22 de novembro de 2024

Search
Close this search box.

O pecado da EBC é ser uma conquista da sociedade

Por Renata Mielli*

O monopólio midiático do país nunca engoliu a criação da Empresa Brasil de Comunicação, que aconteceu só na metade do segundo mandato do governo Lula. O ex-presidente criou a EBC pressionado pela ação do movimento social brasileiro, particularmente das entidades ligadas à luta pela democratização da comunicação e do setor cultural, que exigiam mais diversidade e pluralidade nos meios de comunicação.

Com a criação da EBC o país começou, de forma muito tardia, a cumprir o previsto no artigo 223 da Constituição Federal, que determina que as concessões de radiodifusão observem a complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. O Brasil não têm histórico de comunicação pública, e desta ausência se ressente a nossa democracia até hoje. Hoje ainda mais.

Mesmo dominando o cenário midiático, os barões da nossa comunicação privada não aceitaram a criação da EBC. A Folha de S.Paulo, no editorial “Tela Fria”, publicado em 30 de julho de 2009, pedia o fechamento da TV Brasil. Com menos de um ano de operação, a emissora pública ainda tinha pouco alcance e audiência. Mesmo sem representar um risco imediato ou concorrência com o setor privado, a sua existência já incomodava o monopólio.

Por isso, a canetada de Michel Temer ao exonerar de forma arbitrária o diretor-presidente da EBC, o jornalista Ricardo Melo, não é a medida final de ataque à esta ainda recente experiência de construção de uma empresa pública de comunicação. O objetivo é atender ao reclamo da mídia privada e fechar a TV Brasil, a EBC.

O governo interino prepara uma Medida Provisória para dar ares de legalidade à exoneração e para permitir que o governo possa nomear e destituir toda a diretoria da empresa. Mas isso nem é o principal. O que eles vão mudar na lei que criou a EBC são os seus objetivos e o seu caráter. Retornaremos ao período da Radiobras, da comunicação estatal de divulgação das ações do governo de plantão.

O argumento que já está sendo utilizado para fazer isso é o mesmo da época da criação da EBC: acabar com a televisão do Lula. Quando nasceu, a EBC era chamada assim pela mídia privada e pela oposição conservadora. Mas, quem acompanhou a evolução da TV Brasil e dos outros veículos que constituem a EBC (Agência Brasil, Radioagência Nacional, sete emissoras de rádio, TV Brasil e TV Brasil Internacional), sabe que ela nunca foi isso nestes 8 anos.

Para fugir do estereótipo, principalmente no jornalismo, a TV Brasil cometeu o erro de ser uma emissora insípida. Esforçou-se ao máximo para fazer um jornalismo afastado do governo e que não desse margem para ser atacado de chapa branca.

Nesta tentativa, corretíssima – já que ela de fato não era uma emissora do governo e sim pública – o seu jornalismo ficou emparedado, preso, não experimentou formatos e não ousou. Ficou confinado e sem “pegada”, não construiu uma marca. Pior até, se furtou a abordar assuntos polêmicos, a cobrir fatos relevantes da vida nacional, que são invisibilizados pela mídia privada. Ao longo dos anos foi melhorando aos poucos, mas ainda assim evitava tratar temas “quentes” da política de forma mais incisiva. Até que este ano, diante de um processo político tratado por grande parte da mídia internacional no mínimo com desconfiança, o jornalismo da EBC (na TV Brasil e nos outros veículos) ousou cobrir as manifestações contra o impeachment, levou para a redação as vozes críticas que estavam silenciadas pela mídia privada que patrocinou o golpe. Ganhou relevância, audiência, passou a disputar a opinião pública. Passou a fazer jornalismo com cor e o que antes incomodava só por existir, passou a incomodar ainda mais por viver.

Fora do jornalismo, a TV Brasil foi aos poucos trilhando caminhos de bastante êxito na sua programação. Não temos uma tradição de conteúdo não comercial no país. Os formatos e a grade da televisão comercial generalista é pasteurizada, num zap pelos canais se vê mais do mesmo. Isso tem impacto na hora de se criar uma grade que rompa com o viés mercadológico e privado que dita o conteúdo das emissoras de televisão abertas.

Mas a EBC se abriu para a produção independente, criou programas com temáticas socialmente relevantes, como o Estação Plural, investiu na transmissão de shows, eventos, jogos de futebol da 2ª divisão. E foi ganhando mais telespectadores.

O Conselho Curador – elemento dinâmico e o organismo vivo que zela pelo caráter público da empresa – enfrentou debates corajosos, como a discussão sobre qual caráter deve ter, numa emissora pública, os programas religiosos.

Enfim, a EBC foi, aos poucos, encontrando o seu caminho, o seu jeito de fazer uma comunicação voltada para o interesse público.

E isto é construção de cidadania, é promoção de diversidade e pluralidade, é democratização da informação, da cultura. Isso faz pensar, mostra que uma televisão pode ser diferente. O que é uma ameaça aos que se sentem donos da informação e da comunicação.

Este é o pecado da EBC. O pecado que Lula cometeu, inclusive sem querer. Sim, porque é importante que se diga que a criação de uma empresa pública de comunicação não era um projeto do ex-presidente. Na verdade, seu governo nem achava necessário criar uma empresa pública de comunicação.

A EBC é uma conquista da sociedade, não é projeto de nenhum partido. Ela nasce do reconhecimento de que a comunicação pública é um pilar indispensável para a promoção da diversidade, da pluralidade e uma garantia para a liberdade de expressão.

Esta conquista, assim como tantas outras, encontra-se na mira da escopeta dos golpistas, dos senhores da sala de jantar, dos homens de terno preto que ocupam, de forma ilegítima, o Palácio do Planalto. Os que são marionetes do mercado financeiro, das grandes corporações econômicas e das famiglias que são donas dos meios de comunicação do Brasil.

Enfim, desta gente que prega o Estado mínimo, que acha que o mercado deve mandar nas nossas vidas, já que não somos pessoas, somos consumidores. Destes mesmos que querem a redução do SUS, a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, que reduzem o Minha Casa, Minha Vida, as políticas de financiamento estudantil, que acham que os trabalhadores não têm direito à vida digna e que sua função nesta nação é a de viver para trabalhar até a véspera da sua morte, aos 75 anos, se chegarem lá. E, se vivemos para trabalhar, para que Cultura???? A Cultura não pode ocupar as ruas, as favelas, as periferias. Não carece de políticas públicas — oops, esqueci que o termo políticas públicas morreu no dia 12 de maio de 2016.

Mas não somos telespectadores passivos e não assistimos a tudo isso calados. Nossa luta não é para manter o presidente da EBC no seu cargo, é para que a comunicação pública exista e continue autônoma, garantindo a participação social através do Conselho Curador e da Ouvidoria; é para que as vozes silenciadas sejam ouvidas; é para reestabelecer a democracia. Estamos lutando e tem mais gente acordando do transe em que estava, e percebendo que tudo isso foi um grande equivoco que precisa ser reparado urgentemente. E será.

 *Renata Mielli é Secretária-Geral do Barão de Itararé e coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação