Por Felipe Bianchi
No dia 25 de outubro, a Argentina vai às urnas para eleger seu novo presidente. Mais que contrapor a candidatura de Daniel Scioli (Frente Para a Vitória) às de Mauricio Macri (Cambiemos) e do dissidente Sergio Massa (Unidos Por Uma Nova Argentina), o pleito deve definir se o país dará continuidade ao projeto nacional e popular iniciado no governo de Néstor Kirchner, em 2003, ou se retomará a cartilha neoliberal.
As pesquisas mais recentes apontam razoável favoritismo do candidato oficialista, atual governador da província de Buenos Aires. Segundo as estatísticas, Scioli conta com pelo menos 40% das intenções de voto – de acordo com a legislação argentina, o presidenciável necessita somar 45% dos votos para ser eleito; caso a distância para o segundo colocado seja de pelo menos 10 pontos percentuais, o número necessário cai para 40%. Principal oponente de Scioli, o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, conta com aproximadamente 30% da preferência do eleitorado, enquanto Sergio Massa, outrora deputado kirchnerista, detém 20%.
Apesar do cenário incerto, já que em caso de segundo turno a tendência é de que a oposição se unifique em torno de Macri, o jornalista Max Altman considera bastante realista que o triunfo definitivo de Scioli ocorra já no domingo. “A tendência é que cresça o voto no candidato de Cristina Kirchner, principalmente, nas províncias do norte e do sul, que concentram a população mais dependente dos programas do governo”, aponta.
Segundo Altman, a eleição do candidato da Frente Para a Vitória garante fôlego aos processos de transformação em curso no continente, já que a região vive um momento de ofensiva do conservadorismo. “A força da candidatura endossada por Cristina reflete a resistência e, principalmente, a resiliência dos setores progressistas”, comenta o colunista do Opera Mundi. “A vitória de Scioli é um soco no estômago da direita latino-americana”, diz. “É importante ressaltar que a importância política da Argentina supera a sua importância econômica”.
Lei de meios e avanços sociais em risco?
Os programas sociais levados a cabo por Néstor e Cristina Kirchner ajudaram o país a reduzir a desigualdade de forma significativa: o índice de 47% da população atingida pela pobreza caiu para aproximadamente 25%. Há divergência entre institutos de pesquisa, que mostram oscilações no percentual dos últimos quatro anos. A ‘guerra’ dos números se deve, principalmente, à turbulência econômica. A crise argentina foi agravada por fatores como o declínio da balança comercial e a instabilidade do câmbio. Há, inclusive, denúncias de sabotagens praticadas por setores comerciais, com fins de desestabilizar a economia e, consequentemente, a política.
Aprofundar avanços em cenários adversos é sempre algo “ambicioso”, conforme avalia Dario Pignotti, correspondente do jornal argentino Página 12 no Brasil. “Mantê-los”, entretanto, “é um compromisso de Scioli”. Segundo o jornalista, o discurso da oposição quanto ao tema assemelha-se ao de Aécio Neves, em 2014: “Assim como o tucano fez em relação ao Bolsa Família, Macri também promete manter alguns programas mais emergenciais”. Em contrapartida, ele explica o caráter da candidatura oposicionista: “Macri é uma espécie de udenista argentino”.
Os avanços sociais não são a única conquista sob ameaça no caso de um revés – ainda que improvável – do oficialismo. A Ley de Servícios de Comunicación Audiovisual, popularmente chamada Ley de Medios, também pode ter seu rumo determinado pelo pleito, conforme alerta o presidente do Fórum Argentino de Radiodifusão Comunitária (Farco), Nestor Busso.
Aprovada em 2008 após ampla mobilização da sociedade, a lei é um importante passo para democratizar o sistema de comunicação do país, já que tornou ilegal o histórico monopólio do grupo Clarín ao definir regras democráticas para a ocupação do espectro radioelétrico [espaço no qual se propagam as ondas do rádio e da televisão], determinada por concessões públicas de radiodifusão.
Os constantes processos de judicialização da lei – a Suprema Corte levou quatro anos só para decidir que ela não é inconstitucional, como acusavam os barões da mídia – têm dificultado a sua implementação. “Houve muitos avanços no campo da comunicação pública e alguns avanços no campo comunitário, mas ainda há um longo caminho a percorrer”, avalia Busso.
Quando o assunto é a disputa eleitoral, no entanto, Busso é taxativo: “Se ganha Macri, a lei corre sério risco”. Ele explica que, apesar de ser difícil derrubá-la, já que o oposicionista não teria maioria no Congresso, o atual prefeito de Buenos Aires trabalharia intensamente para frear a aplicação da lei. “Macri representa o poder econômico, o neoliberalismo, ou seja, os interesses do Clarín”, salienta Busso, argumentando que, “por isso, tem forte apoio da grande mídia, assim como qualquer candidato que faça oposição ao governo”.
Com Scioli, pondera Pignotti, é provável que ocorra um arrefecimento das hostilidades entre governo e Clarín – em seu segundo mandato, Cristina Kirchner chegou a romper relações com o grupo. Apesar do presidenciável ter um perfil mais propenso ao diálogo, “o fato é que o Clarín fará uma grande festa caso Macri vença”, opina o correspondente da Página 12.
Um dos principais obstáculos para a Ley de Medios tornar-se realidade concreta, de acordo com Busso, é o “atrelamento entre o Poder Judiciário e o poder econômico”, que mina as mudanças previstas na lei através de arrastados processos judiciais. Apesar da “generosidade da Justiça com o Clarín”, o professor da Universidade de Buenos Aires e da Universidade Nacional de Quilmes, Martín Becerra, avalia que “não se muda nada apenas aprovando leis se não há políticas públicas que se somem a elas”. Segundo Becerra, “trata-se de uma estrutura muito arraigada, difícil de alterar”, exigindo um processo de “maturação política” – o que só deve ocorrer caso não haja festa no Clarin.