionamento social considerados “aceitáveis”.
Discurso de ódio e estereótipos: a “liberdade” que violenta
Conforme destacado, as novas diretrizes irão remover proteções e barreiras para ataques à grupos marginalizados, dentre os quais estão incluídas pessoas com deficiência e inclusive pessoas autistas. Ao direcionar a moderação única e exclusivamente para “terrorismo, exploração sexual infantil, drogas, fraudes e scams”, quaisquer publicações de conteúdo violento, mutilação, linchamento virtual, e perseguições contra pessoas com deficiência perderão a possibilidade de denúncia, especialmente se houver pretexto religioso.
A nova versão das diretrizes também legitima conteúdos que associem condições “mentais” ou “anormais” a grupos minoritários, como revelado por anúncio da Meta que passa a permitir que usuários classifiquem gays e trans como “doentes mentais”. É importante destacar que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a homossexualidade foi retirada da lista de doenças mentais em 1990, e a transexualidade em 2018. Portanto, a classificação de identidades LGBTQIA+ como transtornos mentais não encontra respaldo na comunidade científica internacional.
A permissão para postagens que questionem a presença de pessoas (dentre as quais autistas) em certos ambientes, como escolas e locais de trabalho, além de ser discriminatória, ignora a legislação de vários países que protege o direito à educação e ao emprego de forma inclusiva. No Brasil, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) garante direitos fundamentais às pessoas com deficiência, incluindo aquelas dentro do espectro autista. Contudo, a disseminação de estereótipos em plataformas digitais têm impacto direto na forma como esses direitos são percebidos e aplicados na sociedade.
O ambiente hostil criado por essas mudanças não se restringe ao plano da comunicação; ele tem consequências reais na saúde mental de pessoas autistas e seus familiares. Famílias de crianças autistas também relatam o impacto negativo do estigma social em suas rotinas, incluindo dificuldade para acessar serviços públicos e privados devido a preconceitos perpetuados nas redes. A falta de uma moderação eficiente contribui para um ciclo de exclusão que prejudica não apenas o bem-estar individual, mas também as relações familiares e comunitárias. A defesa de que as plataformas digitais devem priorizar a liberdade de expressão é um argumento recorrente em discursos de lideranças como Mark Zuckerberg. Contudo, ao privilegiar essa retórica sem considerar os impactos sobre grupos vulneráveis, a Meta acaba se tornando cómplice na perpetuação de injustiças sociais.
As redes sociais operam muitas vezes como o único espaço seguro de socialização para inúmeras pessoas autistas que se sentem hostilizadas pela intensa invalidação de sua condição e o capacitismo presente nas dinâmicas das relações do mundo fora das redes. Judy Singer, criadora do conceito de neurodiversidade, compara as redes sociais e tecnologias a próteses para pessoas autistas, ferramentas essenciais que permitem compensar dificuldades e ampliar a acessibilidade nas interações. Permitir que essa invalidação e hostilidade se proliferem no mundo virtual ameaça alienar essa população de qualquer tipo de interação social, intensificando sua solidão. Além disso, potencializa o medo de que as mais cruéis violências de uma sociedade neuronormativa se aliem às pautas de pânico moral e perseguição de minorias, essenciais nos discursos políticos de neofascistas que veem suas existências como uma ameaça à sociedade.
Assim, a reflexão pode ser sistematizada em três pontos: 1.) Estabelecer as Notas da Comunidades como parâmetro de verificação de fatos traz uma tirania da maioria, pois suprime as vozes de especialistas em detrimento do volume de quem grita mais alto, abrindo mais espaço para desinformações que podem resultar em danos reais às vidas das pessoas autistas; 2.) Legitimar discriminações demográficas, de gênero, ou de identidade (como o autismo) não se trata de “mais espaço para o debate” como afirma a Meta, mas de assegurar um ambiente seguro para quem discrimina, ao mesmo tempo que um ambiente hostil para quem é discriminado; 3.) Ao lado de demais grupos marginalizados, a comunidade de pessoas autistas poderá ser uma das mais prejudicadas com essas mudanças, trazendo impactos diretos não apenas sobre a integridade da informação consumida diariamente nas redes sociais, mas até mesmo para que autistas sejam rotulados como “retardados” a serem curados por gurus da internet, os quais impulsionam as suas vozes com Notas da Comunidade apoiadas por um senso comum enviesado e estereotipado.
*Arthur Ataide Ferreira Garcia é autista, graduando em medicina pela Unimes, Vice-Presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas, ativista político pela neurodiversidade, primeiro cidadão autista a criar uma Lei Estadual no país
Guilherme de Almeida é autista, doutorando (bolsista CAPES de Excelência Acadêmica) e Mestre em Educação pela UNICAMP. Presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas e único pesquisador brasileiro membro do Stanford Neurodiversity Project
Ergon Cugler é autista, graduado e pós-graduado pela USP, mestre em administração pública pela FGV. Atualmente é pesquisador associado à pós-graduação da Universitat de Barcelona. Contribui também com a estratégia nacional de enfrentamento à desinformação