21 de novembro de 2024

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Autor da ‘Carta de Bérgamo’ alerta Brasil: ‘Colocar cálculos econômicos acima da vida é erro fatal’

“Não é hora de fazer cálculos cínicos sobre perdas econômicas com a pandemia. Valem muito mais as vidas humanas do que qualquer prejuízo no orçamento. Isso, na Itália, sobretudo em Bergamo, já entendemos, já sentimos na pele, contando os nossos mortos. Desejo que o Brasil não caia nesse erro fatal”. A declaração é do jornalista italiano Cristiano Gatti, que publica seus artigos na edição de Bérgamo do Corriere della Sera, um dos jornais diários mais importantes do país.

Por Felipe Bianchi

Gatti publicou, recentemente, uma carta aberta aos povos do mundo. Intitulada “Carta de Bérgamo” (Lettera da Bergamo), o jornalista descreveu o drama vivido pelos cidadãos de seu país e, ao mesmo tempo, esmiuçou a tragédia política que arrastou a Itália para o epicentro da pandemia entre janeiro e março, começando pelo desprezo à quarentena e ao isolamento social.

Cristiano Gatti: 'Imprensa não pode ceder à loucura de minimizar a pandemia'Ataques a prefeitos e governadores que estariam “espalhando o caos” e campanha ostensiva defendendo que o país e a economia não poderiam parar por conta de um novo vírus na praça são alguns dos ingredientes da receita seguida pelo governo italiano, que conduziu o país a um drama sem precedentes. Até o fechamento deste artigo, a Itália acumula ao redor de 8 mil mortes por conta do Coronavírus (Covid-19).

O expediente é familiar para os brasileiros. Jair Bolsonaro tem apostado numa teoria de que a pandemia que assola o planeta não passa de uma “gripezinha” e que é uma “fantasia fabricada pela mídia”. Também adere ao discurso anti-China de Donald Trump, chamando o Covid-19 de “vírus chinês” e insinuando que haveria interesses econômicos por trás da pandemia. Por fim, também tem comprado briga com governadores e parlamentares que levam o problema a sério. Os atritos com João Dória (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSL-RJ) são praticamente diários.

A imprensa tem sido um dos alvos preferenciais de Bolsonaro. O presidente acumula episódios de grosserias e truculência com jornalistas desde sua posse, em janeiro de 2019, e tem intensificado os ataques em represália à atenção dada pelos veículos ao tema da saúde pública. “O papel dos meios de comunicação é, absolutamente, evitar ceder à louca atitude de minimizar, como aconteceu aqui conosco, inicialmente”, opina Gatti. “Ninguém, talvez, pode evitar os contágios, mas todos podem e devem tomar precauções”.

Confira a íntegra da Carta de Bérgamo, publicada originalmente no dia 21 de março, no blog de Cristiano Gatti. A tradução para o português é de Aislan Maciera.

Uma carta de Bérgamo

Um pouco nos tocaram os tétricos desfiles dos caminhões militares carregando os caixões. Mas, sobretudo, nos tocaram os números. O fato é que, nos últimos dias, recebi telefonemas e mensagens afetuosas de tantas pessoas queridas espalhadas pela Itália. Inclusive de simples conhecidos. Todos fazem, gentilmente, a mesma pergunta: como está Bergamo?

Como está, como está. Eu não sou [Alessandro] Manzoni, que representou de modo sublime a peste de 1630. Mas ele estava há dois séculos de distância dos fatos, de modo que pôde estudar e raciocinar, de cabeça fria, com os olhos do sábio e do historiador. Nós, aqui, estamos dentro: ao vivo, em tempo real. Com todas as emoções e grandes preocupações do caso.

Essa história, no fundo, nasceu há pouco menos de um mês. Uma noite, assistindo às reportagens da China, minha esposa disse à mesa qualquer coisa do tipo “mas, Santo Deus, aquelas pobres pessoas, pense como devem viver, pense no medo. E pense se acontecesse com a gente…”

Em 20 de fevereiro, o primeiro caso de Codogno. Para muitos, parecia distante daqui. Para mim, parecia estar chegando rapidamente à minha casa: o que são 50 quilômetros para um vírus? De fato, pouco tempo depois, Alzano e Nembro. A seguir, o resto da província.

Em torno disso, nos primeiros momentos, o quadro que agora conhecemos bem: de um lado, os preocupados (como eu), definidos mais ou menos como paranoicos, ansiosos compulsivos, pessimistas. E, por outro lado, o poderoso coro dos otimistas, guiados pelos nossos representantes mais importantes. O prefeito de Alzano, não quis fechar a cidade, como foi feito em Codogno. Dizia que era uma zona nevrálgica para a economia, não se poderia parar as atividades produtivas. Com ele, e sua superior autoridade, o governador Fontana, para quem o vírus não passava de uma gripe mais forte. O prefeito Sala, em Milão, fez barulho: não podemos reduzir Milão a um funeral, hashtag milanononsiferma [Milão não para]. Em Bergamo, nosso prefeito Gori, não ficou para trás, e lançou com os comerciantes a sua orgulhosa hashtag Bergamononsiferma [ Bergamo não para].

É inútil olhar para os lados: nossa virtude mais conhecida e reconhecida nos atingiu, a atividade empreendedora. Aquele fogo que tivemos por gerações, que nos empurra a fazer, a fazer, a fazer, finalmente para produzir, produzir, produzir, para ganhar, ganhar, ganhar. É um pouco forte dizer, mas não devemos temer a força das palavras: a nossa cultura, vulgarmente chamada gananciosa, algo que tem a ver com uma ligação congênita, mas também com a cobiça, nos impediu de parar. De puxar o freio antes de bater. E nós batemos.

Como parar a locomotiva da Itália? Como parar tudo? Como? Já que os prefeitos não nos mostraram, nos mostrou um estúpido vírus. Por não fechar uma ou outra cidade, agora fechamos o mundo.

Eu moro logo abaixo dos muros da Cidade Alta. Agora, abro a janela, e onde via muita gente passear, com vista para a planície, agora vejo deserto e desolação. Aqui fora também, na cidade baixa, ressoam mais do que qualquer coisa, sirenes de ambulância e barulhos de caminhões, que pulverizam desinfetantes. Alguns donos passeando com seus cães, alguns indo ao supermercado ou algum corredor exaltado que simplesmente não entende.

Entretanto, no geral, muita disciplina. E tanto, tanto, tantíssimo senso de dever, que alguém na mídia define heroísmo, mas que é simplesmente fazer o que deve ser feito: os médicos, os enfermeiros, os voluntários, toda uma comunidade fabulosa que não desmorona nem mesmo sob os golpes da necessidade, fadiga, desespero.

Certamente, não se pode dizer que Bergamo seja a capital do flashmob. Aqui há somente um coral, ensurdecedor, o flashmob do silêncio. Todos participam espontaneamente. E já dura dias e dias. Apenas alguns desenhos de crianças nas varandas, “ficará tudo bem”, como é certo fazer as crianças escreverem nestes tempos de escuridão e angústia.

Por outro lado, não é tão natural ir às sacadas cantar Azzurro quando o luto entrou em casa. Ou se aproximou. Pode-se dizer que não há família que não tenha sido atingida. Apenas como exemplo: despedi-me de três entes queridos em uma semana. Não parentes próximos, mas entes queridos. Como todos, eles morreram da pior maneira, supondo-se que haja uma maneira melhor: chamadas de emergência para o hospital, a família afastada, a solidão como companhia. E a partir daí o fim, sem uma mão familiar para a última carícia, sem voz para a última palavra. Seus entes queridos irão rever apenas uma urna, quando for possível.

Eu disse adeus ao pediatra que cuidava dos meus filhos, o grande médico Zavaritt, médico e muitas outras coisas, entre as quais conselheiro republicano do meio ambiente, quando o ambiente ainda estava para ser descoberto, mas, acima de tudo uma pessoa de verdadeira inteligência. E o doutor Lussana, que aqui no bairro passou a vida inteira a serviço de outras pessoas, com humildade e discrição, sacerdote de uma só religião, a medicina. E então o Sr. Marino, um amigo da família, um banqueiro apaixonado pelo campo, que ocasionalmente nos dava seus salames, além de outros alimentos orgânicos. Nomes que não dizem nada em outro lugar, mas que são histórias preciosas, únicas e verdadeiras, de um rio Spoon que está se formando hora após hora. Sim, eles tinham oitenta anos, mas se alguém vier me dizer, com o tom desses tempos, “ah, todos os que morrem são octogenários”, eu juro que vou atirar. Para mim, a importância de uma vida não é medida em anos.

A verdade? A verdade é que, nesta terra, entrou um imigrante odioso, arrogante, sem contrato de trabalho e sem permissão de residência: o medo. Na verdade, ele é o primeiro cidadão, mais do que qualquer prefeito. Ninguém o elegeu, assumiu o comando com métodos autoritários e não admite objeções. Domina em todas as casas, se insinuou em todos os lugares, se infiltrou em todas as rachaduras. Faço um parêntese: um dos meus filhos sempre sofre de alergias na primavera; por alguns dias começa a espirrar, queremos acreditar que é o incômodo usual. Mas a ideia remota, que está lá embaixo, na sombra da dúvida, consegue pelo menos causar alguns arrepios.

Ainda assim. Ainda assim, Bergamo não cede. Está de joelhos, tem sirenes nos ouvidos, mas não cede. Mais cedo ou mais tarde, o amanhã começará. Aqui também.

Esperando esse amanhã, não podemos deixar de enviar cartas de Bergamo como esta, que servem como exemplo e aviso ao resto da Itália [e do mundo]. Gostaria que muitos, muitíssimos, todos a lessem: ajudem-me a divulgá-la, mesmo que seja longa e atinja as regras de ouro para quem escreve on-line, o reino da brevidade e da superficialidade. Mas eu não ligo. Não é hora para essas bobagens.

Além disso, digo a todos: olhem para nós. Pesem nossa dor. E considerem que vocês têm uma sorte muito pequena, mas decisiva: o caso Bergamo. Ou seja, algumas semanas de vantagem. Tínhamos Codogno, mas o ignoramos, arrojados e inconscientes. Usem essa vantagem. Para se abrigar. Não cometa nossos erros, não seja tolo, não pense “como você para tudo”. Melhor parar imediatamente e chegar à segurança do que parar depois, à força, com muitas mortes por aí. Infelizmente, todos temos um chamado ancestral vagamente suicida: sempre estamos convencidos de que isso não pode acontecer conosco. Também vamos a funerais com essa certeza inconsciente: acontece com os outros, não comigo.

De Bergamo, só posso enviar esta mensagem sincera a toda a Itália: não é nova, é tão antiga quanto o mundo, mesmo que seja regularmente ignorada pelos homens: não há nada, absolutamente nada, que valha a vida. Agora é a hora de lembrar.