O Centro de Mídia Alternativa Barão de Itararé reuniu, no último dia 24, o historiador Francisco Teixeira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a cientista política Camila Rocha, diretora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e o jornalista Renato Rovai, diretor da Revista Fórum, para debater a situação, a organização e a incidência da extrema-direita hoje no Brasil.
Por Tatiana Carlotti, para o Barão de Itararé
Mediado por Anderson Moraes, do jornal Empoderado, TV Fórum e da diretoria do Barão de Itararé, o debate abordou as fissuras do campo autoritário, as perspectivas eleitorais com Bolsonaro réu e inelegível, e como o campo democrático e popular pode enfrentar a extrema direita na política e na comunicação.
No hospital, onde se encontra após uma cirurgia para o tratamento de uma obstrução intestinal, Bolsonaro agrediu verbalmente a oficial de justiça que lhe entregou a intimação do julgamento que lhe aguarda no Supremo Tribunal Federal (STF), no qual é réu por envolvimento na intentona golpista de 8 de Janeiro.
“Eu vi a cena e achei absolutamente normal”, apontou Moraes, ao questionar os debatedores sobre a forma desrespeitosa como a extrema direita lida com as instituições do país.
Ao comentar o episódio, a cientista política Camila Rocha destacou com a lisura do oficial de justiça, mencionando as dificuldades do poder público na entrega dessas intimações e a oportunidade vista por Bolsonaro para alavancar as redes sociais a partir da polêmica.
“Há todo um uso nas redes sociais de recortes de vídeos que são postados e, às vezes, a própria mídia tradicional acaba utilizando esses recortes. Isso é uma estratégia do campo da extrema direita há bastante tempo”, apontou.
“O jeito que o Bolsonaro sempre tratou a imprensa durante o governo dele é bastante significativo deste tipo de tratamento. A oficial de justiça é uma funcionária pública que está ali cumprindo o seu dever”, frisou.
Para o professor Chico Teixeira fato de ser uma funcionária pública mulher fez a diferença nos berros dados por Bolsonaro e na sua tentativa de conduzir o processo de intimação.
“Isso explicita, mais uma vez, o caráter falocrata, misógino e patriarcal desse pensamento da direita e da extrema-direita brasileira”, que vem crescendo no mundo inteiro e “que nega princípios civilizatórios básicos, construídos ao longo de décadas”, apontou.
Teixeira também citou o espetáculo “nazista e supremacista branco”, da Polícia Militar de São Paulo. “Numa república constitucional, com leis vigentes que criminalizam o uso da suástica você, ter uma cerimônia como aquela que foi vista em São Paulo marca muito bem que a direita está aí, firme, e mais do que isso: ela está dentro das instituições republicanas”, alertou.
A extrema-direita ainda tem força?
Ao responder a questão acima, o jornalista Renato Rovai destacou que, do ponto de vista eleitoral, “a extrema direita se saiu muito bem na eleição de 2024”, quase levando Pablo Marçal, “que se apresentou com uma face extremista de direita total”, para o segundo turno na maior cidade do país.
Em relação às pesquisas para 2026, “a extrema-direita está muito forte ainda”, apontou, lembrando que nas pesquisas em que não ganha, com 2 a 3 pontos de diferença, o presidente Lula empata com Bolsonaro. Em 2022, a diferença entre os dois nas pesquisas era de 10 a 15 pontos, com vantagem para o petista.
Em termos de organização nas redes, “eles também continuam muito fortes; são eles que chamam para o embate”, observou o jornalista ao citar a ação das redes em torno do PIX, com destaque para o papel de Nicolas Ferreira na derrubada da popularidade do presidente Lula, imprimindo junto à população a marca de um “governo que taxa”.
Em relação às mobilizações de rua, Rovai avaliou que, “de fato, a extrema-direita perdeu o protagonismo e a força. Ela não tem conseguido levar mais a quantidade de pessoas que levava”.
Em sua avaliação, o 8 de Janeiro foi um marco para diminuir as mobilizações. A questão agora é se a extrema direita conseguirá resistir e manter Bolsonaro com força na disputa, mesmo na prisão, ou se ele irá “se tornar um espectro político devorado pelas hienas que já estão cercando o seu corpo, atrás do espólio político”, destacou.
Preso, a popularidade de Bolsonaro pode aumentar?
Segundo Rocha, em relação à prisão, os eleitores de Bolsonaro se dividem. De um lado, estão os que o apoiam, independentemente do que acontecer, adotando o argumento da extrema direita de que ele está sendo injustiçado e perseguido. “Essa é uma narrativa muito usada que surte efeito no eleitorado mais fiel de Bolsonaro”, observou.
