8 de outubro de 2024

Search
Close this search box.

A América Latina e o Caribe frente ao ‘colôniavírus’

O atual surto infeccioso do sistema respiratório causado por um tipo de vírus até então desconhecido tem dominado os espaços de debate público. Sem dúvida, o ataque à vitalidade define a prioridade e obriga a relegar, momentaneamente, todas as outras questões a um segundo plano. Mas isso não significa que essas pendências estejam resolvidas. Muito pelo contrário. Os gravíssimos conflitos pré-existentes à pandemia parecem estar sendo filtrados por seus poros.

Por Javier Tolcachier* / Tradução: Felipe Bianchi

Está evidente o desastre dos sistemas de saúde pública produzido pela erosão neoliberal. Também está latente a debilidade de países outrora considerados “poderosos”, desafiados agora a defender a sua própria população.

Escancara-se a imprudência da acumulação financeira, a mesquinharia da evasão e da fuga de capital a paraísos fiscais, o imoral desperdício de gastos armamentistas frente às necessidades de subsistência das grandes maiorias e os recursos imprescindíveis que são requeridos para socorrer as urgências pontuais.

As miragens desaparecem e o fracasso da ilusão individualista e do sistema capitalista é claro. Mas os conflitos não se esgotam com a análise socioeconômica, cujo molde defeituoso também vem à tona junto à pandemia.

Não cessou a violência contra a mulher, uma pandemia que as açoita como um grupo de risco majoritário há séculos. Não há sido superada a discriminação ao diferente e nem se tem resolvido nenhuma das causas que produzem o deslocamento forçado de milhões de pessoas.

Também não avançamos em nada para deter a deterioração do meio ambiente, em que pese a brusca queda do tráfego aéreo mundial e a diminuição no consumo de petróleo, somados ao silêncio de algumas indústrias e o limitado comércio de bens. Precisamente, como defendem especialistas epidemiológicos, a depredação ecológica, o avanço sem limites do agronegócio e da expansão urbana, a indústria de alimentos e a exploração animal estão entre as principais causas do ressurgimento de epidemias que acreditávamos estarem superadas.

Outro aspecto que brota com nitidez é o absurdo de se pretender proteger a saúde das pessoas enquanto segue-se fomentando guerras e desperdício de valiosos recursos direcionados ao armamentismo. Esta loucura é impulsionada, sobretudo, pelo interesse econômico da vasta indústria de armamentos. Uma indústria que financia ou faz parte de governos que estimulam o uso de armas de fogo a nível estatal e individual. Uma indústria responsável por guerras, pelo terrorismo organizado e também pelo crescente número de episódios de matanças de civis em ambientes escolares, recreativos ou públicos, geralmente pelas mãos de fascistas inveterados.

Um dos principais conflitos em plena vigência durante a pandemia continua sendo o da predominância geopolítica, econômica, militar, cultura e científico-tecnológica. A tendência imperialista liderada, durante este último século, pelos Estados Unidos e suas legiões (escoltados por uma Europa ocupada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN), frente à possibilidade de um sistema de relações internacionais multilateral, pluricultural, com lideranças compartilhadas e com maior peso relativo jogado pelas nações subalternas através da consolidação de blocos integrados. 

Não se trata de uma simples dialética entre Estados Unidos e China, de uma nova Guerra Fria ou de um reequilíbrio relativo do poder entre a velha estrutura internacional do pós-guerra, dos emergentes asiáticos, das novas instituições como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura ou da Organização de Cooperação de Xangai. Se trata de algo muito mais relevante: a construção de um mundo de maior paridade e horizontalidade, no qual a violência, a competição e a dominação sejam superadas e substituídas pela cooperação e solidariedade entre os povos da Terra. 

O velho mundo resiste

É óbvio que o nascimento de um novo período da história humana não ocorre sem que as estruturas em decadência tentem, desesperadamente e por qualquer meio, sobreviver. É por isso que o governo dos Estados Unidos, através de suas agências de inteligência, departamento de justiça, aparato de formação militar, fundações e centros de pensamento estratégico e seu serviço de política exterior, tem firmado como uma de suas prioridades a recolonização “hemisférica”. Ou seja, o controle geopolítico das Américas, como gostam de chamar.

Desta maneira, a América Latina e o Caribe, que despertaram no início do século a um período marcado por governos emancipadores em vários de seus países e à construção de mecanismos inter-estatais de integração regional, padeceu e padece do ataque conspirativo do país do norte, determinado a minar qualquer resquício de resistência à sua pretensão de domínio unilateral.

Essas ações foram apoiadas, de forma voluntária ou obrigatória, por vários governos europeus, fiéis a barbárie do supremacismo ocidental e à sua própria história colonial de destruição e exploração de outros povos.

Podemos listar alguns instrumentos que vêm sendo empregados nesta estratégia de recolonização: a manipulação praticada por corporações midiáticas e destinadas a atacar os governos progressistas, a cooptação do aparato judicial para perseguir líderes populares, os golpes de Estado policial-militares, as como medidas unilaterais, o bloqueio econômico e a ameaça militar direta, a falsificação de informação através das redes sociais e serviços de disparo de mensagens, as operações diplomáticas de agências para-coloniais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), as extorsões financeiras e a re-evangelização de caráter neopentecostal.

