Ao atuar como uma verdadeira fábrica de consensos em defesa de seus interesses políticos e econômicos, a grande mídia interdita o debate de um tema fundamental para a democracia no setor: os Conselhos de Comunicação. Segundo ela, o papel fiscalizador do órgão, defendido por especialistas e entidades que lutam pela democratização da comunicação, não passa da famigerada censura.
Por Ana Flavia Marx, para a série especial do Barão de Itararé*
De acordo com a presidente do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, Rosane Bertotti, a mídia não é contrária só ao Conselho de Comunicação, mas também em relação a qualquer tipo de participação social.
“Se a pauta for sobre a participação dos trabalhadores no Conselho Monetário, ou dos professores no Conselho de Educação, a velha mídia também será contra. Será mais contra ainda da participação social na comunicação, porque quando há participação, há questionamento, construção coletiva e adversidades. Tem várias vozes e a mídia quer ser a única voz”, argumentou Rosane.
Desde
Grande imprensa: debate interditado
As manchetes das matérias e artigos publicados em dois jornais com cobertura nacional exibem o quanto é desequilibrada a cobertura em torno do tema. O título “O assédio petista à mídia” trata do processo do Conselho Estadual de Comunicação do Ceará e cita que “na linha prevista pela aparelhada Conferência Nacional de Comunicação […] o pretendido conselho cearense quer fiscalizar os meios de comunicação do Estado”, conforme publicou o jornal O Estado de S. Paulo.
“Mais 3 (sic) Estados têm projetos para monitorar a mídia – Depois do CE, BA, AL e PI se preparam para implantar órgãos de controle” é a chamada de destaque da Folha de S. Paulo em que é mencionado que o propósito é “monitorar a mídia”. Na matéria não há citação de nenhuma fonte do governo de qualquer um dos estados ou de lideranças do movimento de democratização da comunicação. As aspas são de Luiz Roberto Antonik, diretor-geral da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que afirma que “tutelar a mídia é um retrocesso que o Brasil não merece”.
Nos editoriais, matérias e artigos de opinião é comum a ideia de que “o Conselho é o atestado de óbito da democracia brasileira”, ou que “as tentativas de controlar os meios de comunicação no Brasil podem ser abertas ou camufladas”*. O espaço é dado somente para uma versão, como o recebido pela a Associação Nacional de Jornais (ANJ), que julga que “quem deve controlar os veículos de comunicação deve ser a audiência. Não cabe a nenhum órgão do Estado exercer esse papel”, disse o presidente da ANJ, Ricardo Pedreira*.
História do Conselho de Comunicação Social
O debate sobre o Conselho Nacional de Comunicação não começou com o governo Lula, ao contrário do que a grande mídia parece querer fazer crer. A discussão sobre um espaço institucional para pautar a comunicação começou com a redemocratização do país, em 1987.
“Por incrível que pareça, o capítulo da comunicação foi mais difícil de negociar do que a reforma agrária”, disse o então deputado federal José Genoíno, após o acordo firmado na Assembleia Nacional Constituinte, em 24 de maio de 1988*.
A ideia do Conselho Nacional de Comunicação nasceu no Encontro Nacional dos Jornalistas, realizado em 1984, quando foi aprovada a Carta de Brasília , com projetos e resoluções a serem incluídos na discussão da Assembleia Constituinte.
De acordo com o livro Os Conselhos de Comunicação Social, do professor Venício Lima, a ideia transformou-se em uma emenda. “A emenda popular – EP PE 0091-1 – foi de fato apresentada sob a responsabilidade da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), da Associação dos Docentes do Ensino Superior (ANDES) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e propunha que se incluíssem no capítulo da comunicação social a criação do Conselho”.