Do outro lado, há um eleitorado não tão fiel assim. “São pessoas que votaram basicamente no Bolsonaro contra o Lula, mas que não defendem todas as pautas que o Bolsonaro defende” e que, diante da prisão, “vão abandoná-lo como referência e focar em outros candidatos”. Para este grupo, é melhor que um outro candidato dispute a corrida eleitoral em 2026.
Ela também contou que “os eleitores de Bolsonaro têm muita referência nos protestos como uma espécie de índice de popularidade, eles olham os protestos para saber se o Bolsonaro ainda está bastante popular ou não”.
Ela informou que houve na extrema-direita uma disputa sobre a pauta puxada nas manifestações. “Eles sabem que a pauta da anistia não mobiliza as pessoas. Não é uma pauta que empolga os próprios eleitores de Bolsonaro. A pauta que mais empolga hoje é puxar um protesto contra Lula, pelo seu impeachment”.
Rocha destacou ainda que, apesar de menores, os protestos da extrema direita ainda têm mais pessoas do que os da esquerda. “Eles conseguem ter uma presença avassaladora nas redes sociais”.
Neste sentido, os influenciadores e quem está “fora da política” têm um papel de destaque. Segundo pesquisa Quest, “26% do eleitorado brasileiro hoje quer pessoas de fora da política. Isso é maior do que o número de pessoas que querem Bolsonaro ou Lula em 2026”, contou. Esse número cresce para 40% quando são incluídos os eleitores que anularam os votos em 2022.
“É interessante notar como o campo da extrema-direita está muito mais aberto para receber essas pessoas de fora da política, principalmente os influenciadores digitais”, avalia, destacando que o influenciador de um determinado nicho consegue, muitas vezes, falar com outros públicos, “o que não acontece na esquerda”, observou.
O pior é que a maior parte hoje dos grandes influenciadores estão muito mais alinhados a discursos conservadores e à extrema direita. “Isso é um outro sinal de como a extrema direita continua muito forte”. O que é preocupante, em sua avaliação, é alta capacidade de renovação e de abertura a figuras outsiders, na medida em que a extrema direita tem uma “política ativa de, eventualmente, recrutar influenciadores para os seus quadros”.
Mulheres são o principal grupo de contenção da extrema-direita
Questionada por Moraes se existem dados sobre como as mulheres e os mais vulneráveis enxergam os atos envolvendo a extrema direita, Rocha destacou que não somente no Brasil, mas em outros países, “as mulheres são o principal grupo de contenção da extrema direita”, enquanto o voto [na extrema direita] “é sempre mais masculino”.
Isso pode ter diferenças, apontou. Na Argentina, por exemplo, os jovens votaram muito no [Javier] Milei, enquanto, no Brasil, são os mais velhos que votam em Bolsonaro.
Outro aspecto é que quanto mais pobre e mais baixa a escolaridade, as pessoas tendem a não votar em Bolsonaro. O quadro, porém, gira em relação aos que tem uma maior renda e uma baixa escolaridade, que são muito mais propensos a votar na extrema direita. O papel da religião também impacta nos votos, “cerca de 2/3 do eleitorado evangélico vota em Bolsonaro ou em candidatos da extrema direita”.
Ela também salientou que quando Bolsonaro manifesta misoginia ou defende os interesses dos mais ricos, como na sua oposição à taxação dos super-ricos, isso ajuda muito o campo progressista de esquerda nas redes.
Na sequência, o historiador Chico Teixeira sintetizou dois aspectos sobre a atuação da extrema direita: o fato dela ter um efeito de arrastão sobre a direita, que é uma força política, eleitoral e social no Brasil; e o fato de um quarto mandato do PT depender da presença de Lula nas eleições.
“Tirando o Lula dessa equação, nós não temos nenhuma garantia de um novo mandato e de uma aliança de centro-esquerda no país”, lamentou.
Ausência de política
Ele citou ainda a imensa capacidade da extrema direita de puxar pautas e mencionou um tema chave: a comunicação do governo. Em sua avaliação, a força da extrema-direita muitas vezes é dada como consequência de um erro de comunicação do governo Lula.
Em sua avaliação, o problema não se trata de “erro de comunicação do governo”, mas de “ausência de política”. “É um governo que não está fazendo política. Não está acionando os agentes políticos que deveriam ser acionados. Não podemos imaginar que vamos ter um tráfico na internet diferenciado se não conseguirmos acionar os sindicatos, as organizações e associações estudantis”, afirmou.
“É um erro de diagnóstico de falar que tem erro de comunicação, quando na verdade há uma ausência de política”, reiterou.
Na sequência, Rovai concordou “em gênero, número e grau” com o historiador. “A comunicação é uma corrente de transmissão da política” e “pessoal não se posiciona”, lamentou.