Esta estratégia tem sido, por ora, relativamente exitosa. Tem logrado, por exemplo, colocar “procônsules” dos Estados Unidos em vários países latino-americanos anteriormente governados pela esquerda e pelo campo progressista.

A divisão da unidade do Caribe vem sendo uma das manobras mais recentes, efetuada com o propósito de reeleger Luis Almagro como regente do “Ministério das Colônias” (a OEA) e rachar a autonomia das nações insulares, a cooperação da PetroCaribe, o isolamento da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América — Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP_ e, por fim, bloquear a proximidade e a solidariedade com Cuba e Venezuela.

.A desintegração da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a criação de foros fantasmas como “ProSur” ou o Grupo de Lima tem servido para enfraquecer o espírito de independência e a associação cooperativa na região. Os enormes avanços conquistados pela integração regional soberana em relação à paz têm sido minados mediante operações militares, convênios de venda de armamento, sofisticação de controles e a instalção de novos destacamentos de tropas estrangeiras em solo latino-americano e caribenho.

A afronta do deslocamento naval do Comando Sul dos Estados Unidos pelo Caribe, sob o pretexto de enfrentamento ao narcotráfico – como também foram, outrora, o Plano Colômbia e a Iniciativa Mérida – é uma ameaça mortal para as aspirações de bem-estar, igualdade e soberania para os povos da região. Ameaça que conta com a criminosa cumplicidade de governos satélites como Brasil e Colômbia e contra a qual, para além da debilidade dos mecanismos comuns de cooperação e solidariedade, os povos devem levantar-se decididamente.

O avanço continental retrógrado falhou no México e na Argentina, onde a organização popular e política soube expulsar a dois emissários do capital do e do império: Peña Nieto e Macri. Precisamente os governos de Andrés Manuel López Obrador e Alberto Fernandez são os que lideram, atualmente, a recomposição das forças integradoras na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e também através do Grupo de Puebla.

A mesma resistência organizada, baseada no sentimento patriótico e na unidade entre governo e forças armadas, impediu que o imperialismo retomasse o controle sobre Cuba, Nicarágua e Venezuela, três revoluções combatidas ferozmente desde seus inícios.

A derrota do ‘colôniavírus’

Os governos de direita vêm provando sua inaptidão e perdendo rapidamente o apoio popular que detinham. Ao mesmo tempo, ante à desproteção do calamitoso estado social produzido pelo sistema financeiro, vai-se abrindo passagem à recordação de avanços alcançados durante os governos progressistas, em que pese a sistemática demonização praticada nas campanhas difamatórias dos grupos midiáticos hegemônicos. Tudo isso serve como presságio de ciclos conservadores muito curtos. Como de costume na região, um breve sopro de renovação é sucedido, invariavelmente, por um período de repressão.

A reversão deste período de perda da soberania e dos direitos humanos – ou “colôniavírus” – demanda forças sociais que levem adiante os novos projetos. Está claro que a divisão dos movimentos populares sintetiza-se na consígnia “voltar melhores”. Ou seja, revisar algumas fraquezas e incorporar novos elementos no repertório progressista e revolucionário, em sintonia com as novas reivindicações de ordem geracional e de gênero.

A unidade na diversidade é um elemento que tem se mostrado chave para golpear a aliança oligárquica-colonial. Mas não bastará, porém, as fórmulas redistributivas assentadas nas mesmas matrizes econômicas e culturais dependentes para recompor o tabuleiro da evolução na América Latina e no Caribe.

Tampouco será suficiente o desgastado paradigma do crescimento ilimitado, que carece de concepções equitativas, mas também de um tipo de desenvolvimento humano que não esteja calcado apenas no consumo e na posse.

A reivindicação feminista e a defesa do meio ambiente frente à depredação corporativa serão peças insubstituíveis para este renovado repertório. O claro irrestrito para a superação de toda forma de violência, toda discriminação e em rechaço a toda violação de direitos humanos serão parte essencial das novas revoluções que estão por vir.

A liberdade humana avançará neste esperado ciclo, já não por seu antigo sentido liberal competitivo e descomprometido com o bem coletivo, mas de um íntimo conceito de comunidade, no qual o velho lema de tratar aos demais como deseja-se que o tratem começara a sentir-se como regra de ouro universal.

Para tanto, sem dúvidas, será necessário compreender que, simultaneamente a transformações de ordem socioeconômica e política, também deverá se colocar em marcha modificações progressivas de padrões culturais e de conduta arcaicos, que impedem as melhores manifestações humanas.

Elevar a humanidade de cada um como máximo valor e o direito igualitário de cada pessoa e povo à evolução ilimitada, poderá, então, constituir-se como um núcleo fundante do futuro. Por acaso não é disso que estão falando tantas vozes que hoje exigem o humanismo acima da barbárie decadente do capitalismo?

As ruas podem estar vazias e silenciosas por conta da pandemia viral, mas muitas almas continuam vibrando com poderosos ventos de transformação. Ventos que, em um curto prazo, trarão novas tempestades.

*Javier Tolcachier é pesquisador do Centro Mundial de Estudos Humanistas e comunicador na agência internacional de notícias Pressenza. Texto originalmente publicado no Pressenza