Por Luciano Martins Costa*, no Observatório da Imprensa
Os diários de circulação nacional trazem como manchete, nesta quinta-feira (9/4), a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do texto-base de um projeto que amplia as possibilidades de terceirização de contratos de trabalho. A proposta ainda pode ser alterada por emendas, que serão votadas na próxima semana, mas a leitura do que é exposto nas primeiras páginas induz o cidadão que passa apressadamente em frente às bancas e quiosques a aceitar que houve uma ruptura do sistema de proteção do trabalhador.
Comentários apressados dos especialistas em generalidades que dão palpites sobre tudo, nos programas noticiosos do rádio e da televisão, devem contribuir para aumentar a confusão. Os relatos dos três principais diários se diferenciam sutilmente, e cabe ao Globo a dose maior de manipulação: “Terceirização é aprovada na Câmara, mas racha governo” – diz a manchete do jornal carioca. Trata-se de uma ênfase maliciosa, considerando-se que toda votação de matéria polêmica produz certo grau de descontentamento em algumas das muitas tendências em que se divide a base aliada do Executivo
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Desde a inauguração da República, o Parlamento protagoniza eventos em que oposição e situação se fragmentam, e muitos projetos são rejeitados ou aprovados com uma miscelânea em que desaparece a lógica da orientação partidária. Esse fenômeno ocorre com mais frequência em períodos de ajustes de modelos econômicos ou institucionais, como em início de mandato ou, no caso atual, no meio de disputas como a que opõe os presidentes da Câmara e do Senado à presidente da República.
Interessante observar que, nos temas mais complexos, as chamadas forças progressistas aprofundam suas divergências internas, justamente porque seus integrantes são mais afeitos à reflexão e ao detalhamento das questões. As forças conservadoras e reacionárias, ao contrário, tendem a se alinhar mesmo em questões complexas, porque não costumam contemplar as sutilezas dos temas fundamentais para a sociedade.
Para esses, tudo é branco ou preto, e o que vale é garantir a reeleição.
Acontece que o sistema eleitoral é um jogo cínico: se tal deputado foi eleito com doações de grandes empresas, ele vai votar tranquilamente pela desconstrução de direitos trabalhistas, porque não é o assalariado que garante seu mandato: o assalariado entra como massa de manobra em campanhas financiadas pelo dinheiro do capital. Sintomaticamente, antes e durante a votação do projeto, lobistas do empresariado circularam tranquilamente nos gabinetes do Congresso, enquanto sindicalistas eram espancados no lado de fora.
A Folha de S. Paulo aborda a questão dos interesses por trás da proposta, em artigo na página 2, no qual o autor observa que o conflito entre capital e trabalho transparece no projeto da terceirização votado pela Câmara. Interessante a observação, porque a Folha é o jornal que mais se empenhou, nas últimas décadas, em convencer o leitor de que a questão da luta de classes estava superada. O jornal paulista foi o arauto da tal “pós-modernidade” e entusiasta de mitos como o do “fim da História”.
A maior parte dos colaboradores que tem sido convidada pela Folha para suas páginas de opinião tem um perfil escancaradamente conservador ou engrossa as fileiras dos intelectuais que ostentam uma fachada de teoria crítica “higienizada” das contradições viscerais do capitalismo. Agora, pode-se concluir que essa fachada foi instrumento para alimentar uma crise política e, sob essa cortina de fumaça, promover a quebra de direitos dos trabalhadores.
Ressalte-se que a votação da Câmara não é definitiva, e um pacote de emendas pode alterar esse quadro – a depender, é claro, da mobilização das entidades sindicais. Mas deve-se considerar que um grande número de parlamentares segue a orientação dos presidentes da Câmara e do Senado no enfrentamento da presidente da República. Suas motivações não têm muito a ver com a agenda do Congresso. A seção “Bastidores” do Estado de S. Paulo explicita: “A estratégia de Cunha e Renan é desviar o foco da Operação Lava-Jato e criar uma agenda própria”.
No caso de Renan Calheiros, que já superou escândalos maiúsculos, trata-se de sobreviver a mais um deles. No caso de Eduardo Cunha, segundo a imprensa, trata-se de manter a Polícia Federal longe de seu gabinete. Para seus propósitos vale tudo, desde retroceder a legislação trabalhista, liberar a venda de armas, desfazer o Estatuto da Criança e do Adolescente, mandar o Brasil para a retaguarda na questão dos direitos humanos.
O preço desses dois interesses específicos pode ser algumas conquistas que custaram décadas de luta da sociedade brasileira?
Pelo que se lê nos jornais, a imprensa considera que sim.
*Luciano Martins Costa integra o Conselho Consultivo do Barão de Itararé