“Tratava-se, portanto, de proposta de criação do CNC como órgão colegiado autônomo – nacional e com seções estaduais – composto por 15 (quinze) membros, representantes de entidades empresariais, de profissionais de comunicação, de setores populares e de instituição universitária, com competência não só para estabelecer, supervisionar e fiscalizar políticas nacionais de comunicação, como também a outorga, renovação e revogação das autorizações e concessões para uso de freqüência e canais de rádio e televisão e serviços de transmissão de imagens, sons e dados por qualquer meio”, escreveu Venício.
A discussão sobre os pontos da Carta Magna que versam sobre a comunicação aconteceu na Comissão de Ciência e Tecnologia e Comunicação e a proposta do Conselho Nacional de Comunicação foi apresentada pela deputada pernambucana Cristina Tavares (PMDB). “A intenção maior de criação deste conselho é adequar a política de concessão de canais de rádio e televisão a uma realidade mais democrática”, esclareceu a deputada.
A alegação da bancada liderada por Antônio Carlos Magalhães e Fausto Rocha (PFL-SP) “é que seria desnecessária a criação de um conselho integrado pelas chamadas entidades representativas da sociedade civil, que falam a mesma linguagem”.
A mudança no processo de outorga, renovação e concessão de canais de rádio e televisão saía das mãos da presidência e passava a ser atribuição do Congresso Nacional, contudo, para alguns deputados o Conselho de Comunicação deveria auxiliar os parlamentares nessa função. Foi a partir dessa mudança que foi alterada também a finalidade do conselho proposto pela FENAJ.
“A FENAJ tem uma vaga, mas na verdade é um Conselho auxiliar, não é o Conselho Nacional de Comunicação Social”, disse Guto Camargo, secretário geral entidade máxima que representa os jornalistas.
O texto final que trata sobre a comunicação e a inclusão do Conselho Nacional de Comunicação do Congresso – artigos 220 e 224 – foi aprovado por 443 votos, contra oito contrários e sete abstenções. Para interferir sobre as concessões aprovadas pela presidência, é preciso ter 224 votos, dois quintos do total de deputados em votação.
A implantação do Conselho Nacional
O Conselho de Comunicação Social foi regulamentado três anos depois, na lei 8.389 e com o ofício de realizar estudos, pareceres, recomendações sobre a mídia. A composição é de 13 (treze) membros entre representantes de categorias profissionais, das empresas e da sociedade civil.
A primeira posse só aconteceu em 2002 e, segundo matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, só foi possível depois “de acordo para permitir a aprovação da emenda constitucional que permitiu a participação do capital estrangeiro em empresas de comunicação”. O primeiro presidente foi o jurista pernambucano especializado em comunicação José Paulo Cavalcanti Filho.
O segundo presidente Arnaldo Niskier, membro da Academia Brasileira de Letras, não conseguiu passar o bastão para uma próxima gestão e o Conselho ficou desativado durante seis anos – de
A discussão atual é sobre o método e critérios para a escolha dos membros. O § 2º do artigo 4º, diz que “os membros do conselho e seus respectivos suplentes serão eleitos em sessão conjunta do Congresso Nacional, podendo as entidades representativas dos setores mencionados nos incisos I a IX deste artigo sugerir nomes à mesa do Congresso Nacional”. Até
Leia também: Sociedade Civil cobra participação no Conselho de Comunicação
Nova proposta de Conselho: a Lei da Mídia Democrática
Desde o ano passado, os movimentos sociais e ativistas que empunham a bandeira da democratização da comunicação elaboram uma proposta comum para regulamentar a Constituição nos pontos que discorrem sobre o assunto: o Projeto de Lei da Mídia Democrática, de Iniciativa Popular.
O Conselho é tratado no Capítulo Seis e a proposta fala em um Conselho Nacional de Políticas Públicas de Comunicação, cuja origem remete à Primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em 2009. No Projeto de Lei, o órgão terá como função o apontamento de diretrizes para as políticas do setor e para a regulação dos serviços de comunicação social eletrônica; propor a cada quatro anos o Plano Nacional de Comunicação Social Eletrônica; e acompanhar e avaliar a execução das políticas públicas da área.