Destacando que “os deputados parlamentares que estão na ação política da extrema direita são muito mais militantes do que os nossos”, Rovai lembrou que os atuais ministros quase não falam sobre o que estão fazendo. “Isso é um problema de comunicação ou de política? Eu acho que de política, porque eles não querem enfrentar embates políticos”, salientou.
Rocha, por sua vez, considerou a existência de um problema político, mas frisou que há problemas na comunicação do governo. “O Lula foi presidente em uma época que não funcionava da mesma forma que funciona hoje. O número de pessoas sem acesso a internet é ínfimo. Mais de 90% dos brasileiros, mesmos os vulneráveis, tem algum tipo de acesso”, frisou.
Ela lembrou que o vídeo de Nicolas Ferreira atingiu 300 milhões de visualizações, “algo que a esquerda e o campo progressista não conseguem”. Em sua avaliação, não só há um problema de distanciamento das bases tradicionais, mas temos um governo com dificuldades em propor políticas para trabalhadores que não se encaixam em categorias tradicionais, como os motoboys, motoristas de Uber, prestadores de serviço que trabalham com PIX.
“Não estamos conseguindo conversar com setores gigantescos das classes trabalhadoras do Brasil de forma adequada. Aí vem a extrema direita e ocupa esse lugar”, salienta.
“A questão da agenda está conectada a uma questão de comunicação porque muda o jeito das pessoas se organizarem politicamente”, acrescenta.
Mídia independente
Na última pergunta do debate, Moraes levantou a questão sobre como podemos, de forma prática, enquanto mídia, contribuir para as eleições de 2026.
“Do ponto de vista de comunicação, respondeu Rovai, é preciso fazer o que sempre fizemos: mídia independente. Denunciar a extrema direita quando for para denunciar, abrir espaços para debates, denúncias e defesa dos direitos humanos, trazer a pauta ambiental para essas mídias, além da defesa das questões de gênero, racial, denunciando a violência nas periferias.
“Nós temos que fazer esse trabalho. Nosso papel não é fazer política partidária, não é fazer confronto com deputado, isso é papel de outro deputado”.
Rovai também ressaltou que as mídias independentes progressistas têm um tamanho aproximado das mídias de extrema direita. “Eles têm algumas maiores, mas tem menos em quantidade, não dão ‘um baile’ em nós, em termos de mídia.
Porém, quando se pega a questão dos influencers, a história muda. “Eu tenho um veículo de comunicação, não vou sair aí pagando de maluco e fazendo gracinha para viralizar no TikTok. Também não vou defender propostas, eu não sou deputado. Temos que separar as coisas”, afirmou.
Embate não é tarifário, é cultural
No final do debate, o professor Teixeira destacou o caso recente da recusa dos Estados Unidos de colocar a opção de gênero da deputada Erica Hilton no passaporte, atingindo “uma das mais atuantes deputadas hoje, que fez uma proposta política de combate à jornada 6 por 1”.
“Uma deputada que fez uma proposta política de combater a jornada 6 por 1 é a maior proposta política do momento que não foi abordada pelo governo. O governo não entendeu isso. Érica Hilton, Renato Teixeira, Glauber, são os deputados mais combativos e não é à toa que eles estão sendo caçados”, afirmou.
“Eles estão sendo combatidos com tanto vigor pela extrema direita porque são a ponta mobilizadora da sociedade”, frisou, apontando a necessidade do governo de dar mais espaço e não se ausentar em relação ao que acontece com esses parlamentares. “Eles são a ponta.”
Confira a íntegra do debate:
“Fazer política não é apenas colocar nas páginas de jornais a inauguração disso ou daquilo, isso é importante sem dúvida nenhuma, mas devemos ir para o embate. Hoje, o embate não é tarifário, é um grande embate cultural. Se você não encarar um embate cultural, nós acabamos só rebatendo”, afirmou.
Rocha concordou com a avaliação do historiador e acrescentou que, nas pesquisas, entre os eleitores de Lula, o que se via no começo do atual governo era muita esperança. “As pessoas depositavam muita esperança e acabaram ficando muito decepcionadas”, afirmou.
Segundo Rocha, a reclamação que aparece nas pesquisas é que o governo “não tem uma grande marca, algum programa do tipo Bolsa Família ou Minha Casa Minha Vida. Alguma coisa que, de fato, impacte a realidade”.
Além disso, Lula vem sendo visto “muito mais ausente, muito mais apagado” do que no primeiro mandato. “Não só em termos de rede, mas da comunicação oficial mesmo, nos pronunciamentos da televisão, no rádio”, aponta.
Em contraposição, as figuras da extrema-direita estão sempre presentes. “Você está sempre vendo Bolsonaro, vendo Nicolas Ferreira. Para as pessoas o que chega diariamente são conteúdos de extrema direita”, alertou.