Para o secretário geral da FENAJ, esse Conselho com função mais ampla, só será possível se tiver o apoio do Poder Executivo, contudo já há no país bons exemplos de órgãos do tipo que funcionam bem. “Temos o problema de compreensão sobre o debate da comunicação, mas a vantagem é que a tradição da organização do Estado se dá com a participação de Conselhos, como temos o Conselho de Saúde e também o Conselho da Criança e do Adolescente”.
“O problema não é a lógica, mas sim a importância do papel da comunicação. Qual é a incidência da sociedade sobre a comunicação e até que ponto o Estado pode incidir sobre a comunicação?”, provocou Guto.
Bahia: vanguarda e resistência
Após a Confecom, alguns estados tiveram a iniciativas em conjunto com os movimentos sociais de colocar em discussão a implantação dos Conselhos. É o caso de Ceará, Piauí, Alagoas e Bahia, sendo este último o único que prospera até os dias atuais.
O Conselho tem 20 cadeiras distribuídas entre sociedade civil, empresários do setor, trabalhadores e funcionários públicos. A última eleição contou com a participação de mais de 62 entidades e o texto da lei define que o secretário de comunicação é o presidente do órgão.
No Conselho, segundo Marlupe Caldas, atual presidenta, embora a reação tenha acontecido da mesma forma que no restante do país, os empresários da área, diretores e donos de jornais têm participado das decisões. “A gente consegue aliviar as tensões quando todos estão reunidos. É um exercício pleno de democracia em que há debate, interação e chegamos a um consenso. É democracia na veia”, relata.
Atualmente o Conselho está debruçado no Plano Estadual de Comunicação Social, que tem como eixos principais a qualificação e capacitação para os profissionais; regulamentação e apoio das rádios comunitárias, elaboração do Plano de Audiovisual; Plano de Banda Larga para todos os municípios baianos (com o apoio do governo federal) e democratização da comunicação.
A principal dificuldade é fazer as ações chegarem nas áreas de interesse e na população. “A grande mídia aqui não fala mal do Conselho, mas também não divulga as nossas ações. A população precisa saber o potencial da sua comunicação”, encerrou Marlupe.
Como é em outros países
Nos Estados Unidos, a FCC (Federal Communications Comission) e, na Europa, a Altas Autoridades para o Audiovisual, cumprem o papel de mediação entre os diversos setores na formação de políticas para o setor da mídia.
Na Argentina, também há um espaço de discussão. O Conselho Federal de Comunicação Audiovisual agrega representantes das províncias, das entidades do setor privado, entidades sem fins lucrativos, universidades, sindicatos de trabalhadores dos meios de comunicação, representante dos Povos Indígenas Originários, compreendendo uma gestão de dois anos.
Para o professor Laurindo Leal Filho, o Estado deve assumir a responsabilidade de promover mudanças democráticas na comunicação. “Já foram elaborados 19 projetos de lei de comunicação e nenhum deles atravessou a rua. Esse projeto de iniciativa popular é o 20º e é fundamental que cobremos aos candidatos um compromisso com ele”.
“Nós precisamos fazer com que o Executivo e Legislativo assuma essa luta. Foi assim na Argentina em que as pessoas só foram para as ruas porque o governo resolveu bancar essa luta. Daí a importância de discutirmos com os candidatos a lei de meios, como o projeto de iniciativa popular”, defendeu o professor durante reunião do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação.
Fonte: Lima, Venício. “Os Conselhos de Comunicação Social”, 2013. FNDC
*Acervo do jornal O Estado de S. Paulo
*Entre 5 de agosto e 5 de outubro, data marcada para as eleições de 2014, o Barão de Itararé publicará, às terças e quintas-feiras, reportagens especiais abordando temas ligados à comunicação que, geralmente, são excluídos do debate eleitoral. A reprodução é livre, desde que citada a fonte. Saiba mais sobre a iniciativa aqui .